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Tribunal de Justiça derruba lei sorocabana que proibia linguagem neutra. Entenda

Todes, tod@s, todxs são formas para representar pessoas que não se identificam nem com o gênero masculino, nem com o feminino. A adoção de linguagem não-binária chegou a ser proibida na cidade, mas justiça liberou o uso

Fernanda Ikedo (Portal Porque)

Liminar havia suspendido a lei aprovada pela Câmara, mas decisão do TJ pôs abaixo pretensão do Executivo e Legislativo de impor normas para as escolas. Foto: Reprodução/Guia Gay SP

O uso da linguagem neutra está liberado em escolas públicas, privadas e em concursos públicos de Sorocaba. Essa é a decisão do Tribunal da Justiça de São Paulo (TJ-SP) a favor da liminar do desembargador Vianna Cotrim, relator do caso que derrubou uma lei municipal aprovada em março do ano passado, pelos vereadores sorocabanos.

Após a aprovação da lei, uma representação foi protocolada no Ministério Público (MP-SP) pelo Conselho Municipal de Educação de Sorocaba, por meio do professor universitário então presidente do órgão, Alexandre Simões da Silva, com a Comissão de Direitos Humanos da OAB Sorocaba, representada pelo presidente Hugo Bruzi.

“Tive duas reações distintas ao saber da notícia. Uma de alívio, considerando que a escola se mantém, sem censura, como local de discussão dos diferentes saberes. Minha outra reação é de total indignação com a baixa qualidade de parte significativa dos nossos legisladores no Brasil”, pontua Simões.

Uma liminar suspendendo a lei foi concedida pelo desembargador Vianna Cotrim, relator do caso, atendendo o pedido do Ministério Público, incluindo a concordância em relação ao fato de a lei municipal invadir a competência da União, ao legislar sobre educação.

A Prefeitura de Sorocaba recorreu para manter a proibição à linguagem neutra. Mas a Procuradoria-Geral de Justiça alegou que a lei é incompatível com a Constituição. Para a Procuradoria, a lei não tratou de qualquer assunto de interesse local, sendo incompatível com a Constituição Estadual por configurar “verdadeira censura pedagógica e implicar ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana”. Por unanimidade, o colegiado julgou a ação procedente, sob relatoria do desembargador Vianna Cotrim.

Da mesma forma que Simões, o advogado Hugo Bruzi também critica a Câmara, afirmando que a lei “era inconstitucional, como tantas outras propostas pelo legislativo em Sorocaba. O prefeito e os vereadores acham que estamos em uma província do qual eles são a lei. E nosso dever, como garantidores da lei, é combater arbitrariedades como estas. Pois independente da ideologia de cada um, nosso ordenamento jurídico sobrepõe escolhas e deve ser respeitado”, ressalta.

A presidenta da Associação Transgênero de Sorocaba (ATS), Thara Wells, destaca que a decisão da justiça pode ser considerada uma vitória contra o preconceito, “se pensarmos na garantia do respeito a todas as pessoas, evitando a exclusão com base na identidade de gênero, da sexualidade humana ou outros aspectos de identidade”.

Thara, que é mestranda em Estudos da Condição Humana pela UFSCar, comenta também a garantia da permanência de pessoas transgênero nas escolas, “visto que, para algumas de nós, a escola pode ser um espaço de extrema violência, e que a não permanência, somada à falta de capacitação, potencializa nossa invisibilidade, nos atirando ao aprisionamento social e à marginalidade dos nossos corpos”.

Apesar dessa decisão contra uma lei considerada inconstitucional, Thara pontua que ainda faltam muitas batalhas e enumera: “O uso do banheiro, o respeito ao nossos nomes, a nossa identidade, o acesso ao mercado formal de trabalho, acesso à saúde, etc.”.

O projeto de lei

De autoria do vereador Vinícius Aith (PRTB), o projeto de lei nº46/2021 proibia expressamente, por parte de instituições de ensino e de bancas examinadoras de seleções e concursos públicos municipais, em currículos escolares e editais, o uso de novas formas de flexão de gênero. A proposta, que teve coautoria dos vereadores Dylan Dantas (PSC), Cristiano Passos (Republicanos), Cícero João (PTB) e Luis Santos (Republicanos), recebeu parecer favorável da Comissão de Justiça da Câmara e foi aprovada em sessão extraordinária.

O projeto teve como embasamento texto do astrólogo Olavo de Carvalho, que ficou conhecido por ser divulgador terraplanista (por artigos e falas afirmando que a Terra poderia ser plana). O texto de Carvalho citado no projeto de lei foi “Lógica da mistificação, ou: o chicote da Tiazinha”, que, segundo Aith, “demonstra a basilar importância da norma padrão para a ordem e desenvolvimento da sociedade”.

Linguagem em disputa e em movimento

“A língua se altera com o passar do tempo. É um processo natural. Exemplos disso são a evolução de ´vosmecê´ para ´você´ e a incorporação de elementos derivados de outras línguas, como por exemplo ´mouse´, ao invés de ´rato´, para designar o equipamento de informática. Esse movimento está inerentemente ligado a questões históricas e socioculturais dos falantes, e não se molda por ´leis´. Esse movimento, contudo, não é instantâneo. Muito tempo ainda será preciso para que a maioria dos falantes da língua portuguesa decida se vai ou não incorporar à norma culta, por exemplo, ‘todes’ para designar ‘todos’ e ‘todas’ em uma só expressão”, argumenta o integrante do Conselho Municipal de Educação, Alexandre Simões, que é professor universitário.

Outro exemplo de palavra inclusiva é amigues, ao invés de amigos e amigas. Um substantivo “neutro” que inclui pessoas que não se identificam com o feminino ou o masculino.

Em relação à nomenclatura, linguagem neutra ou inclusiva, o professor do PPGECH/UFSCar e pesquisador na área de linguística Márcio Gatti explica que a linguagem inclusiva seria mais coerente pensando na alteração pronominal, também aplicada às flexões de gênero. “São grupos sociais que reivindicam essas alterações porque se sentem incomodados com a estrutura da língua que não os representa.”

O pesquisador também comenta que são várias camadas para alteração na língua. A primeira camada inclui um grupo de pessoas que se sentem incomodadas com a estrutura linguística; a segunda, a estrutura linguística em si, que não se altera por lei ou apenas pela vontade; e a terceira camada, no outro lado da moeda, é o fato de que há um movimento contra essa linguagem inclusiva.

“Do ponto de vista estrutural, essas formas ainda não entraram no sistema linguístico e só vamos saber daqui a um bom tempo. Essas mudanças ocorrem paulatinamente e seguem em determinadas direções. O sistema pronominal não é simples de se alterar porque são estruturas muito enraizadas, muito internalizadas nos falantes. A depender do prosseguimento da militância dessa reivindicação pode ser que a língua se altere, com a maioria falando todes, por exemplo”.

Em resumo, Gatti ressalta que “a linguagem inclusiva é um movimento legítimo e que os grupos que se posicionam contrariamente têm uma posição conservadora e, muitas vezes, ignorante em termos de língua. Mas, não sabemos se vai desembocar numa mudança linguística ou não, é uma questão que a gente vai ver ao longo do tempo.”

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