
Imóvel apontado no Facebook como sede do Coeso, e que hoje seria do Iesa, funciona hoje como fábrica de sabão. Foto: Renata Rocha/Portal Porque
A Prefeitura de Sorocaba está sendo cobrada judicialmente para pagar salários e benefícios atrasados a professoras e auxiliares de educação terceirizadas. As trabalhadoras, mulheres em sua maioria, entre elas grávidas e mães solo, levaram calote do Centro de Orientação e Educação Social (Coeso), uma organização não governamental responsável pela gestão de três CEIs (Centros de Educação Infantil).
A ong teve contratos cancelados por irregularidades e simplesmente dispensou o pessoal sem sequer dar baixa em suas carteiras de trabalho. Ao todo, 71 funcionárias entraram com ação pleiteando da Prefeitura algo em torno de R$ 1,2 milhão referente aos salários de dezembro passado e janeiro deste ano, além de férias, vale-alimentação e indenização por danos morais coletivos e individuais.
A Prefeitura, segundo foram informados, está aberta a um acordo com as professoras, mas alega não ter responsabilidade pelos auxiliares, entre os quais se enquadram funcionários da administração, portaria, conservação e merenda.
Os processos se arrastam desde fevereiro passado. Os funcionários eram contratados pelo Coeso como PJ (Pessoa Jurídica) há mais de três anos. Por sua vez, o Coeso era contratado por meio de licitação da Secretaria Municipal de Educação para gerir os CEIs dos bairros Marcelo Augusto, Novo Horizonte e Jardim Los Ângeles.
“Em 6 de janeiro deste ano, a ‘empresa’ enviou mensagem convocando uma reunião, onde dois representantes – Daria e Cléber — informaram que a Prefeitura suspendeu os contratos por irregularidades e eles tiveram que devolver um repasse no valor de R$ 300 mil, de modo que não tinham como pagar os salários de dezembro e nem de janeiro”, relata a professora Andreza Antit, que lecionou no CEI do Marcelo Augusto por três anos e três meses até receber a notícia.
De acordo com a professora, o Coeso tentaria obter novos contratos utilizando o CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica) de outra “empresa”, denominada Iesa (Instituto de Educação Social e Ambiental), mas a estratégia não deu certo. “Depois disso não teve mais explicação. A empresa simplesmente desapareceu”, conta Andreza. Mas não por muito tempo.
Alguns dias depois as professoras receberam mensagem do celular do departamento de Recursos Humanos com um modelo de carta de demissão onde eles deveriam assinar como se estivessem pedindo desligamento. “Como recusamos, não falaram mais nada e começamos a procurar nosso direito”, lembra Andreza.
Grávidas e mães solos
Andreza e outras 14 professoras procuraram o Sinpro (Sindicato dos Professores de Sorocaba e Região). “Várias professoras preferiram continuar nas escolas trabalhando para as empresas que entraram no lugar do Coeso. O desligamento se deu em janeiro, logo depois do Natal. Tinha funcionárias grávidas, mães solos, boletos vencidos. Ficamos arrasadas. Eu desisti de trocar uma empresa por outra temendo que pudesse acontecer outro calote. Hoje sou professora eventual da Prefeitura”, comentou Andreza.
Os auxiliares de ensino, que não tiveram a opção de continuar nas empresas substitutas, estão sendo representados pelo advogado William Almeida Proença, contratado pelo Sindicato dos Trabalhadores em Turismo e Hospitalidade de Sorocaba e Região.
Segundo o advogado, são 65 funcionários cobrando R$ 1.141.617,00, valor que inclui verbas rescisórias, salários atrasados, multa por atraso e indenização por danos morais individuais e coletivos. “Em nosso entendimento, a Prefeitura deve assumir a dívida do Coeso, pois se beneficiou diretamente (dos serviços)”, argumenta Proença.
De acordo com ele, a Prefeitura já se manifestou em defesa escrita. “Em resumo, tenta se desvencilhar de sua responsabilidade pelo inadimplemento dos encargos trabalhistas de suas creches conveniadas”, explica.
Em mensagem enviada à reportagem, o Sinpro informa que seu Departamento Jurídico, através da advogada Letícia Veronesi, entrou com processo na 3ª Vara do Trabalho de Sorocaba exigindo pagamento das verbas rescisórias, multas previstas na CLT e na norma coletiva e estabilidade gestante. A nota esclareceu que o Sinpro representa apenas 15 professoras, mas, como se trata de ação coletiva, irá englobar todas as professoras que tralhavam no Coeso à época. Por isso, de acordo com o Sinpro, o valor da causa ainda é apenas simbólico, de R$ 53 mil, mas deverá crescer substancialmente.
O Sinpro informou que também requereu antecipação de tutela para o Coeso efetivar e comprovar as baixas em carteira de trabalho para que as professoras pudessem acessar o Seguro Desemprego. As demandas foram deferidas pela juíza titular Cecy Yara Tricca de Oliveira, que também deu prazo de cinco dias úteis para manifestação do Coeso.
A ong, porém, não se manifestou e uma audiência marcada para junho foi adiada para fevereiro de 2024, motivando o Sinpro a reorientar a estratégia e buscar um acordo diretamente com a Sedu (Secretaria de Educação). De acordo com o sindicato, uma audiência está prestes a ser agendada pela pasta.
Dá calote e vai à festa
Quando anunciou em 6 de janeiro que não tinha mais vínculos com a Prefeitura de Sorocaba, o Coeso deu um tombo nos seus empregados e deixou exposta a fragilidade dos contratos de cogestão. Ao mesmo tempo, revelou a incrível impunidade daquele que infringiu as regras e ainda anuncia sua participação na Festa Julina, evento tradicional da Prefeitura, a ser realizado neste mês.
O evento filantrópico viabiliza a arrecadação de recursos para entidades supostamente acima de qualquer suspeita. Por isso, a presença da sigla Coeso entre as entidades participantes causou perplexidade em sua ex-funcionária, Andreza Antit, “Foi por isso que eu resolvi vir a público e denunciar”, explica a professora.
O caso Coeso tramita desde fevereiro, mas era conhecido apenas pelas partes envolvidas, até que Andreza começou a postar mensagens de cobrança no Facebook. Ameaçada de processo, ela consultou um advogado e foi orientada a dar prosseguimento à campanha. Em entrevista ao Porque, ela fala de sua indignação com a impunidade do Coeso. “Deixou todo mundo na mão e foi pra festa Julina”, reclama.
“A gente busca uma resposta, mas não vem resposta. A empresa prestava serviço para a Prefeitura, a Prefeitura não fiscalizava o contrato. Se estava regular. Sumiram e não dão resposta, nem a empresa nem a Prefeitura. Tinha mulher grávida, mãe solo, gente que precisava receber pelo menos o salário de dezembro”, lembra Andreza.
A professora acredita que a Prefeitura conseguiu contornar uma crise bem barulhenta porque acalmou as professoras, oferecendo a alternativa de prosseguirem no trabalho através das empresas substitutas, mas deixando os direitos trabalhistas de lado. “Fez isso para tranquilizar, mas agora tudo voltou à tona porque o Coeso está funcionando normalmente como se nada tivesse acontecido e a Prefeitura não nos dá nenhuma posição”, reclama Andreza.
Debate
Em 16 de junho passado, o calote do Coeso foi abordado em audiência pública na Câmara de Vereadores. O evento foi convocado pela vereadora Iara Bernardi (PT) para discutir os impactos da gestão compartilhada e a garantia de condições dignas aos profissionais da educação das unidades que fazem parte da gestão compartilhada da rede pública de ensino de Sorocaba.
O Sinpro enviou ao evento o seu diretor de Finanças, Renan Santos, que fez um relato do calote do Coeso e uma crítica ao modelo de contrato de cogestão adotado pela Prefeitura que, segundo ele, não oferece segurança aos empregados e à sociedade.
De acordo com Renan Santos, o Coeso aderiu à gestão compartilhada “lá atrás, por conta de amiguinhos, relações políticas com pessoas poderosas da cidade e em dezembro simplesmente fechou as portas, simplesmente quebrou e a Prefeitura tinha repassado dinheiro, dinheiro nosso, do IPTU, IPVA… Simplesmente sumiram, do dia pra noite, e não pagaram os trabalhadores e trabalhadoras”, relatou.
Santos contou que o Sinpro está defendendo 15 professoras e professores em ação coletiva. “Procuramos imediatamente a Seduc, a Prefeitura como um todo, também procuramos o setor jurídico da Prefeitura para saber como ficariam estas pessoas. Vejam que presentão que a professora do seu filho ganhou em dezembro, de não receber o salário; que ganhou em janeiro, de não ter dinheiro para pagar o cartão de crédito. Foi este o presente que o Coeso deu”, comentou o diretor na audiência que era transmitida pela TV da Câmara.
De acordo com Santos, o Sinpro considera a Prefeitura corresponsável pelo calote e a Procuradoria Geral do Município reconhece sua responsabilidade, mas alega que não tem como fazer pagamentos sem uma decisão judicial. “Só que, até lá, as professoras estarão devendo no cartão juros de 180% ao ano. A Prefeitura diz que não tem nada a ver com isso. Este modelo de contrato não contempla aquilo que pode mitigar os riscos nesta relação entre Prefeitura, instituição e sociedade”, afirma o diretor.
Para a vereadora Iara Bernardi , os salários pagos pela gestão compartilhada não chegam nem à metade do piso nacional dos professores e dos auxiliares, revelando uma má distribuição dos recursos da Prefeitura. A vereadora defende que as terceirizadas paguem pelo menos o piso. “O prédio é municipal, as crianças são do município, o material didático, a merenda e a supervisão são do município, mas o salário dos profissionais é uma precarização absurda do ensino municipal. Deveria ser, no mínimo, o piso salarial nacional. É preciso debater sobre os repasses da Prefeitura para que juntos possamos lutar por melhores condições salariais nas creches compartilhadas”, argumenta.
A professora Andreza também foi à audiência na Câmara e postou em seu Facebook: “Olha que lindo o debate que está acontecendo para tratar sobre a gestão compartilhada. A empresa COESO – Centro de Orientação e Educação Social – não pagou nenhum de nós, e ainda tem coragem de me mandar intimação falando que eu estou mentindo. Que fique bem EXPOSTO para todos verem a grande empresa que vocês são e ainda tem a capacidade de irem trabalhar na festa junina de Sorocaba como se ainda tivessem alguma ONG. Parabéns aos envolvidos por tanta desvalorização aos profissionais de educação”, postou.
A reportagem enviou mensagem ao gabinete da Procuradoria Geral do Município, solicitando entrevista com o procurador Felipe Rodrigo Neves Pinto, que representa a Prefeitura neste processo. Mas foi orientada a procurar respostas junto à Secretaria de Comunicação (Secom). Um e-mail com um questionário foi encaminhado à Secom e aguarda as respostas para publicação da versão da Prefeitura.
O Coeso (Centro de Orientação e Educação Social), segundo sua página no Facebook, está sediado em uma casa em reforma na Rua Pedroso de Barros, 187, na Vila Elza, vizinha da Vila Angélica. Mas no local funciona uma fábrica de sabão caseiro produzido através de reciclagem de óleo queimado. Dois homens que trabalhavam no local informaram que a casa é sede do Iesa (Instituto de Educação Social Ambiental), a ong que a Coeso tentou colocar como substituta nos contratos de gestão com a Secretaria Municipal de Educação.
A reportagem foi atendida na calçada. Um dos homens que atendeu a equipe voltou para o interior da casa para buscar o contato da diretoria do Iesa e não retornou. Saiu pelos fundos, de carona com um furgão que tem a logomarca do Coeso na porta. O funcionário que ficou, identificado como Ezequias Andrade dos Santos, informou que é o responsável pela fábrica de sabão. Ele disse que cinco pedras de sabão, ou um 1 kg, custam 10 reais, um preço bastante razoável. Ezequias não tem conhecimento sobre as atividades do Coeso na área de educação infantil.
Além de ir pessoalmente à sede do Coeso, a reportagem tentou fazer contatos telefônicos com a direção da entidade em diversos momentos nos últimos dez dias, sem sucesso.
Da Prefeitura, foram solicitados os seguintes esclarecimentos, que a Secom, como tem adotado por norma, se recusou a responder:
Por que os contratos do Coeso foram cancelados?
Quantas CEIs estão sob regime de cogestão?
Quanto a Prefeitura gasta com os contratos?
Qual é a garantia dos trabalhadores em caso de falência das empresas?
Após o calote do Coeso haverá alteração no modelo de contrato?