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Professores e responsáveis de alunos expõem irregularidades do kit de robótica

Prefeitura de Sorocaba gastou R$ 26 milhões com a compra de 30 mil kits de robótica para serem distribuídos nas escolas, entre alunos do 1º ao 5º ano

Carol Fernandes (Portal Porque)

Não bastasse o transtorno em pedir aos pais e responsáveis para que levassem os kits de robótica para casa, os profissionais da educação tiveram de lidar, ainda, com a falta de peças. Foto: Cortesia

Terceirização do ensino para pais e responsáveis, materiais de péssima qualidade e falta de domínio técnico dos próprios responsáveis pela capacitação. Essas são algumas das irregularidades apontadas ao Portal Porque por profissionais da educação, servidores públicos e responsáveis por alunos que tiveram acesso aos kits de robótica, comprados pelo valor total de R$ 26 milhões, que foram distribuídos pelo Governo Manga nas escolas municipais de Sorocaba durante o ano letivo de 2022.

Uma servidora pública da Secretaria da Educação (Sedu), que preferiu não ser identificada, contou à reportagem que o ensino de robótica não foi um projeto planejado pela própria pasta, mas sim uma exigência da atual administração municipal. “Se fosse um projeto da Sedu teria sido feita uma pesquisa melhor em relação ao material. Poderia ter sido usado, por exemplo, o Lego, um outro tipo de material melhor”, explica.

A educadora também lembrou que, à época do início da distribuição dos kits de robótica nas escolas, muitos professores levaram os materiais para a própria casa, na tentativa de, com ajuda de familiares mais experientes em montagem, conseguirem aprender para repassar o conhecimento aos alunos. “Mas acabou se tornando impossível”, confessa. Isso ocorreu, segundo a servidora, porque, além de terem sido “pegos de surpresa” com a inclusão do kit de robótica no planejamento pedagógico, as formações aos professores ocorreram em apenas dois dias, com profissionais sem domínio técnico enviados pela empresa vencedora da licitação.

“O que a gente se assustou foi muito com a questão do valor. Pagar um valor tão alto num material com a qualidade tão baixa. E do aproveitamento desse material, que também não teve nenhum. Se perguntar para os pais dos alunos, a maioria teve que levar para tentar montar em casa”, disse a servidora, destacando que, assim como ela, outros professores se sentiram frustrados e chateados com toda a situação.

Não bastasse o transtorno em pedir aos pais e responsáveis para que levassem os kits de robótica para casa, os profissionais da educação tiveram de lidar, ainda, com a falta de peças, o que impediu muitos alunos de concluírem a montagem do brinquedo. A servidora lembra que passou semanas envolvida no processo de enviar e-mails para a Secretaria de Educação a cada vez que recebia um comunicado de que estavam faltando elementos, como parafusos, nos kits dos alunos. “Foi muito, muito complicado. Demorou um tempo para a gente conseguir finalizar isso”, confessa.

Responsáveis manifestam indignação

Pais e responsáveis, em entrevista ao Portal Porque, também manifestaram indignação com a forma como foi conduzida a distribuição dos kits de robótica e, também, com a qualidade ruim dos materiais – foram pagos entre R$ 720 e R$ 798 por unidade.

Uma mãe, que também não quis ser identificada, contou que em uma escola municipal na Vila Carol, zona norte de Sorocaba, foi realizada uma reunião para anunciar a vinda do kit de robótica, que semanas depois foi entregue aos pais e responsáveis para montagem em casa. “Eles só falaram que era para a gente ver pelo manual de instruções e montar, e que daí esse ‘negócio de robótica’ aí ia ser apresentado na Festa da Família, coisa que nem teve também”, afirmou.

Assim como no kit de outros alunos, o da filha da fonte entrevistada não veio com todos os pregos e dois adesivos, que seriam colados no brinquedo, estavam rasgados. “Ela [professora] só pediu para mostrar o carrinho, se estava andando, tudo certinho, e mandou trazer embora. Trouxe de volta para casa, tá aqui”, disse a mãe.

Gabriela Pereira, idealizadora do Instituto Ampara, que oferece apoio e acolhimento a famílias atípicas do município, acompanhou de perto a vinda dos kits de robótica para a escola em que seu filho está matriculado, no residencial Carandá. Preocupada com as adaptações dos materiais para crianças com deficiência, ela procurou a equipe gestora da unidade escolar, que autorizou Gabriela a ver o kit de robótica para que pensasse em estratégias para o ensino de seu filho, que tem deficiências múltiplas, incluindo a surdez.

Assim como em outras unidades escolares, Gabriela e os demais responsáveis pelos alunos matriculados levaram os materiais para montagem em casa. “O robô do Beny não deu para montar todo, porque ele tem peça que pode ser engolida. É perigoso não só para ele, mas para qualquer criança. E, recentemente quebrou, do nada”, disse.

Gabriela defende que o ensino de robótica deve ser ministrado por profissionais com capacitação na área, e que inclua adaptações que atendam às necessidades de crianças com deficiência. A mãe também acredita que o valor milionário gasto com os kits de robótica poderia ter sido direcionado para demandas mais urgentes na educação pública municipal. “Foi até o meu questionamento, que eu fiz para o secretário [de Educação]. Por que não investir na educação inclusiva, como se deve investir mesmo, com materiais adaptados, recursos, tecnologia assistiva?”, destacou.

‘Kit de robótica’ fornecido para crianças do 1º ano, denominado Robô Guerreiro. Foto: Gabriela Pereira/Arquivo Pessoal

Uma terceira mãe, que também preferiu não ser identificada, comentou sobre a dificuldade com o kit de robótica que seu filho, à época matriculado no quinto ano, recebeu. “A professora em si não explicou nada para eles sobre a montagem. Nada. Tanto que meu filho chegou em casa, ele ficou ‘batendo a cabeça’ para fazer”, lembrou. Então, ela tentou ajudar o filho na montagem, mas peças estavam faltando e ele precisou pedir para a professora.

Com o brinquedo montado, a escola municipal pediu, segundo a mãe, para que tirassem uma foto e imprimissem. A imagem foi anexada em um questionário, onde o estudante respondeu a perguntas como “qual parte você mais gostou?” e “qual foi a parte mais difícil?”. Hoje, o brinquedo ocupa uma prateleira do quarto do estudante. Questionada se acredita que o filho de fato aprendeu algo sobre robótica com a atividade, ela responde que não.

O que diz a Prefeitura de Sorocaba

O Portal Porque solicitou à Prefeitura de Sorocaba, por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), dados sobre os kits de robótica fornecidos nas escolas. De acordo com a administração pública municipal, a escolha pelo kit Maluquinho por Robótica foi alinhada às necessidades da Secretaria da Educação, como peças de fácil reposição, utilização de materiais de fácil aquisição e material de apoio para profissionais da educação e projetos formativos. Em sua resposta, a Prefeitura também cita que “o material traz em sua metodologia práticas de Storytelling com personagens já conhecidos pelos estudantes e professores”. A série de história em quadrinhos brasileira foi criada pelo desenhista e cartunista Ziraldo em 1980.

Questionada sobre as denúncias enviadas ao Porque de que os professores teriam entregue os kits de robótica para os alunos montarem em casa, a Prefeitura afirmou que “em alguns casos, as equipes escolares optaram por também envolver as famílias no processo de montagem”. Já em relação à adaptação dos materiais para alunos com deficiência, argumentou que “a Secretaria da Educação forneceu formação para professores da Sala de Recursos Multifuncionais, orientando a adaptação metodológica do trabalho considerando cada especificidade, e se colocou à disposição para suporte das equipes”.

Ainda de acordo com a Prefeitura, com os kits de robótica distribuídos nas escolas, foi possível alcançar resultados pedagógicos como a aprendizagem pela prática, além de desenvolvimento de habilidades técnicas e sociais, como “trabalho em equipe, liderança, comunicação e colaboração”. Com o projeto, na interpretação da administração municipal, “os alunos desenvolveram habilidades necessárias para trabalhar em uma sociedade cada vez mais tecnológica e digital”.

A reportagem também perguntou o que a Secretaria da Educação fará com os kits que não foram utilizados em 2022 e, ainda, se o projeto terá continuidade no ano letivo de 2023. Em resposta, a Prefeitura afirmou que 168 kits “serão utilizados nas salas maker das unidades escolares” e que, neste ano, “desenvolverá ações em continuidade ao projeto de iniciação à robótica com aquisição de materiais para serem utilizados em projetos de aprendizagem criativa para as escolas municipais de Sorocaba”.

Decisão do Tribunal de Contas

No dia 28 de março, a Prefeitura de Sorocaba publicou um comunicado, na agência de notícias do município, informando que o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) havia tomado uma decisão favorável ao Governo Manga sobre a compra dos kits de robótica. Entretanto, o extrato da sessão ordinária, que ocorreu no mesmo dia da publicação do comunicado, não configura nenhum tipo de decisão. Dessa forma, o Tribunal de Contas ainda segue avaliando o processo.

O Portal Porque entrou em contato com a vereadora Iara Bernardi (PT) e com o ex-presidente do Conselho Municipal da Educação, o engenheiro e professor de robótica Alexandre da Silva Simões, que à época acionaram o Ministério Público por causa da compra milionária do kit.

Alexandre, que atua há pelo menos 30 anos nessa área, afirmou que ainda tem esperança de “que a Justiça possa apreciar, com os devidos detalhes, essa aquisição”. “Os preços praticados pelo município de Sorocaba nessa compra são totalmente incompatíveis, de uma forma gritante, com o conteúdo dos kits. Pedaços de madeira conectados por parafusos, no montante comprado, milhares de kits, não podem custar mais de R$ 700 cada”, ressaltou.

A vereadora Iara Bernardi também destacou o preço incompatível com a qualidade dos materiais, e disse que encontrou “erros muito importantes” na compra dos kits de robótica. “Foi uma compra milionária de um produto que hoje traz, inclusive, transtorno nas escolas, porque ele não pode ser usado sem a presença do professor, tem muitas peças, é perigoso e não é um robô. No nosso entendimento, não é nem uma iniciação à robótica. Nós temos, em Sorocaba, o Parque Tecnológico. Nós temos duas universidades que trabalham com o tema, e não foram sequer consultadas. Se é que se queria dar, de fato, uma iniciação à robótica com as crianças”, ressaltou. Caso o órgão tome uma decisão favorável ao Executivo, a vereadora pretende dar entrada novamente no Tribunal de Contas.

 

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