
Serviço específico para o público trans teria sido iniciado mediante acordo com o MP no final do ano passado, sem nenhuma publicidade. Foto: Arquivo/Secom/PMS
A Prefeitura de Sorocaba encerrou, sem esclarecimentos à população, as atividades do ambulatório que funcionava desde o final do ano passado na UBS (unidade básica de saúde) da Vila Fiori, atendendo à comunidade transgênero de Sorocaba, principalmente com hormonioterapia.
A denúncia foi feita pela ATS (Associação de Transgêneros de Sorocaba), que afirmou que irá notificar o MP (Ministério Público) da decisão do município. “A associação irá tomar todas as medidas cabíveis e fazer tudo o que estiver ao nosso alcance, para que o procedimento seja restabelecido”, informou a entidade.
No momento, a associação está coletando documentos que provem a existência e funcionamento do ambulatório, relatórios dos pacientes em atendimento e em fila de espera, bem como o processo do MP que obrigou Sorocaba, conforme a ATS, a implementar o ambulatório.
Segundo a entidade, a implantação do ambulatório teria sido uma exigência do Centro de Referência Trans de São Paulo ao MP para desafogar a fila na capital, que recebia os pacientes trans de Sorocaba por falta desse equipamento público de saúde na cidade.
“Com isso em mãos, vamos acionar o MP e denunciar que, mesmo com a ação, o ambulatório não foi implementado a contento, pois tudo ocorreu em sigilo, sem ser noticiado, além de agora ter sido cancelado”, divulgou a ATS.
O serviço prestado desde o dia 11 de novembro de 2022 – sem divulgação na mídia, como ocorre com outras ações de governo — e que atendia a população transgênero da cidade, foi encerrado na semana retrasada sem uma justificativa pública, de acordo com a associação.
A ordem para cessar os atendimentos, conforme informações apuradas pela entidade, foi pautada pela desculpa de que não se trata de um “momento político” para continuar com a prestação do serviço, adiantou uma fonte ao Portal Porque.
“Isso faz parte de uma ideia dessa gestão do governo Manga, que é de marginalizar nossos corpos, nossa identidade, seja nas escolas, no mercado formal de trabalho e, agora, também na saúde”, defende a ATS.
Desafogando o sistema
De acordo com a ATS, desde o início a associação tem explicado o quanto oneroso fica ao SUS (Sistema Único de Saúde) receber para tratamento uma pessoa que não faz o procedimento de transição hormonal de forma profissional, mas com automedicação. Mesmo assim, em Sorocaba, o município tem fechado os olhos para essa realidade e para essas pessoas, afirma a entidade.
Ainda conforme explicação da ATS, o ambulatório só iniciou o funcionamento depois de pressão do próprio Ministério Público para que o município cumprisse a legislação e desafogasse outras unidades e centros de referência de saúde. No entanto, tudo ocorreu sem publicidade ou transparência pública.
O modo do atendimento ocorria via UBSs de referência (próxima da residência) do paciente, que passava por avaliação, acolhimento e atendimento com um clínico geral. Este, por sua vez, dava encaminhamento para tratamento da UBS da Vila Fiori.
As equipes que recebiam esses pacientes – funcionários, médicos endocrinologistas, ginecologistas, obstetras, psicólogos e assistentes sociais – foram capacitadas pelos membros da ATS para receber pacientes trans.
Impacto na saúde local
Sem dados oficiais, mas considerando uma perspectiva, a ATS acredita que, aproximadamente 1% da população sorocabana é formada por pessoas transgênero. A estimativa local, entende a entidade, é similar à de toda a população brasileira. Por conta desse número, defende que o impacto com o encerramento das atividades do ambulatório pode ser maior do que as próprias autoridades médicas e políticas imaginam.
Para Kaleb do Nascimento Campos, 37, homem transexual, desempregado, e que é paciente do ambulatório, o serviço é um divisor de águas tanto na sua história quanto na de muitas pessoas trans que conhece. “Sorocaba tem muita gente trans, tanto homem quanto mulher. E, a maioria, não tem condições de pagar um tratamento médico”, conta.
Ele iniciou sua transição há quatro anos. No entanto, nos três primeiros não contou com ajuda ou orientação de nenhum profissional da saúde, e fazia suas aplicações sozinho. “Eu poderia ter sofrido um infarto, ter desenvolvido problema nos rins, ter ataques de raiva, problemas físicos e mentais”, conta sobre os riscos que correu nesses primeiros anos, sem assistência pública nem privada de saúde.
De lá para cá, tudo mudou: pela primeira vez, depois de iniciada a transição, ele fez exames ginecológicos, passou por endocrinologista e também começou a receber a dosagem correta de hormônio mensalmente, sempre acompanhado da avaliação médica. Ele, que chegou com dosagem hormonal muito alta, foi alertado dos riscos que correu nesses anos em que se automedicava.
“Eles ainda me ensinaram a importância da alimentação, de beber água, da qualidade de vida nesse processo. O atendimento sempre foi muito bom, sempre fui muito bem tratado, sem contar no respeito”, conta sobre o atendimento recebido no ambulatório.
Outro ponto é a disponibilidade do hormônio aos pacientes, medicação hoje muito cara e inacessível para boa parte das pessoas que estão em processo de transição.
Kaleb teve sua última consulta no dia 26, e afirma que já havia um movimento estranho no local, como se os médicos não tivessem certeza se reagendariam ou não as próximas consultas, por haver dúvidas sobre a continuidade do programa. “Se nós perdermos o ambulatório como ficaremos? E as outras pessoas que ainda esperam por atendimento? Vamos perder tudo isso? Tem uma demanda muito grande de pessoas trans em Sorocaba e a interrupção do tratamento traz muitos problemas, tanto físicos quantos mentais para nós”, desabafa.
O Portal Porque entrou em contato com o município solicitando mais esclarecimentos e questionando sobre a veracidade e os motivos do encerramento do serviço, mas, até o momento, não obteve respostas.