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Pessoas em situação de rua acusam Prefeitura de levar colchões e até cobertores

Apropriação sistemática de pertences faz parte da política para manter áreas "nobres" livres dos sem-teto. Prefeitura, como sempre, não responde. SOS afirma desconhecer ações

João Maurício Rosa (Portal Porque)

“Não tem mais onde dormir no centro de Sorocaba”, diz sem-teto. E até quem dá comida aos desabrigados afirma já ter recebido ameaças. Foto: José Cruz/Agência Brasil

O caminhão cata-treco da Prefeitura de Sorocaba, utilizado para recolher entulhos domésticos, tornou-se o terror dos moradores de rua na operação de profilaxia social adotada pela gestão Manga. “Não tem mais onde dormir no centro de Sorocaba. Vem o SOS, a Guarda Municipal e o cata-treco e levam nossa mochila, nossa manta, tudo o que possuímos. A gente já não tem nada, a mochila é nossa casa”, reclama Gerson de Souza, 35 anos, nome dado por um destes moradores, que há nove anos vive nas ruas de Sorocaba, de volta às origens depois de perambular por São Paulo, Campo Grande e Corumbá (MS).

De acordo com Gerson*, a gestão Manga tem como meta dificultar a existência de moradores de rua pois, além de sequestrar seus pertences, está intimidando proprietários de restaurantes que doam alimentos. “Ele mandou avisar que vai multar e até fechar o restaurante”, afirma Gerson, que tem raízes na colônia ítalo-espanhola da Vila Haro e fez dois anos de Química na OSE.

“Não exponha meu nome verdadeiro não, já somos considerados o lixo da sociedade, não quero mais perseguição”, argumenta. Gerson veste uma calça com estampa de camuflagem estilo militar e está deitado com a cabeça sobre a mochila numa calçada aos fundos do hotel para cachorros Divertcão. A calçada é compartilhada por um casal e outros seis homens estendidos ou sentados sobre papelões e mantas, a 50 metros do albergue do SOS (Serviço de Obras Sociais de Sorocaba), organização privada que atua em parceria com a Prefeitura.

A sede do SOS, na Rua Francelino Romão, em Vila Rica, é o ponto final da peregrinação dos enxotados das calçadas da região central, gente que vivia em acampamentos em áreas nobres, na frente da Catedral, no entorno da Rodoviária, do Complexo Hospitalar e das UPHs, além de outras edificações com alto fluxo de público.

“Nestes locais mantemos uma atenção redobrada, pois se descuidar eles voltam a ocupar”, explica o advogado Vanderlei da Silva, que há 25 anos é o gerente administrativo e financeiro do SOS.

Vanderlei tem gabinete no segundo piso da sede da entidade, por onde se chega após passar pelo ambulatório médico, subir uma escada e destrancar uma grade de aço. Segundo Vanderlei, os baixos das pontes da avenida marginal Dom Aguirre também foram desocupados e atualmente estão sob vigilância diuturna pelos serviços de abordagem e recolhimento da Prefeitura com apoio da Guarda Civil Metropolitana.

O mesmo acontece com um antigo acampamento na frente do Cemitério da Saudade, onde mais de uma dezena de pessoas viveram por vários anos, sobreviveram a quase dois anos de pandemia e desapareceram de repente. Também sumiram os habitantes das praças do Fórum Velho e do Mosteiro de São Bento.

“Não tenho conhecimento de abordagem abusiva”, diz Vanderlei, o gerente do SOS. “O que fazemos é um trabalho técnico com um orientador, um assistente social e um motorista. Nós oferecemos nossos serviços e quem aceitar conduzimos ao SOS”, argumenta ele.

A entidade abriga hoje uma média diária de 110 pessoas que buscam um local para se alimentar, se banhar e dormir. Mas, por que centenas de pessoas preferem dormir nas ruas a pernoitar no albergue? Vanderlei responde laconicamente pelo whatsapp: “Tanto o serviço do SOS como do Centro de Triagem estão disponíveis para essas pessoas.”

A praça é nosso recinto

É certo que alguns destes moradores foram socorridos no albergue do SOS, ganharam passagens para voltar às suas cidades ou apenas mudaram de lugar e hoje se agrupam em espaços como a Praça João Naruyuki Sugui, no coração da Vila Helena. “Aqui é nosso recinto, graças a Deus! A gente não tem outra parada na vida, é e sempre foi aqui”, comenta Cristiane, 57 anos, há 10 anos vivendo no espaço, onde lidera um grupo que chega a reunir 15 homens durante o dia.

“Minha vida é um livro aberto, pois se eu moro na praça não tenho nada a esconder, não é?”, pergunta Cristiane sentada à sombra de uma árvore “pata de vaca”. Na manhã de uma sexta-feira, havia nove homens e só mais uma mulher, Maria Tereza, recém-chegada de Cornélio Procópio (PR). “Na rua, o único problema são os perrengues entre gente que vive na rua mesmo. Chega a dar medo, mas não estou sozinha, tenho a ajuda de meus universitários”, ela brinca, referindo-se aos parceiros da praça. “Aqui um cuida do outro.”

Apesar da quantidade de homens no grupo, Cristiane está solteira. João, seu ex-parceiro, viajou ao Paraná para socorrer a mãe que estava passando por uma profunda depressão e nunca mais voltou. “Um de seus irmãos foi assassinado e outro foi baleado, a mãe ficou muito ruim.”

Cristiane revela que saiu de casa há dez anos, quando descobriu que seus dois filhos estavam traficando drogas. “Fiquei com medo, de repente os homens dão uma batida e eu acabo presa. Não vou ficar segurando B.O. dos outros”, diz. Desde então, não arreda pé da praça de Vila Helena, onde passa o dia, e à noite recolhe-se no canto de um terreno onde dorme e guarda seus pertences na rua Artur Gonçalves, a 100 metros de distância.

A conversa no grupo é aquecida por dois corotes de pinga que circulam de boca em boca. Dois homens estão totalmente fora de combate, esparramados sobre a areia; vários outros têm dificuldade em acompanhar a conversa. Carlos Boiadeiro, pedreiro que diz ser pau pra qualquer obra, nascido no Hospital Santa Lucinda e criado na Vila Helena, segura um corote, mas dialoga com lucidez e ainda consegue ficar atento às pessoas que transitam pela praça, com quem ele pretende arrecadar uns trocados. “E aí amigão, você não tem um realzinho pra ajudar a gente?”, interpela frequentemente.

Manguear, o verbo do ganha pão

As doações e algumas latas e garrafas pets garantem a pinga, os cigarros e até a marmita de vez em quando. “A gente vive assim, de manguear e de reciclados”, conta Boiadeiro, usando um verbo que não tem nada a ver com a alcunha do prefeito Rodrigo Manga, sendo sinônimo de engodar, iludir, usar de artifício para obter o que se deseja, segundo definição do Dicionário Informal.

Por que o grupo de Vila Helena ainda não foi disperso pelo SOS? Carlos Boiadeiro informa que a Prefeitura não tem como agir ali porque não existe um acampamento fixo, é apenas uma reunião embaixo da árvore durante o dia. À noite se espalham por abrigos que variam de acordo com a previsão do tempo.

Mesmo durante o dia o grupo varia de tamanho. Os que ainda conseguem caminhar saem atrás de reciclados e de manguear moedas. Cada qual com sua meta. Agora mesmo, acabou a cachaça e o grupo se dispersou. Restam os dois homens tombados, Cristiane, Boiadeiro e um terceiro morador, chamado Dênis, que se mantém afastado, com o queixo tombado sobre o peito, aparentemente tirando um cochilo, mesmo sentado.

— Onde você vai almoçar hoje? Pergunto para Dênis.

— Este aí nunca come, interfere Cristiane.

— Por que você se mete? Quem sabe se eu como ou não como? E se o cara estiver querendo comprar uma marmita pra mim?, Dênis levanta a voz.

– Por que tá bravo? Nós só tamo discutindo uma situação aqui, intervém Boiadeiro.

Dênis informa que não jantou sexta-feira e já estamos às 10h do sábado. Sorocabano nascido há 42 anos na Santa Casa de Misericórdia, Dênis conta que é pedreiro, mas está sem trabalho há seis anos, desde que saiu de casa, no Parque Vitória Régia.

— Por que saiu?

— Saí pela própria vontade. Eu ficava muito sozinho, a vida era triste e deprimente. Só tinha uma brecha na porta pra pegar um ar. A amizade era muito pouca, a maioria dos amigos está aqui em cima.

Sansão, as generosas marquises e o sofá do jardim

A empresária Cristiane Lozano Benazzi já estava acostumada a ter de acordar Sansão quando ele bebia além da conta e dormia na porta da loja. Sansão era um morador de rua. A loja é um destacado representante do segmento de móveis para escritório em Sorocaba, na esquina das ruas Luiz Gama e Moacyr Figueira, na Vila Carvalho.

O endereço da loja é muito fácil de achar. Basta ultrapassar o buraco sob a linha férrea que conecta o centro da cidade às avenidas Washington Luís e Mascarenhas Camelo, principal escoadouro dos motoristas rumo ao Além Linha. E ponto de encontro de carros e trens, sem-teto e sem-carros, malabaristas, vendedores de água e de doces.

A empresária Cristiane Benazzi pode ver todo o movimento pela transparência das paredes de vidro da loja, instalada naquela esquina há 22 anos. Ao lado de uma loja de conveniência 24 horas, um posto de combustível e um bar tradicional. Vizinho a uma banca de jornais e floricultura. Sansão ficou amigo de todo o entorno, nunca incomodava, só muito poucas vezes pedia um real pra inteirar alguma parte do todo que mirava.

— Um dia tentei acordá-lo, mas ele nem se mexeu. Estava morto. Morreu dormindo, segundo disseram. Eu calculo que não completou nem 60 anos e tinha problemas de circulação, pois as pernas eram inchadas. Talvez uma overdose, embora ele dissesse que não usava drogas, apenas cachaça. Ele costumava dizer que não tolerava drogas, discutia muito com pessoas que traziam drogas ao grupo, relata Cristiane.

O grupo a que se refere Cristiane era o numeroso contingente de moradores de rua que por muitos anos assentou acampamento na mais importante porta de entrada para o Além-Linha. Sua loja, com estacionamentos sob marquises largas, era um generoso abrigo para sem-teto, morador de rua, mendigo, trecheiro, noiado ou qualquer outra definição para as pessoas que vivem sem um teto sobre a cabeça.

— Toda manhã quando a gente chegava encontrava os vestígios da noite, aquelas embalagens (plástico para maconha e crack, pinos para cocaína) jogadas no chão ou nos vasos de plantas. Mas o Sansão nunca nos causou problemas, era muito educado e cortês, e nem sempre estava dormindo quando chegávamos.

Sansão dormia sob a marquise do estacionamento lateral da loja, anexado ao pátio do posto de combustível vizinho. É o local mais seguro contra intempéries e outros inimigos externos. O outro lado da marquise protege o estacionamento da Rua Moacyr Figueira, onde uma família inteira passou meses acampada depois de perder a casa em uma ação de despejo.

— Foi antes da pandemia de 2020. Eles chegaram aqui e armaram até uma barraca. Depois conseguiram a liberação de banho no posto e foram ficando. As pessoas me perguntavam: e você deixa? Eu respondia, fazer o que? A via pública é pública. Até que o um dia o chefe da família arranjou uma casa e foram embora, mas ainda ficaram uma das filhas e o genro, que provavelmente eram usuários de droga e continuaram na rua.

Na rua ou no jardim, pois do outro lado da Luiz Gama está a Praça Edmundo Valle com árvores frondosas e um canteiro de flores no centro. Ali, oculto por alguns arbustos, tem um sofá oferecendo refúgio para a sorte de quem o encontrar primeiro. E um banco comum de praça. Num dia no final de novembro um jovem estava sentado ao banco manuseando algo que parecia um cigarro artesanal. O sofá era ocupado por uma bola de tecido de lã vermelha por onde um braço coberto de tatuagens emergiu e descobriu uma cabeça vestida de touca preta.

O rapaz salta do sofá e começa a enrolar a manta vermelha para enfiá-la em uma mochila verde. O rapaz do banco comum de praça termina de enrolar o cigarro, acende, dá uma tragada e passa para o rapaz que fecha a mochila. Este último se apresenta como Josafá:

— Eu vim de Belém, passei por São Paulo e estou há uma semana procurando trabalho em Sorocaba, faço qualquer serviço, mas gosto mesmo é de lutar muay thai. Tá vendo isso aqui? O osso foi arrancado na porrada, não teve cirurgia, diz, deitando o nariz para um e outro lado, como se fosse uma borracha.

Seu nome é Josafá e não tem contribuição alguma a dar para qualquer pesquisa sobre moradores de rua que pretenda traçar o seu perfil. “Eu ainda sou muito novo na rua”, afirmou. E você? Pergunto ao jovem que tragava o cigarro artesanal. “Só vim aqui pra fumar com meu amigo”.

O céu como teto, o Bom Prato como cozinha, o rio como banheiro

Num banco da Praça Coronel Fernando Prestes, centro de Sorocaba, o argentino Ademir Telés dobra uma folha de jornal, faz uma avião e o arremessa até as mãos de Yasmim, que sorri e o devolve. Em seguida, Telés desfaz o avião e o transforma em um M, sendo aplaudido por Yasmim e seu parceiro Michel.

Yasmim e Michel vieram de Votorantim, Telés de Salta, Argentina.

Existe alguma regra para viver nas ruas?

— A regra é sobreviver. Temos todo um céu como teto, a chuva e o rio para tomar banho, responde o argentino.

— Pras necessidades temos os banheiros públicos. Eu até lavei minhas roupas lá, acrescenta Michel, mostrando duas camisetas estendidas no encosto do banco.

— E para comer?

— Ninguém nega um real pra gente matar a fome, responde Michel

— O que dá pra comer com um real?

— Ôpa! Dá pra almoçar muito bem almoçado no Bom Prato, ali perto do Regional e se não tiver um real é só esperar dar 14h que ali na frente tem um restaurante que faz doação, ensina Michel.

Telés vem mangueando desde Buenos Aires, passou por Curitiba, Rio e Brasília antes de assentar-se ao banco da praça. Yasmim e Michel estão vivendo uma segunda fase nas ruas.

— Eu passei um ano nas ruas em Votorantim. Depois arranjei um emprego, aluguei e mobiliei a casa. Passei um ano trabalhando, mas perdi o emprego e voltei pra rua de novo, já faz um ano que estamos vivendo assim. Em Votorantim também está havendo uma abordagem da Prefeitura. Vieram pra cima de mim e eu falei, comigo não, conheço meus direitos. Daí viemos pro Vitória Régia, agora faz 17 dias que estou aqui na praça, relata Michel.

— Qual é sua profissão?

— Faço qualquer serviço de pintura e manutenção residencial. Se alguém me arranjar um trabalho eu me ergo de novo, garante Michel enquanto ajeita a mochila no ombro.

O trio se despede avisando que está na hora de manguear um rango. Descem pela rua XV de Novembro rumo ao rio Sorocaba, Terminal São Paulo, Poupatempo, Rodoviária, Complexo Hospitalar e, finalmente, Paróquia de São Lucas, onde está o restaurante Bom Prato. A meta é manguear “três real” até lá.

Profissional em reabilitação bilíngue quer sair das ruas e voltar pra casa

A vida nas ruas não é para amadores. Além de tempo ruim, é preciso encarar outras adversidades como a falta de banheiro, hostilidade de parte da população e a exposição à violência. “Não acredito que alguém possa gostar de viver nas ruas”, comenta o ex-terapeuta José Carlos Viana, 60 anos, fluente em inglês e espanhol. Ele diz que passou a viver na rua depois que se separou da esposa e começou a pandemia de coronavírus em 2020.

Num sábado destes, estava há oito dias sentado numa calçada da Rua da Glória, travessa da avenida General Carneiro, nas imediações da UPH Zona Oeste. “A gente não tem onde tomar banho, usar um banheiro limpo, ver uma televisão sem ser enxotado que nem cachorro”, relata. “Tem gente que acha que morar na rua é uma decisão espontânea tomada por falta de juízo ou preguiça de trabalhar, mas além das necessidades e do preconceito é muito perigoso”, avisa.

Ele próprio quase foi assassinado quando estava dormindo na frente da Academia Ghimper do Largo do Divino, rota da peregrinação de moradores de rua no vaivém entre o centro e o albergue do SOS. “Um dia amanheci internado na UPH porque alguém deu uma tijolada na minha cabeça enquanto eu dormia. Levaram só meus óculos, certamente por algum noiado que transita por ali, pois eu tinha uma relação tranquila com o pessoal da academia e os comerciantes da rua”, comentou.

Depois que teve alta, Zé Carlos decidiu assentar moradia na frente da UPH, mas foi expulso pela Prefeitura e se instalou na calçada da rua da Glória. Nas proximidades tem um restaurante, onde ele promete jamais voltar a pedir um prato de comida. “Na única vez em que pedi tive que carregar 300 kg de lixo até a caçamba, lá embaixo, para ganhar uma marmita de sobras”, queixa-se.

Zé Carlos diz que é auxiliar de terapia para dependentes químicos, mas que nunca foi usuário de qualquer droga que não seja a cachaça; nem cerveja bebe. Aprendeu o ofício na clínica Maxwel Jones, de Atibaia, onde trabalhou durante 16 anos. Maxwell Jones era um psiquiatra sul-africano radicado na Escócia que, em 1953, propôs um novo conceito de recuperação de dependentes químicos. Depois virou grife de clínicas e comunidades terapêuticas. “A clínica de Atibaia é de propriedade do psiquiatra Sabino Ferreira Farias Neto e já foi considerada a maior da América Latina”, informa Zé Carlos. Chequei a informação no Google, é exata, exceto quanto ao tamanho, pois não tem dados.

Com a experiência adquirida em Atibaia, ele conseguiu contratos para trabalhar na Europa, onde viveu por cinco anos entre Montpellier, na França, Lisboa e Viena, sempre atuando como auxiliar de terapia em tratamentos individuais de dependentes químicos, uma espécie de personal trainer. “Eu ficava em um apartamento com o paciente executando um cronograma de atividades esportivas, artísticas e sociais”, explica. Lá ele se comunicava com os pacientes em inglês ou espanhol. Embora tenha morado na França, não aprendeu o idioma. “No me gusta.”

Zé Carlos não se recorda de qual período trabalhou na Europa, mas lembra-se que desde que voltou ao Brasil mudou o ramo de atividade e passou a trabalhar com manutenção predial.

— Faço todo serviço de pintura e reparação do sistema elétrico e hidráulico.

— Você gostaria de voltar a trabalhar?

— É o que mais desejo, todo dia peço a Deus para arranjar trabalho e alugar uma casa.

— Onde você morava?

— Na rua Fernando Costa, paralela à avenida General Osório, na Vila Carvalho.

— Você nasceu na Vila?

— Nasci em Guajeru, na Bahia, e vim para São Paulo com minha mãe aos seis meses de idade. Nunca conheci o meu pai, nem tem o nome dele na minha certidão de nascimento.

— Quando você decidiu vir para a rua?

— Eu não decidi vir pra rua, a vida me deu esta condição. Eu me separei da mulher no começo da pandemia. De repente tudo ficou fechado e meus clientes desapareceram.

— Não é mais cômodo viver sem ter que pagar boleto, aluguel, imposto de renda?

— Ninguém em sã consciência deseja viver na rua, sem ter um banheiro, um banho, uma tomada para carregar o celular, tendo que pedir um café ou uma refeição e ser esculachado. Sentar num bar para ver televisão e ser tocado que nem cachorro.

— Viu o jogo de ontem?

— Não vi, mas ontem foi meu dia de sorte. Um jovem, bastante jovem, perguntou se eu estava com fome e me deu 60 reais.

— Mas, você tenta arrumar trabalho?

— A gente acaba ficando deslocado, ninguém quer dar oportunidade para um homem de 60 anos em condições de rua.

— Aceita que eu publique sua foto e diga que você está procurando emprego?

— Pode publicar que eu agradeço.

Quem tiver trabalho para Zé Carlos pode encontrá-lo na Rua da Glória, quase na esquina com a avenida General Carneiro, primeira travessa à direita após a UPH no sentido bairro.

Proibido doar comida

O gerente do SOS, Vanderlei da Silva, também diz desconhecer advertências ou ameaças feitas pela Prefeitura aos comerciantes que doam alimentos aos moradores de rua. Mas o Portal Porque entrevistou um dos comerciantes ameaçados nas proximidades do SOS.

“Eu não estava aqui, foi minha esposa quem relatou que foi abordada por pessoas que diziam ser da Prefeitura, não usavam uniforme e nem crachás. Disseram que o restaurante poderia ser multado e até fechado se continuássemos a doar comida, pois já existe o SOS com esta finalidade. Eu não posso deixar comida estragando quando tem tanta gente passando fome, eu sou um cristão”, argumenta o comerciante que também não quer aparecer para não sofrer perseguição.

O empresário acredita que a ofensiva da Prefeitura possa estar atendendo às reclamações de outros comerciantes das redondezas, aborrecidos com o aumento da frequência de moradores de rua nas imediações. Desde que a municipalidade intensificou a repressão no centro da cidade, a Avenida Doutor Luiz Mendes de Almeida, que liga o Largo do Divino à rodovia Raposo Tavares e à Ceasa, se tornou a principal rota dos peregrinos que buscam teto e comida após serem expulsos das áreas nobres.

A operação municipal vem somar-se ao crescimento da população de rua registrado em todo o Brasil nestes tempos conturbados em que o País retornou ao mapa da fome registrando cerca de 38 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza (lei mais aqui).

Mas, o gerente do SOS atribui o aumento da população de rua à pandemia de coronavírus que teve seu apogeu entre 2020 e 2021. “Aumentou bastante, principalmente depois da pandemia. Antes atendíamos uma média de 70 pessoas, hoje a média é 110 por dia. A pandemia gerou uma questão relacionada ao desemprego e uma questão psicológica, aumentando o fluxo de pessoas que vieram para Sorocaba de outras cidades”, argumenta.

Secom não responde às perguntas da reportagem

Os servidores da Prefeitura que prestam serviços ao SOS se recusam em dar entrevistas alegando que só a Secretaria de Comunicação pode falar sobre os serviços públicos. Mas a Secom nunca respondeu a um questionário enviado por e-mail. A mensagem foi enviada na tarde de 24 de novembro. No dia seguinte a reportagem telefonou para a Secom perguntando se o email seria respondido e ainda aguarda uma manifestação.

Entre outras questões, a reportagem quer saber como está sendo encaminhada a proposta do prefeito de criar um comitê metropolitano para enfrentamento a uma possível migração dos usuários da cracolândia para o interior de São Paulo e se é proibido doar alimentos para os moradores de rua.

*Foram usados nomes fictícios para evitar problemas às pessoas em situação de rua que conversaram com a reportagem.

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