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Nos 165 anos de João de Camargo, devotos reafirmam sua fé em cerimônia na capela

Combatido pela sociedade de sua época, Nhô João foi preso 18 vezes por curandeirismo, mas a legião de devotos só cresceu

Davi Deamatis (Portal Porque)

Cerimônia celebrou na quarta-feira os 165 anos do filho de escravos que se tornou líder espiritual, contra os ditames da ordem vigente. Foto: Reprodução

Mário Luiz Oliveira, 71, aposentado, não sai de casa sem o santinho em que estão impressas a oração e a imagem de João de Camargo, o Nhô João, fundador da Capela do Senhor do Bonfim. “Eu peço proteção, ele me dá; preço paz e conforto, e ele me dá. Nhô está em mim e em minha casa: lá tenho o busto dele, de Nossa Senhora, de Iemanjá e da Escrava Anastácia”, disse Mário.

Mário gosta de se lembrar dos tempos de criança em que ia de caminhão com o avô Adolfo Clemente, filho de escravos, e com o pai, Mário Trindade de Oliveira, da zona norte à capela, na década de 50, quando a avenida Barão de Tatuí, onde está a igreja, era de terra. Eles eram católicos, mas igualmente devotos de Nhô João e respeitavam todas as religiões.

Sempre que pode, Mário vai à Capela rezar diante da imagem de Nhô João e dos outros santos e santas lá existentes e toma a “água milagrosa” que ainda é servida na capela e tem “finalidade curativa, se não do corpo, ao menos da alma da gente”.

A exemplo de Mário, cinquenta devotos passam pela capela diariamente. Exceto aos domingos, quando o número de visitantes chega a cem”, segundo Dilmar Donizete de Oliveira Niteroy, celebrante dos terços dos quais participam em média trinta pessoas semanalmente.

É Dilmar ainda quem comenta: “Milhares de pessoas ainda hoje são devotas de Nhô João, a quem recorrem, por meio de orações, e com muita fé, pedindo a ele bênçãos e curas mesmo depois de 81 anos de sua morte, ocorrida em 1942. E são por ele atendidas no plano espiritual.”

Terço de homenagem

Em homenagem aos 165 anos de nascimento de João de Camargo Barros, o Nhô João, foi celebrado o terço na Capela Senhor do Bonfim, na noite de quarta-feira (5). Participaram da cerimônia 170 devotos do preto velho e bom da Água Vermelha.

Estudioso da vida e obra de João de Camargo, José Rubens Incao abriu a celebração fazendo um resumo da vida do homenageado, que foi escravo e acabou se revelando um líder negro, religioso e milagreiro de reconhecimento internacional.

Folhas da magnólia

No fim do terço, cada participante recebeu um botão de rosa, um pedaço de bolo de cenoura com cobertura de chocolate e chá de magnólia.

Dilmar comentou que “Nhô João tinha o hábito de distribuir folhas e chás de magnólia aos que lhe faziam consultas. E recomendava que com elas fizessem chá. Há muita gente que atribui a essa planta poderes especiais de cura. Existe até um rito adotado por algumas pessoas que vêm à igreja para buscar as folhas e com elas rezar a Nhô João pedindo alguma graça. Em seguida colocam a folha debaixo do travesseiro até que sequem. E assim terão o pedido atendido.”

“A fé em Deus é que cura”

José Rubens informa que João de Camargo “recomendava chás e orações, distribuía pequenas guias – pedaços de papéis, com inscrições manuscritas e posteriormente impressas por carimbo e em gráficas, mas, acima de tudo, recomendava fé, que todos acreditassem em Deus, não perdessem a esperança, confiassem.”

E mais: “Ele dizia sempre aos que o consultavam que não era ele, mas a fé de cada um em Deus é que curava.”

“E o quê é um milagre?” – pergunta José Rubens, propondo uma resposta: “É ouvir o outro. Acolher. Esta é a igreja de João de Camargo: igreja do acolhimento, de amorosidade.”

Ecumênico

Denise de Camargo, representante comercial, participa das orações do terço que ocorrem na Capela há muitos anos e esteve nesta de homenagem ao nascimento do Nhô João. “Esse líder negro, ex-escravizado que tanto lutou pelo povo negro, pelo pobre, e curandeiro que desenvolveu uma religião sincrética, e nos deixou um enorme legado cultural, histórico e religioso. Mas eu sinto falta de uma cerimônia que seja ecumênica, em harmonia com a prática de Nhô João.”

Paula Mendes, a devota que fez apelo, via Facebook, para que particulares e poderes públicos auxiliem na reconstrução do muro que caiu durante as chuvas do início do ano e das trincas nas paredes (leia aqui), também compareceu ao terço.

“Eu rezo pela capela. E cobro das autoridades que contribuam com esse patrimônio histórico tombado em 1995.” Ao fim da cerimônia, ela falou com Maurício Rodrigues da Silva (Muri), que lá esteve representando o prefeito Manga, pedindo-lhe empenho na ajuda à capela.

Nhá Chica, a mãe

João de Camargo Barros nasceu em Sarapuí, dia 16 de maio de 1858. Ele e mãe, Francisca, a Nhá Chica, eram escravos na fazenda de Francisco de Camargo Barros, de quem recebeu o sobrenome. Era analfabeto.

José Rubens conta que “João de Camargo foi educado no catolicismo por sua mãe, Nhá Chica, benzedeira, conhecedora de ervas medicinais, e que passou ao filho a arte da cura tradicional”.

Em seguida à libertação dos escravos, ele veio a Sorocaba. Trabalhou em subempregos, como ocorria a todos os ex-escravizados, e viciou-se em álcool, mas jamais deixou de praticar a caridade, rezar e atender aos necessitados que lhe pediam socorro.

Líder

Depois de uma experiência mística em que vozes o incitaram a deixar a bebida e a assumir a missão que Deus lhe confiava — construir a igreja e socorrer os necessitados — Nhô João atendeu ao chamado, fez a capela e transformou-se num líder religioso reconhecido em todo o país e no mundo.

José Rubens conta que o fenômeno João de Camargo e sua igreja atraíram a atenção de jornais, revistas (locais, nacionais e até internacional), e de pesquisadores como o sociólogo Florestan Fernandes, que veio a Sorocaba para estudar o fenômeno de Nhô João e sua Igreja Misteriosa da Água vermelha.

Fake news

João de Camargo também sofreu ataques violentos, foi processado dezoito vezes acusado de curandeirismo e charlatanismo. E, a respeito dele, muita mentira (que hoje seria chamada de fake news) e difamação foi divulgada pela imprensa da época.

O historiador Carlos Cavalheiro, autor do livro “João de Camargo, o homem da Água Vermelha” (Maringá, PR: A.R. Publisher Editora, 2020) menciona algumas das mentiras, piadas e ataques que o preto velho sofria por meio da imprensa:

O profeta

O Jornal Cidade de Sorocaba (12 ago 1916 p. 1) diz:
Piadas – “O ´Propheta´ João de Camargo, vaticina para breve a inundação [sic] de Sorocaba pelas águas da represa da Light. Dos Jornaes .”

“Geringonça de Curar”
Segundo o jornal O Sorocabano (8 dez 1918, p.5), “devido a uma nova creação do já veterano João de Camargo, aquelle homem que dia a dia mais se aperfeiçoa na geringonça macabra de curar a humanidade por meio de fitas, fitinhas e fitões, muito mais legítimas que as passadas pelos Irmãos Marcianos em seus cinemas.”
E assim o jornal encerra a nota: “Devido a isso, [João de Camargo] pelas suas descobertas, faz jus, dia a dia, a um bom lugarzinho no manicômio local.”

Pelo telefone

Cavalheiro, no livro já citado (p. 75) relata outra tentativa de desmoralização do Nhô João, via imprensa, por meio da nota publicada pelo Diário Carioca (14 dez 1928, p. 2): “A sua Igreja é chamada de Tenda dos Milagres.”

O jornal também veiculou a informação de que João de Camargo “se utilizava de um aparelho de telefone com o qual dizia comunicar-se com o além, mantendo prosa com São Pedro e até com Jesus Cristo.”

Sábio

Cavalheiro conta que “Um ilustre jornalista Sorocabano, Joubert Wey, correspondente do jornal do Diário Nacional, escreveu uma reportagem com enfoque que se contrapunha aos ataques e campanhas de desmoralização de que Nhô João era vítima.

Quando chegou à capela para entrevistar Nhô João, Wey e o fotógrafo ouviram dele a pergunta:

“Os moços têm lido o que dizem de mim?”

‘’Sim. Cobras e Lagartos.”

“Parece pra mecê. Elles estão cantando a minha glória. Quanto mais falam, mais gente aparece aqui.”

Territórios

De fato, como revela José Rubens,“a partir de 1910, o templo foi sendo ampliado, assim como aumentou os que procuravam João de Camargo em busca de auxílio e conforto”.

Para diminuir as perseguições, José Rubens diz que Nhô João de Camargo, orientado por seu advogado, Juvenal Parada, criou uma associação para regularizar seu trabalho e evitar novos problemas. “Surge a Associação Espírita e Beneficente Capela Senhor do Bom Fim, legalmente instituída em 1921.”

Além da Capela, João de Camargo fundou uma escola e uma banda musical.

Carlos Cavalheiro cita um versículo bíblico como síntese da obra de João de Camargo: 1 Coríntios 13: 2: “Ainda que eu tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda que tivesse toda a fé de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, eu nada seria.”

E no aspecto histórico do homem João de Camargo, Cavalheiro destaca que ele construiu uma territorialidade negra em Sorocaba: “Essa construção pressupunha um embate entre camadas sociais e, por isso, tinha por objetivo o uso, a posse e a propriedade do espaço para a manutenção da comunidade: o território de João de Camargo.”

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