
Prefeitura escolheu a marca e deu especificações precisas, que foram consideradas direcionamento da licitação; apesar disso, kits de R$ 780,00 a unidade apresentaram falhas e foram enviados para crianças montarem em casa. Foto: divulgação
Em ação civil pública protocolada nesta quinta-feira, 4, na Vara da Fazenda Pública de Sorocaba, o Ministério Público do Estado de São Paulo solicita, com efeito liminar, o bloqueio de bens do prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) e do secretário da Educação, Márcio Bortolli Carrara, ao lado da empresa Carthago Editorial e de seu sócio-diretor Omar Freddi, a fim de assegurar a devolução de mais de R$ 26,2 milhões gastos pela Prefeitura na compra de 30 mil kits de robótica, no final de 2021.
O MPSP também solicita a condenação de Manga, Carrara e demais denunciados com base no artigo 12 da Lei de Improbidade Administrativa, que implica a obrigação de os envolvidos ressarcirem o prejuízo integral corrigido aos cofres públicos e, no caso dos agentes públicos, perda da função pública e suspensão dos direitos políticos por doze anos, entre outras sanções previstas em lei. Também foi pedido o afastamento imediato de Carrara da Secretaria de Educação (Sedu).
A ação assinada pelos promotores de justiça Cristina Palma (Educação) e Eduardo Francisco dos Santos Junior (Patrimônio Público) aponta que a Secretaria de Educação, “em conluio com o sr. Prefeito Municipal”, “(…) está mergulhada em um verdadeiro esquema para lesar os alunos da rede de ensino (…)”, por meio de aquisições desnecessárias e superfaturadas, “em que pesem os imensos investimentos dos quais a educação está carente”.
“Tudo indica o ajuste de vontades entre Prefeito, Secretário da Educação, o dono da empresa Carthago e outros de sangrar os cofres públicos, notadamente as verbas da educação, para financiar um grupo com interesses escusos.”
Mais que isso: citando fatos apurados pela Polícia Federal, no âmbito da Operação Prato Feito, a ação civil pública denuncia a existência de uma organização criminosa, constituída com o objetivo de fraudar licitações, praticar “corrupção ativa e passiva e auferimento de vantagens ilícitas por meio de desvio de recursos públicos”. A empresa Geek Edições e Tecnologia Ltda é citada como detentora dos direitos de fabricação dos kits “Maluquinho por Robótica”, exigidos pela Prefeitura na licitação, numa manobra que o MP aponta como claro direcionamento.
O kit escolhido pela Prefeitura de Sorocaba – com especificações de marca e características técnicas que impossibilitariam a concorrência de produtos similares – foi alvo de tentativas de impugnação do Conselho Municipal da Educação (que não foi consultado sobre a compra dos kits) e de empresas participantes da licitação, sendo todas essas tentativas frustradas pelo secretário. Foram encontrados no mercado diversos kits semelhantes, que poderiam ser utilizados com igual proveito, por valores bem inferiores aos R$ 780 pagos por unidade pela Prefeitura.
Segundo ainda a ação do MP, para dar uma aparência de regularidade às licitações, foi formado um grupo de empresas de fachada ou sem qualquer estrutura ou patrimônio, às quais o fabricante exclusivo da marca fornecia os kits pela metade do valor. As empresas, então, simulavam uma concorrência, a fim de elevar os preços dos itens vendidos às prefeituras. Curiosamente, na primeira tomada de preços, em Sorocaba, os valores solicitados pelas participantes, próximos dos R$ 30 milhões, diferenciavam entre si em poucos reais.
Tudo muito suspeito
Além disso, como ficou constatado pelo Caex (Centro de Apoio à Execução), órgão de apoio do Ministério Público, a Carthago – empresa vencedora da licitação, e que teve dois outros contratos com a Prefeitura de Sorocaba suspensos judicialmente, depois de intervenção do MP – tem como sede uma sala que foi encontrada fechada, “sem qualquer funcionário ou empregado no local, bem como ausência de livros comerciais ou obrigatórios durante a diligência, o que nos traz estranheza, em se tratando de uma sociedade que movimenta milhões com o Poder Público”.
A ação prossegue denunciando que os kits, na verdade, não são de robótica, pois não contêm elementos de programação, e que, ao chegarem nas escolas, tiveram pouca utilidade pedagógica. Os diretores de escolas foram surpreendidos com a chegada de milhares de kits, que não foram precedidos de qualquer discussão ou preparo do corpo docente. Um diretor de escola ouvido pelo MP contou que um instrutor foi à sua unidade, para dar “meras noções de como montar os bonecos”, sem, porém, qualquer orientação sobre o tema robótica.
Sem orientação e diante das dificuldades apresentadas pelos kits, como falta de peças, muitos professores não conseguiram montar os brinquedos pedagógicos e “nem mesmo a pessoa que veio ministrar o curso conseguiu montar seu próprio robô”. O custo elevado dos kits, a escolha de uma marca específica, o mal aproveitamento pedagógico do material (noticiado pelo Porque em 8 de abril – leia aqui) são colocados na ação do MP em contraste com outras carências da rede municipal.
“E as crianças portadoras de deficiência, que sofrem na Justiça em busca de um auxiliar de classe, diante das incontáveis ações em tramite? E o reforço escolar pós-pandêmico? Seria mesmo a melhor opção para quem? O gasto de vinte e seis milhões de reais em kits de madeira que nem os professores conseguiram montar? Que as crianças levaram para casa para montar com os familiares diante da própria falta de estrutura e suporte para montar na sala de ensino?” — argumenta a ação.
Já o afastamento do secretário Carrara é apontado como medida de proteção aos recursos públicos, uma vez que a Sedu já motivou outras intervenções do Ministério Público, anteriormente, quando da tentativa de aquisição dos kits de educação financeira e do projeto Palavra Cantada: “(…) trata-se da terceira ação visando proteger o erário da malversação do dinheiro educacional, pois, caso não fossem as intervenções anteriores (…), o prejuízo estaria triplicado.”
Como exemplo de malversação do dinheiro público pela Secretaria de Educação, o MPSP cita “a escandalosa desapropriação havida em um prédio para supostamente abrigar a sede da secretaria de educação, mas que, alvo da investigação no gaeco, desvendou-se novo esquema na secretaria de educação para superfaturar o valor real do prédio, o que é alvo de processo crime (autos n. 1000864-58.2023.8.26.0602) e também de inquérito civil perante a promotoria da improbidade administrativa (29.0001.0145954.2022-57).
Denúncia do CMESO
A ação civil pública surgiu na esteira de inquérito instaurado pelo MPSP, após representação formulada pelo CMESO (Conselho Municipal de Educação de Sorocaba). O Portal Porque acompanha o caso desde a representação protocolada pelo integrante do Conselho Municipal de Educação Alexandre Silva Simões, que é professor de robótica da Unesp Sorocaba com 25 anos de experiência na área.
Simões, que estava na presidência do Conselho em 2021, quando submeteu mais de 50 páginas minuciosas de denúncias sobre os kits entregues na rede municipal de ensino, explica: “A robótica é uma ferramenta pedagógica de grande valia para o aprendizado das crianças. Infelizmente, não é essa robótica que foi implantada no município de Sorocaba. A reprodução pelo aluno de instruções de montagem de um kit de madeira com parafuso sem reflexões cognitivas associadas tem valor pedagógico que é extremamente reduzido, se não for nulo.”
“De fato, não há uma fundamentação pedagógica que sustente a aquisição desses kits ou que embase o processo que originou essa compra”, prossegue Simões. Além disso, pontua, “os kits de robótica educacional que existem no mercado, há muito tempo, têm microprocessadores ou outros elementos computacionais que permitem abordar com as crianças, por exemplo, noções de programação, o que não é o caso desses kits que não têm nenhum tipo de controle. Eles são obsoletos e nem sequer deveriam ser chamados de robôs, são apenas brinquedos de montar, de madeira.”
Além dessas questões técnicas e pedagógicas, a denúncia de Simões, que teve sequência com o pedido de investigação e, agora, com a ação do MP, mostra a série de vícios na licitação. “Eu realizei um levantamento bastante detalhado e o kit mais ‘elaborado’ desse conjunto custa na ordem de R$ 70, e o município pagou R$ 790 em cada kit e são 33 mil kits nesse valor”, ressalta.
Sem consulta
Os conselheiros tomaram conhecimento da compra dos kits de robótica por meio das redes sociais do prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) e, na época, em setembro de 2021, Alexandre protocolou um ofício na Secretaria Municipal de Educação solicitando os documentos relacionados à proposta e os procedimentos administrativos, mas não obteve nenhum retorno da Prefeitura.
O Conselho apontou vários pontos de divergência no próprio pregão eletrônico (forma de licitação) número 165/2021, que selecionou a marca “Maluquinho por robótica”, que leva a grife do artista Ziraldo, marca que exige licenciamento. A Carthago Editorial foi a empresa que atendeu a essa exigência (leia aqui).
“Espero que a Justiça possa reconhecer que não houve justificativa pedagógica nessa compra, que não representou ganho pedagógico para as crianças; que houve um sobrepreço gritante na aquisição; que o município, deliberadamente cerceou a concorrência pública que poderia ter acontecido, e, portanto, garanta o retorno desses valores aos cofres públicos”, afirma Simões.
Como membro de um conselho de políticas públicas, Simões entende “que é fundamental combater, a todo custo, a cultura de que as decisões na educação possam ser monocráticas. Não podem. A legislação não preconiza isso. A educação – ensina — é naturalmente fruto de um debate, de construção coletiva feita por educadores junto suas comunidades, e não pode ser refém do pensamento de um gestor do momento.”