Em nota de repúdio ao que classificam como uma “política higienista”, o Fórum da Luta Antimanicomial em Sorocaba (Flamas) e o Instituto Contrapoposta, ambos militantes da saúde mental e direitos humanos, criticaram a postura do governo municipal, que iniciou na sexta-feira, 10, uma ação batizada de “Barreiras Humanitárias”, com o intuito de barrar a entrada e permanência de dependentes químicos em pontos da cidade.
Divulgada nos canais oficiais como um “projeto piloto”, a operação é realizada por equipes da Secretaria da Cidadania (Secid), Secretaria da Saúde (SES) e Guarda Civil Municipal (GCM), com a intenção de identificar essas pessoas, conferir se têm algum problema com a justiça e encaminhá-las ao acolhimento ou locais de tratamento.
Em nota, as entidades formalizam seu “repúdio à política higienista contra a população que faz uso prejudicial de álcool e outras drogas, pelo prefeito Rodrigo Manga, e apoiada pelos prefeitos da Região Metropolitana de Sorocaba, por Quirino Cordeiro Júnior e pelas forças de segurança”.
Para os militantes das entidades que assinam a nota, essa ação é arbitrária em diversos pontos, e fere questões legais, como reforçou Thaís Lopes, advogada do Flamas, “Há violação de direitos, e não apenas no de ir e vir, mas de direitos humanos”, afirmou, reforçando que há outros instrumentos para tratar a saúde mental.
“A ‘barreira’, de acordo com o relatado pelo prefeito, será composta de equipe policial, de assistência social e de saúde mental, que abordará a população em situação de rua para constatar se há algum ‘problema com a justiça’. Não havendo, as pessoas abordadas serão encaminhadas para ‘tratamento’ ou ‘acolhimento’. O prefeito mencionou, também, a necessidade de avanço com relação às internações compulsórias, declaração que, por si só, nos causa imensa preocupação”, pontua o manifesto.

“A ‘barreira’, de acordo com o relatado pelo prefeito, será composta de equipe policial, de assistência social e de saúde mental, que abordará a população em situação de rua para constatar se há algum ‘problema com a justiça’. (Foto: Secom Sorocaba)
De acordo com as entidades, a situação já começa errada pois, para a reunião realizada com o prefeito Rodrigo Manga e os prefeitos da Região Metropolitana de Sorocaba (RMS), no último dia 3, não foram convidados representantes da saúde mental, além de terem sido impedidos de acompanhar o pronunciamento do prefeito.
Essa política de “portas fechadas”, sem a presença de trabalhadores da saúde e da assistência social, das entidades que defendem o SUS, da saúde mental e os direitos humanos, sem representantes dos movimentos sociais especializados na temática, do conselho municipal de saúde e tampouco da coordenação de saúde mental do município, para as entidades, evidencia que há outros tipos de interesses envolvidos na ação, como fomentar a ampliação de leitos em comunidades terapêuticas e clínicas de recuperação.
“Nos arriscamos a dizer que se sentaram à mesa aqueles que corroboram com essa narrativa única produzida, a do combate às drogas, de forma contextualizada e proposital, com o objetivo de sustentar a ampliação de vagas de internação em comunidades terapêuticas e clínicas de recuperação, com a destruição da rede de atenção psicossocial e do SUS.”
Além de prefeitos e forças de segurança, estava presente na reunião Quirino Cordeiro Júnior, o secretário nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, que, em declaração recente, afirmou que a luta antimanicomial é o terraplanismo da saúde mental. “Estamos preocupados, pois comentaram, também, sobre a criação de um hospital para desintoxicação, o que, para nós, nada mais é do que um manicômio”, falou Thaís.
NA CONTRAMÃO
Além da falta de transparência com as ações, há, ainda, a problemática da falta de dados comprobatórios que justifiquem a ação. Por exemplo, enquanto a Prefeitura sustenta a necessidade da medida para conter a migração de pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas da Cracolândia de São Paulo para o município de Sorocaba e RMS, não há números ou fontes que comprovem essa realidade, tampouco foram apresentados estudos que apontem os locais escolhidos para receberem as barreiras, como sendo a porta de entrada.
Para Thaís, esse discurso de Manga serve apenas para causar pânico na população, a fim de que concorde com as tais medidas aplicadas. “Causar pânico social e convencer a população sobre a necessidade de um endurecimento das forças de segurança e a aposta na estratégia das internações forçadas parece ser a tônica desse ‘combate às drogas’, que deve ser criticamente analisado e visto como realmente é: combate à população que faz uso prejudicial de álcool e outras drogas”, defende.
Para as entidades, ao invés de propor tais medidas que vão contra o que se pede a legislação e os estudos sobre saúde mental no mundo, o prefeito deveria fomentar, ampliar e melhorar os equipamentos já existentes. Como explicam, o que é apresentado por Manga como novidade e solução de problemas que são crônicos na sociedade, já é realizado por várias políticas públicas balizadas por princípios internacionais, constitucionais e legais, que deveriam ser fortalecidas e implementadas. E reiteram, que o SUS tem aparelhos especializados para tal tratamento, como o Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD) “Saca Só” em Sorocaba.
O problema é que há sucateamento e precarização desses instrumentos, o que, segundo as entidades, parece fazer parte de um projeto de massificação de internações, que é o contrário do que prevê a legislação brasileira, que propõe um cuidado de base comunitária, em liberdade e baseado na garantia de direitos, sendo a internação o último recurso.
Um ponto emblemático nessa discussão, lembrou Thaís, é que enquanto o prefeito divulgava medidas arbitrárias para tratar o problema, o CAPS “Saca Só”, único administrado diretamente pela Prefeitura, ficou há mais de duas semanas sem refeição e sem a possibilidade de realizar acolhimento integral nos leitos.
“Esse sim é um dado e merece ser analisado: no exato momento em que o prefeito Rodrigo Manga fez um evento midiático para, ao que tudo indica, promover seu projeto de internações em massa em comunidades terapêuticas, o CAPS AD do município, que é referência no tratamento de pessoas em sofrimento associado ao uso prejudicial de álcool e outras drogas, sob responsabilidade de sua gestão, não tem o mínimo para acolher os usuários: falta comida. É simbólico esse fato, pois os serviços da saúde mental estão literalmente à míngua e não recebem a atenção do prefeito”.
FALTA DE VONTADE
Para os militantes, há, na realidade, falta de vontade política do governo municipal em completar a rede de serviços em Sorocaba. Denunciam que faltam equipamentos estratégicos para o cuidado comunitário em saúde mental, tais como Consultório na Rua, Unidades de Acolhimento para pessoas que fazem uso prejudicial de álcool e outras drogas e os Centros de Convivência, Cultura e Cooperativa (CECCOS).
De acordo com a nota, embora a narrativa apresentada por Manga sobre a necessidade de adotar tais medidas possa soar convincente e atrativa à população alardeada pelo discurso sem embasamento sobre a migração de pessoas da Cracolândia para a cidade, a criação de uma barreira “desumanizante (e não humanitária)”, está na contramão dos avanços da reforma psiquiátrica brasileira no campo da saúde mental, álcool e outras drogas.
“Permaneceremos construindo um projeto de uma sociedade verdadeiramente cuidadora, democrática e sem manicômios, seguiremos produzindo enfrentamentos no campo político e ações emancipadoras no campo do cuidado, com estratégias radicalmente opostas ao encarceramento, à internação forçada e à exclusão social”, concluem.