
“A prefeitura impõe a propaganda de uma terra encantada da educação que está longe de existir e é a mais abandonada que já vi”, diz uma professora com mais de vinte anos de magistério municipal. Foto: Arquivo SMetal
“Tenho mais de duas décadas de magistério municipal em Sorocaba e nunca antes vivi uma situação tão caótica. É desumano para com quem trabalha na área e para com os alunos”, afirma uma professora na zona norte ao Portal Porque. “O desgaste é grande devido à falta de profissionais e aos riscos que correm as crianças sob nossos cuidados.”
Depois de receber reclamações de profissionais da Educação em Sorocaba, o Porque entrevistou diversos deles e também mães de alunos, que falaram sob a condição do anonimato. Entre os muitos problemas apontados, estão: desrespeito à lei de proporção entre adultos e crianças em sala de aula, falta de cuidadores para casos de atenção especial, espaço físico insuficiente, por lei, para abrigar o número de bebês e crianças, entre outros.
Não é raro, segundo uma professora, haver duas ou três alunos “laudados” (com laudo médico), que precisariam de cuidadoras ou acompanhantes, segundo a lei. No entanto, são raros os casos em que a Prefeitura disponibiliza cuidadores. “E, na maioria das vezes, o governo só contrata acompanhantes em casos específicos, depois de receber ordem judicial e correr o risco de pagar multa diária por falta desses profissionais.”
Entre as crianças “laudadas” estão casos de transtorno do espectro autista (TEA), síndrome de Down, problemas cardíacos, atraso motor, atraso intelectual, problemas psiquiátricos, propensão a convulsões, entre outros.
Todas as professoras, auxiliares e mães de alunos entrevistadas pela reportagem pediram sigilo de seus nomes e da localização exata das unidades escolares que mencionam, por temerem represálias e, no caso de servidoras, processos administrativos.
Riscos para crianças
De acordo com outra professora, de uma CEI (Centro de Educação Infantil) da zona leste, além dos casos com laudo, há situações em que o aluno nitidamente tem algum transtorno mas os pais ainda não tomaram providências médicas. “Nós, que estamos há anos na profissão, sabemos reconhecer essas suspeitas de doenças. Às vezes os responsáveis não providenciam laudos porque falta orientação, não conseguem consultas ou, simplesmente, se recusam a reconhecer o problema.”
As professoras relatam que muitas dessas crianças se autoagridem, mordem outras crianças, tentam agredir professores, tentam subir em mesas, entram debaixo de móveis, gritam, se descontrolam, batem a cabeça em mesas, cadeiras, armários e precisam de atenção constante e especial.
Só por via judicial
Uma mãe de aluno com espectro autista afirmou à reportagem que só conseguiu por meio da Justiça que a Secretaria de Educação municipal providenciasse um acompanhante para seu filho, conforme manda a legislação nacional.
“Meu caso não foi o único, faço parte de um grupo de mães de alunos que têm conseguido, via justiça, garantir esse direito ao estudante com laudo de doenças que requerem esses cuidados na escola”, explica a mãe, moradora da zona norte.
Lei nacional
A obrigatoriedade de a escola fornecer profissionais que atendam à necessidades de alunos com deficiência está prevista na lei 13.146/2015, chamada de LBI (Lei Brasileira de Inclusão). A legislação prevê a garantia de “profissional de apoio escolar: pessoa que exerce atividades de alimentação, higiene e locomoção do estudante com deficiência e atua em todas as atividades escolares nas quais se fizer necessária, em todos os níveis e modalidades de ensino”.
Outro direito previsto na LBI é a disponibilização de “acompanhante: aquele que acompanha a pessoa com deficiência, podendo ou não desempenhar as funções de atendente pessoal”.
Dependendo da situação do aluno, segundo a lei, ele deverá contar com três profissionais: o acompanhante/cuidador, o profissional de apoio escolar (responsável pela inclusão pedagógica) e o atendente pessoal. Somente o atendente pessoal, segundo a Agência Senado, não precisa ter vínculo com a escola.
A lei nacional não estabelece que um acompanhante ou profissional similar pode atender mais do que um “laudado”. Ela determina que as necessidades de cada aluno com deficiência devem ser totalmente supridas por esses profissionais.
O Porque apurou, junto a quatro fontes que, em Sorocaba, a Prefeitura divulga ser seu dever providenciar um cuidador para cada três laudados. Mas nem isso é cumprido, segundo professores e auxiliares.
Sobrecarga e licença médica
A ausência de cuidadores e acompanhantes acarreta em sobrecarga para professores e auxiliares, “que ainda estão em número insuficiente”, denuncia uma professora. Segundo afirma, “a cada dia se torna mais comum professores e auxiliares terem que se afastar do trabalho por recomendação médica devido ao desgaste físico e mental”.
“Imagine”, propõe uma auxiliar de educação, “ter que cuidar de 25 crianças de até quatro anos de idade, sendo duas ou três com laudo médico devido a autismo, doenças físicas ou psiquiátricas — e outras duas ou três com suspeita de distúrbio patológico — com apenas um professor e um auxiliar”, relata.
Uma professora do ensino infantil confirma o estresse da auxiliar. “Quando trabalhamos com crianças deficientes, é necessário que a auxiliar [na falta de cuidadora] fique ausente da sala pra trocar fraudas ou dar banho. A gente [professor] tem que cuidar de mais de 20 crianças pra que não se machuquem nem machuquem ninguém. Impossível até contar historinha na forma de aula”, declara.
Nesse caso, além de professora ou professor e da auxiliar de educação, a classe precisaria contar com, no mínimo, um estagiário em educação e um ou dois cuidadores das crianças “laudadas”. Essa é a estimativa de cenário ideal mínimo do ensino infantil, de acordo com outra professora de CEI da zona norte.
Outra professora revela que, na Creche II, na qual trabalha, tem classe com 26 crianças “e apenas duas auxiliares no horário oposto ao da professora”. Segundo ela, teria que ter ao menos um adulto a mais nesse caso.
Salas inadequadas
“A Prefeitura impõe a propaganda de uma terra encantada da educação que está longe de existir e é a mais abandonada que já vi”, diz uma experiente professora de creche na zona leste.
Outros problemas, segundo as denúncias, são classes com alunos além do previsto no módulo [turma] e o espaço físico limitado. “Minha turma, até quatro anos, era para ter 25 alunos, mas tem 26. Na mesma escola, tem sala com 27. Os pais conseguem vaga na Justiça e a Prefeitura vai enfiando mais gente na sala, sem contratar profissionais suficientes para atender as crianças”, afirma uma educadora.
“O ideal era ter um adulto a cada 15 crianças, sem contar cuidadores em caso de laudado. Mas tem classe com 24, 25 só com professora, nem auxiliar de educação tem”, conta a profissional.
“Poucos meses atrás, a Prefeitura contratou auxiliares temporárias pela CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). Mas o que sabemos é que muitas são restritas por causa de LER (lesões por esforços repetitivos), problemas de coluna, entre outros. Como elas têm que carregar crianças, correr atrás, trocar fraudas, logo precisam se afastar do trabalho também”, afirma.
Sobre o espaço físico inadequado, uma professora aponta um exemplo: “Trabalho em uma Creche III. A sala tem 25 metros quadrados. Tirando os móveis, sobram uns 20. Tenho 27 alunos de dois a três anos de idade. O espaço mal daria para acomodar 20 alunos.”
Ela explica que, na hora da soneca das crianças, o ideal seria manter um distanciamento mínimo entre os colchões, mas, devido à limitação da sala, isso se torna impossível.
Assédio moral
“E ainda assim sofremos assédio moral e ameaças de processo administrativo, caso a gente reclame do esgotamento físico e mental que sofremos e da falta total de recursos humanos e físicos para atender as necessidades dos alunos, desde o berçário até o ensino fundamental”, denuncia a educadora de uma CEI na zona norte.
Uma auxiliar em outra CEI daquela região confirma a denúncia de assédio. “Existem diretores novos que são ameaçados pela Prefeitura e, como represália, assediam funcionários. Em uma escola aqui perto sei de duas colegas que não aguentavam mais e abriram processo administrativo contra uma diretora.”