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Bar do Nishi, um modelo em extinção, resiste às modernidades na General Carneiro

Estabelecimento que só funciona à noite e não aceita cartão e nem pix sobrevive à decadência do comércio naquela que foi uma das avenidas mais rentáveis de Sorocaba

João Maurício da Rosa (Portal Porque)

Desde 1966 na mesma esquina, defronte à antiga Delegacia de Polícia e Cadeia Pública, bar deixou de ser mercearia, mas manteve a antiga freguesia. Foto: Renata Rocha/Portal Porque

O Bar e Mercearia Nishi só abre às 19 horas e fecha à meia-noite, não aceita cartão e tampouco Pix. Mas vende fiado se o freguês tiver nome limpo e for conhecido na casa desde sua fundação, em 1966. Foi nesse ano que o comerciante Giro Nishikawa se estabeleceu no ponto comercial, outrora de excelência, defronte ao prédio da antiga Delegacia de Polícia e Cadeia Pública de Sorocaba, na avenida General Carneiro, esquina com a rua Visconde de Rio Branco.

Todos os fregueses do Nishi, porém, pendurando ou pagando em dinheiro, têm direito a um tira-gosto grátis para amortecer a descida da cachaça. Esta é uma antiga tradição dos botecos “raiz”, patrimônio informal da cultura brasileira, atualmente em adiantado processo de extinção na avenida que já foi um dos mais importantes centros comerciais da Região Metropolitana de Sorocaba.

O dono atual do bar, Carlos Nishikawa, completara um ano de vida quando seu pai, Giro, adquiriu a propriedade em troca da Rural Willis que trouxe a família de Capão Bonito em 1966. Caçula de quatro irmãos, Carlos assumiu o comando do balcão com a morte de Giro em 1995, aos 64 anos, coincidindo com o início da derrocada do comércio na General Carneiro.

“Desde a Praça 9 de Julho até aqui tinha o bar Montenegro, o bar Brasinha, o Turco, o Coraio, o Bernardo, o Bocha, a Portuguesa…”, vai citando Carlos, enquanto joga cacheta com o aposentado Antônio Euzébio de Souza, de 72 anos, que toma umas naquele balcão há exatos 50 anos, quando seu adversário no carteado ainda não tinha idade e nem altura para competir.

Culpa da faixa exclusiva

O jogo de cartas é amontoado sobre um pano verde improvisado que cobre parte do balcão, o mesmo que veio com o restante da estrutura adquirida pelo patriarca: dois balcões azuis de madeira formando um L sobre vitrines onde eram exibidos os doces e brinquedos; baleiros de três andares, prateleiras para enlatados, varais para embutidos e defumados, uma balança Filizolla e pilhas de engradados de garrafas. Única peça mais ou menos atual é a TV de tela fina pendurada numa parede.

O aposentado Souza interrompe a lista de botecos citada por Carlos para lembrar que havia também o bar do Américo, mas este era o mesmo bar do Bocha já mencionado. Então Souza resolve incluir na lista os bares das ruas transversais, mas estes não foram tão afetados como os da avenida, que tombaram como dominós acompanhando a decadência das grandes lojas que atraíam freguesia de toda a Região Metropolitana.

Afinal, os bares não serviam apenas bebidas, mas também café e comida para funcionários das lojas e fregueses que vinham de longe para comprar carros ou parafusos na General. “Hoje só sobrevive aqui quem é proprietário do imóvel e tem estacionamento próprio”, comenta Carlos.

É unânime a ideia de que os negócios ruíram por falta de estacionamento, transformado em faixa exclusiva para ônibus, o embrião do BRT (ônibus de trânsito rápido, em tradução livre). Considerada uma estratégia revolucionária de mobilidade urbana, a faixa exclusiva teve sua primeira fase inaugurada na primeira gestão do ex-prefeito Antônio Carlos Pannunzio (1989/1993) junto com os terminais Santo Antônio e São Paulo.

O jornalista Carlos Alberto Maria, que também cresceu na General Carneiro, acrescenta à lista do xará Carlos Nishikawa os bares Continental e da Dona Ditinha. “Dona Ditinha era mãe do Valdir que jogou no Guarani e no Palmeiras. Depois o bar virou a pastelaria do Tada e, em seguida, foi passada para outro japa”, lembra Maria. “E tinha também o Bar Continental, onde eu via televisão até meu pai comprar uma.” O pai de Maria era o Bernardo, citado por Carlos Nishi, que tinha um bar na mesma calçada, mas na Vila Lucy, a 200 metros de distância.

Segundo Maria, alguns bares fecharam bem antes da faixa exclusiva para ônibus, como o de seu pai, em 1984. “Creio que o processo é parecido com a agricultura familiar, onde os filhos, notadamente os japas, não seguiram a atividade dos pais e avós. Na General Carneiro em geral eram pequenos comerciantes naquela época. Grande era o supermercado Ven-Ka”, observa.

Decadência e migração

“Sem estacionamento, os negócios migraram, além do que os bairros mais distantes já criaram vida própria e podem encontrar o produto que procuram nas vizinhanças”, analisa Luís Milton Pires Junior, 44 anos, funcionário do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU) de Sorocaba. Júnior não é arquiteto e nem urbanista, mas não precisa ser especialista para interpretar a debandada comercial da General Carneiro. “Eu moro no Central Parque e minha vida inteira passei por ali”, ressalta.

Júnior lembra que o projeto das faixas exclusivas para ônibus no lado direito da General Carneiro, não foi reproduzido na zona norte, com a implantação do BRT, mais de 30 anos depois. Lá os ônibus evoluíram, têm portas em ambos os lados e, portanto, podem transitar pela faixa esquerda para recolher e desembarcar passageiros nas plataformas instaladas no canteiro central das avenidas Itavuvu e Ipanema, deixando amplo espaço para calçadas e estacionamento na frente das lojas.

E para lá migraram os grandes negócios, o que não está nos planos do Bar e Mercearia de Carlos Nishi, que não arreda pé de sua esquina, não vende e não troca, embora tenha desistido da mercearia há muitos anos, desde que inventaram os supermercados.

Hoje Carlos está localizado entre uma unidade da rede Bom Lugar, aos seus fundos, na Vila Jardini, e o gigante Tauste, em frente, no Jardim Zulmira, pois a General Carneiro também tem disso: você dá um passo e muda de bairro.

O porquê de Carlos abrir o bar somente às 19 horas é um mistério. “Uma questão de foro íntimo”, resume. Num dia destes, ele atrasou 10 minutos, aumentando a ansiedade da clientela que rondava o prédio.

Tão logo ergueu as duas portas de aço os balcões ficaram congestionados. O atraso se deu porque ele estava improvisando o tira-gosto do dia: pipoca na manteiga e calabresa na chapa. Para preservar a identidade da freguesia, publicamos apenas uma foto externa do bar, pois boteco também é uma questão de foro íntimo.

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