
Cristina Palma é promotora da Infância e Juventude; João Batista Martins César é desembargador no TRT. Ambos são membros do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil. Foto: Montagem Portal Porque
A promotora de justiça Cristina Palma e o desembargador João Batista Martins César, integrantes do Fórum Permanente de Erradicação do Trabalho Infantil (FPETI) na Região Metropolitana de Sorocaba, consideraram positiva a lei municipal sancionada pelo prefeito Rodrigo Manga (Republicanos), que prevê a transferência de recursos para famílias que tenham crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil, mas opuseram sérias restrições ao fato de a Prefeitura ter optado por usar verbas do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (Fumcad) para custear o programa.
Para eles, o custeio da lei deveria sair do orçamento municipal, uma vez que o Fumcad tradicionalmente tem poucos recursos para atender a projetos sociais de diversas entidades. João Batista foi além, e previu que a lei, da maneira que está formulada, pode ser declarada inconstitucional, se houver algum questionamento.
Atualmente, a Prefeitura de Sorocaba é alvo de ação movida pelo Ministério Público do Estado e Ministério Público do Trabalho, pelo não cumprimento de um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) em que se comprometeu a adotar medidas para erradicar o trabalho infantil na cidade.
A lei municipal 12.735/2023, publicada no Jornal do Município de Sorocaba no último dia 17, cria o Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) e prevê bolsa-auxílio para famílias que têm crianças em situação de trabalho infantil.
O benefício será de R$ 300 por criança ou adolescente até 14 anos de idade incompletos, limitado a duas crianças por família que podem ter direito a esse valor, totalizando R$ 600. Caso a família seja composta por mais do que dois menores submetidos a risco ou vulnerabilidade social, será pago um valor adicional de R$ 100 por criança ou adolescente além do limite de dois indivíduos.
No texto de divulgação da lei e promoção do prefeito Manga, o governo chega a comemorar o fato de usar verbas do Fumcad, embora a legalidade desse formato da lei seja questionável. “Os recursos advêm do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (Fumcad), ligado ao Conselho Municipal da Criança e Adolescente (CMDCA) de Sorocaba, e não de verbas próprias do Município ou de impostos, as quais continuarão sendo aplicados na Saúde, Educação, Segurança, entre outras áreas prioritárias”, afirma a nota oficial publicada no site da Prefeitura.
A promotora de Justiça Cristina Palma, da Vara da Infância e Juventude de Sorocaba, no entanto, observou ao Portal que o Fumcad “não pode ser responsável pelo custeio de uma obrigação municipal”. Ela afirma que o Fundo “pode até ajudar, por um curto período”, mas a receita para a execução de lei proposta pelo prefeito deve constar no orçamento do município.
A promotora disse à reportagem que foi informada, pela presidente do Conselho Municipal da Criança e do Adolescente (CMDCA), sobre a reserva de R$ 360 mil do Fumcad para ajudar a viabilizar o Peti. “Se o projeto de bolsa-auxílio der certo, futuramente vai ter que entrar no orçamento do município, e não ficar usando recursos do Fundo, que servem a várias entidades que realizam trabalhos importantes voltados às crianças e adolescentes.”
Ainda de acordo com a promotora, existe uma obrigação do governo municipal, firmada em um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), de criar vários mecanismos de erradicação do trabalho infantil na cidade. Um deles, inclusive, consiste em a Prefeitura promover iniciativas que motivem a população a fazer doações e aumentar os recursos do Fundo.
O TAC, comentou a promotora Cristina, estaria “impulsionando” o prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) a tomar medidas voltadas à erradicação do trabalho infantil. O Termo de Ajustamento foi assinado pela própria promotora Cristina Palma, junto com o procurador do Trabalho Juliano Alexandre Ferreira, no dia 4 de fevereiro de 2020.
No dia 31 de janeiro deste ano, tanto o Ministério Público estadual (MP/SP), do qual Cristina é promotora, quanto o Ministério Público do Trabalho (MPT), representado por Juliano Ferreira, ajuizaram uma ação contra a Prefeitura que pode acarretar em uma multa de R$ 10,7 milhões e responsabilizar o prefeito Manga por não estar cumprindo os termos acordados.
Segundo o procurador disse ao Portal Porque logo após o ajuizamento da ação, o atual prefeito de Sorocaba “faz parte do polo passivo [do processo] para responder pela multa futura”, ou seja, pode ser multado pessoalmente.
Ideia boa, mas lei questionável
Para o desembargador João Batista Martins César, do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, que fica em Campinas e abrange Sorocaba, “a ideia de se criar uma bolsa-auxílio para combater o trabalho infantil é boa, digna de comemorar. As políticas de transferência de renda são essenciais para ajudar a virar essa página. Afinal, atender à criança não é gasto, é investimento.”
Porém, João Batista também disse que concorda com a promotora Cristina Palma em relação ao uso de verba do Fumcad. “O Fundo não deve ter ingerência da Prefeitura. Isso pode ser julgado inconstitucional e fere o Estatuto da Criança e do Adolescente. A verba deveria estar na previsão orçamentária do município. O Fumcad é gerido pelo Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. Metade de seus membros são representantes da sociedade civil e a outra metade do poder público. Deve haver autonomia. O que vemos hoje é que a própria página do Conselho está hospedada na página da Prefeitura na internet, quando deveria ser independente”, disse.
Para João Batista, há uma incerteza de quanto o Fundo Municipal vai ter de recursos em caixa a cada ano, visto que depende de doações de contribuintes. “Além disso, a verba do Fumcad é utilizada por uma série de entidades que atendem crianças, que as tiram das ruas, que oferecem acolhimento, cursos, etc. Tem a Pastoral do Menor, por exemplo. Enfim, belos trabalhos realizados por essas entidades podem ser inviabilizados se os recursos do Fundo forem usados para custear o projeto do Executivo.”
“Se Sorocaba tivesse uma cultura de incentivo de doações ao Fundo da Criança — prossegue João Batista –, talvez o caixa estivesse em condições de contribuir mais com esse tipo de projeto. Mas não é o caso. Em Presidente Prudente e Franca, que têm políticas de incentivo, o Fumcad arrecada quatro vezes mais que Sorocaba. E aqui, vai-se usar a verba escassa para custear o projeto, que é bom, mas, ao invés de destinar recursos próprios do município, usa verbas do Fundo das Crianças.”
Ainda de acordo com o desembargador, “a utilização dessa verba do Fumcad deixa o prefeito numa situação confortável no momento. Mas basta alguém levar a dúvida sobre esse formato da lei para o Tribunal de Justiça (TJ) que essa situação confortável pode mudar, sob o risco de a lei ser declarada inconstitucional. Aí, não adianta o governante culpar a Justiça.”
Mesmo que a Secretaria da Cidadania providencie recursos em caso de prorrogação do Peti por um ano, como prevê a lei sancionada pelo prefeito Manga, os recursos devem estar previstos no orçamento municipal. “Embora haja possibilidades legais de remanejamento de verbas, as secretarias também precisam ter sua previsão no orçamento”, ressaltou João Batista.
Quem tem direito
A bolsa-auxílio da Lei 12.735 é destinada a crianças de 0 até 14 anos incompletos. Uma das condições para que as famílias em situação de vulnerabilidade obterem o benefício e ter os filhos matriculados em escolas e ter frequência de, no mínimo, 75% das aulas. Também é necessário manter atualizada a vacinação das crianças ou adolescentes.
Para ter acesso à bolsa-auxílio, segundo a lei municipal, as famílias devem atender critérios aprovados pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente (CMDCA). Os critérios são:
a) ter crianças e adolescentes em situação de trabalho infantil remunerado, vulnerabilidade e risco à criança e adolescente, e que, para suas necessidades básicas, necessitem de auxílio financeiro imediato para o desenvolvimento pessoal;
b) comprovante de matrícula na rede de ensino de crianças e adolescentes até 17 (dezessete) anos e 11 (onze) meses;
c) realização de indicação de umas das equipes técnicas da rede de proteção da criança e do adolescente, sendo eles: Núcleo de Atendimento ao Trabalho Infantil (Napeti), Centro de Referência Especializada em Assistência Social (Creas), e/ou Centro de Referência em Assistência Social (Cras), de acordo com o território de abrangência da família, a fim de analisar o contexto sociofamiliar e econômico das famílias;
d) o responsável legal ou de fato deverá ser inscrito no Cadastro único para programas sociais do Governo Federal (CadÚnico) e cadastro atualizado no mínimo de 12 meses;
e) comprovação do domicílio ou declaração de endereço do Município de Sorocaba, tempo de permanência mínimo 1 (um) ano;
f) comprovar ou declarar renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo.
Fumcad e Cidadania
De acordo com a lei proposta pelo Executivo, aprovada pela Câmara e sancionada dia 17, a Bolsa-Auxílio Peti será custeada com recursos financeiros do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente (Fumcad) até o limite de 100 benefícios por mês. Se o número passar desse limite, a Secretaria da Cidadania deverá custear o valor excedente.
O programa terá duração inicial de 12 meses, podendo ser prorrogado por igual período. Caso faltem recursos para o Fumcad a fim de prorrogar o programa, “a Secretaria da Cidadania tomará as providências cabíveis para previsão orçamentária”, diz o texto da lei.
Ainda de acordo com a lei publicada no Jornal do Município dia 17, o Conselho Municipal da Criança e do Adolescente aprovou a utilização de verbas do Fumcad. Trata-se da “Deliberação 072, de 28 de outubro de 2016”, afirma o texto.
A lei não informa, no entanto, quando será iniciada a seleção das famílias e quando o benefício vai começar a ser pago. Ela apenas prevê que será depositado na conta do responsável no quinto dia útil do mês.
Prioridades
A lei municipal sancionada estabelece que terão prioridade na seleção para receber o auxílio as seguintes situações: família com a menor renda per capita; menor idade daquele que se encontrar em situação de trabalho infantil; maior número de criança e adolescente em situação de trabalho infantil no mesmo grupo familiar e membros da família em reincidência em situação de trabalho infantil.
Também entram nessa relação de prioridade: composição familiar com maior número de crianças e adolescentes com idade inferior a 18 anos e família chefiada por mulher. A lei esclarece que esses critérios “não são cumulativos, mas devem ser aplicados para selecionar as famílias a serem beneficiadas”.
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