
Juliana Cardoso: ‘Em pleno século 21, nós vamos para o Conselho de Ética, com possibilidade de cassação do mandato, porque a gente falou o que precisa ser falado’. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
Após calorosas discussões na Câmara dos Deputados sobre o Marco Temporal, que restringe a demarcação de terras indígenas e permite a exploração de seus recursos naturais por terceiros, o PL, partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, pediu que o Conselho de Ética da Casa puna seis deputadas, inclusive com cassação, por suas manifestações indignadas contra o projeto.
A polêmica aumentou quando o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), enviou com urgência o requerimento do PL ao Conselho, enquanto pedidos de apuração ética contra deputados bolsonaristas, por transfobia e tentativa de golpe contra a democracia, são engavetados.
A representação do PL é contra as deputadas federais Sâmia Bomfim (Psol-SP), Talíria Petrone (Psol-RJ), Célia Xakriabá (Psol-MG), Fernanda Melchionna (Psol-RS), Érika Kokay (PT-DF) e Juliana Cardoso (PT-SP).
O Conselho de Ética da Câmara é formado por 21 membros, sendo somente uma mulher, Ana Paula Lima (PT/SC). O Conselho conta com apenas três assentos do PT e um do Psol, totalizando quatro deputados dos partidos das parlamentares, vítimas de machismo, perseguição e misoginia, segundo fontes ouvidas pelo Portal Porque.
O projeto de Marco Temporal acabou sendo aprovado pela Câmara, no dia 30 de maio, por 283 votos a favor e 155 contra. Agora, ele segue para o Senado. Enquanto isso, o pedido de cassação das deputadas está em andamento no Conselho de Ética da Câmara.
A justificativa do PL ao pedir a cassação é o fato de as deputadas terem usado, durante os debates sobre o Marco Temporal, termos como “assassinos” e “genocídio” aos parlamentares que defendiam a restrição de demarcação de territórios indígenas, flexibilização dos direitos desses povos e exploração das riquezas dessas áreas pela iniciativa privada.
O Porque entrevistou, com exclusividade, Juliana Cardoso, deputada federal, de origem indígena, e uma das perseguidas pelo requerimento do PL; a advogada Gabriela Araújo, professora de direito na PUC-SP e especializada em causas sobre violência política contra mulheres, bem como Junéia Batista, líder sindical da CUT de reconhecimento nacional e internacional em defesa das mulheres.
Juliana Cardoso
Juliana Cardoso (PT-SP) declarou que “é preciso denunciar a violência política de gênero e lutar por um futuro mais justo e igualitário. Nós, mulheres, estamos aqui para dar voz às pessoas que não conseguem ter voz de verdade neste parlamento”.
“Em pleno século 21, nós vamos para o Conselho de Ética, com possibilidade de cassação do mandato, porque a gente falou o que precisa ser falado para deputados que são favoráveis ao projeto de lei do Marco Temporal, que acaba com a vida da população indígena, mas, acima de tudo, destrói o meio ambiente, atacando nossos biomas, atacando tudo aquilo que é da fauna e da flora”, acrescenta.
Juliana ainda alertou que “não é só dos povos indígenas que nós estamos falando neste momento. Portanto, nós precisamos de ajuda, de apoio para que as pessoas que estão aqui, com esse projeto de cassação, possam entender que nós fomos votadas exatamente para poder falar e dar voz a essa população mais vulnerável”.
Gabriela Araújo
A advogada Gabriela Araújo, doutora e professora de direito constitucional na PUC-SP e autora da obra “Mulheres na Política Brasileira: Desafios rumo à democracia paritária participativa” afirma que a atitude do PL contra as deputadas é perseguição e misoginia (repulsa, desprezo ou ódio contra as mulheres).
“Ao pedir a cassação do mandato de seis deputadas do Psol e do PT no Conselho de Ética da Câmara, o PL assume uma postura misógina de perseguição direcionada exclusivamente às mulheres. Afinal, os protestos contrários ao Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas também partiram de homens parlamentares”, destaca.
Para ela, a tese de Marco Temporal indignou “milhares de brasileiros que vislumbram o projeto de lei aprovado na Câmara como uma espécie de genocídio legislado”.
A advogada explica que “a Lei n°14.192/2021 classifica como atos de violência política contra a mulher qualquer distinção, exclusão ou restrição no reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos e de suas liberdades políticas fundamentais, em virtude do sexo. Exatamente o que o PL tenta fazer com essa representação no Conselho de Ética, numa tentativa deliberada de calar as vozes das mulheres parlamentares que lutam pelos direitos humanos”.
Ao concluir a entrevista ao Porque, Gabriela Araújo ressaltou, indignada, que “em uma Casa Legislativa em que as mulheres ocupam menos de 18% dos assentos e que foi incapaz de punir um deputado que, no Dia Internacional da Mulher, sentiu-se à vontade para cometer, de forma escandalosa, o crime de transfobia no plenário, esse tipo de representação no Conselho de Ética chega a ser um deboche, uma afronta a todo o povo brasileiro”.
Junéia Batista
Junéia Batista, secretária nacional da Mulher Trabalhadora da CUT, titular do Comitê Mundial de Mulheres da CSI (Central Sindical Internacional) e membro da direção executiva Mundial da ISP Internacional de Serviços Públicos (sindicato global), reforçou que a atitude do PL contra as deputadas deve ser classificada como perseguição machista e opressão.
“Com certeza a atitude do partido do inominável [se referindo ao ex-presidente Bolsonaro] configura como perseguição contra as mulheres e, neste caso, são mulheres que foram eleitas, nos seus respectivos estados, mesmo contra essa extrema direita do nosso país”.
“Elas [as deputadas] estão nos representando. E, com certeza, tudo o que elas fizeram naquele dia da votação do Marco Temporal tem a ver com o que todas nós, mulheres da classe trabalhadora, com as que têm e as que não têm consciência [da opressão da direita] sofrem com a perseguição contra as mulheres”, ressalta.
Ainda de acordo com Junéia, “tem outros casos de comportamento misógino do PL. O próprio jeito como eles tratam as mulheres no partido deles já é uma forma de misoginia, além da maneira como eles colocam para a sociedade que nós, mulheres, temos de nos submeter à toda política machista deles E isso já é um fato que todo mundo sabe”.
Junéia afirma que a extrema direita, para não admitir publicamente o comportamento misógino, “agora está colocando a ex-primeira-dama [Michelle Bolsonaro] como provável candidata porque sabe que ela pode ter mais votos que o inominável teria numa eleição. Se bem que eu acho que ele nem vai conseguir [ser candidato] porque ele vai ser preso”.
“É claro que esse Conselho de Ética, que tem 21 integrantes sendo apenas uma mulher, prova como funciona o parlamento brasileiro [em relação às mulheres]. Obviamente eles vão fazer o máximo para tirar essas mulheres do cenário político e, com certeza, sim, elas fizeram as manifestações indignadas contra o Marco Temporal como defesa correta do meio ambiente, da terra, do planeta, dos povos originários”, avalia a líder sindical.
“Mas nós, mulheres da CUT, vamos brigar muito para que essas deputadas continuem exercendo o papel de defender a classe trabalhadora, com recorte de gênero, de raça, de etnia e também em relação às identidades e orientações sexuais das mulheres. Mas, neste momento, tem mais relação com as etnias, com os povos originários, e com o desrespeito que esse Marco Temporal traz para a vida das mulheres e para a vida dos brasileiros e brasileiras e, principalmente, para o planeta”, finaliza.
O que é Marco Temporal?
A tese do Marco Temporal, que tramita na Câmara desde 2007, pelo Projeto de Lei 490, determina que as demarcações de reservas indígenas devem se limitar às áreas que estavam ocupadas por povos originários até a data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.
Os defensores da tese, principalmente os ruralistas, extrativistas e suas bancadas no Congresso, se apegam ao fato de a Constituição assegurar a demarcação aos indígenas que ocupam essas terras. O “ocupam”, no tempo presente, daria margem para que no futuro pudesse haver exploração de territórios reivindicados pelos indígenas e avaliados pela Funai.
Essa tese já foi questionada no STF (Supremo Tribunal Federal) que deveria retomar o julgamento nesta quarta-feira (7). O relator no Tribunal, ministro Edson Fachin, votou contra o Marco Temporal. Justamente por isso e, para alimentar a disputa entre os Poderes Legislativo e Judiciário, o deputado Arthur Lira, no mês passado, colocou o projeto para ser votado com urgência.
Representantes indígenas rejeitam o Marco Temporal e justificam que ele ignora o fato de que povos foram expulsos de suas terras, sob violência ou devido à expansão rural e urbana dos brancos, pelo desmatamento ou mortos por proliferação de doenças quando a Constituição Federal foi promulgada. Assim, não poderiam estar presentes em suas terras originárias naquele exato dia.
Os debates
Parlamentares de direita, que se opõem ao governo Lula, não escondem que defendem o Marco para agradar os empreendimentos que querem explorar os recursos naturais das matas. O deputado José Nelto (PP-GO), por exemplo, afirmou que “este é o momento para discussão e votação desta matéria na defesa da propriedade [privada]”.
Kim Kataguiri (União-SP) apela para “dar segurança jurídica” aos empreendedores e proprietários que podem ter invadido terras indígenas.
O deputado Tarcísio Motta (Psol-RJ), contrário ao Marco, afirmou durante a votação estar “muito impressionado que, depois das imagens que nós vimos no início deste ano do genocídio Ianomami, da fome na sua pior forma, a gente tenha como prioridade nesta Casa dificultar a demarcação de terras”.
Opositores da tese do Marco Temporal preveem também aumento de conflitos, tensão e violência contra indígenas por conta de que exploradores e grileiros vão se sentir amparados legalmente para invadir territórios indígenas, promover desflorestamento, garimpo e extração de madeira.