
Sem a presidência, os processos em curso que envolvem Bolsonaro descem para as instâncias ordinárias. No caso de investigações que estão nas mãos da PGR, elas passam para a competência do Ministério Público. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Com a derrota nas eleições, ontem (30), o presidente Jair Bolsonaro (PL) perderá em 2023 o direito ao foro especial por prerrogativa de função, mais conhecido como foro privilegiado. Primeiro presidente não reeleito da história do Brasil pós-ditadura, Bolsonaro passará a responder a processos na Justiça comum, a partir de 1º de janeiro do próximo ano. O que aumenta as possibilidades de responsabilização penal.
Até então, como presidente, Bolsonaro só poderia ser alvo de investigações criminais autorizadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O mandato também garantia que somente a Procuradoria-Geral da República (PGR) poderia oferecer denúncia contra o presidente na Justiça. Além disso, para que ela fosse aceita pelo órgão, ela também deveria ser autorizada pela Câmara dos Deputados. Só então o chefe do Executivo poderia ser julgado pelo STF, podendo responder pela pena correspondente ao crime e passível de perda do cargo.
Sem a presidência, os processos em curso que envolvem Bolsonaro descem para as instâncias ordinárias. No caso de investigações que estão nas mãos da PGR, elas passam para a competência do Ministério Público. Assim como os processos no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) também são remetidos para o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) da região onde houve suspeita. A Polícia Federal, por sua vez, poderá fazer apurações sem autorização do Supremo.
Quatro inquéritos
Bolsonaro também perde a partir de 1º de janeiro de 2023 o direito de ser defendido pela Advocacia-Geral da União (AGU). Novas ações contra ele também poderão ser movidas por procuradores ou promotores contra o ex-presidente, que responderá a um juiz de primeira instância.
Levantamento da BBC News Brasil mostra que, até o momento, há quatro inquéritos em andamento no STF em que Bolsonaro é investigado. Um deles trata da investigação sobre a divulgação de notícias falsas sobre a vacina contra a covid-19 (INQ 4.888).
Vacina contra covid e aids
Em outubro do ano passado, o presidente da República divulgou uma informação falsa ao vivo em suas redes sociais associando o imunizante ao “desenvolvimento da síndrome de imunodeficiência adquirida (aids)”.
O caso passou a ser investigado pela PF sob supervisão do STF. Em agosto deste ano, um relatório da Polícia Federal concluiu que o presidente cometeu crime pela fala falsa contra a vacina. No mesmo mês, o ministro da Corte Alexandre de Moraes, que é relator do caso, enviou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, o pedido de indiciamento de Bolsonaro. Visto como aliado do mandatário, Aras até o momento não denunciou o caso.
Com o fim de seu mandato, que começou em janeiro de 2019, Bolsonaro passará a responder por esse caso para o Ministério Público Federal, que poderá enviar a denúncia à Justiça Federal.
Vazamento de dados sigilosos
Além desse inquérito, o presidente também é investigado pelo vazamento de dados sigilosos de um ataque ao TSE (INQ 4.878). O caso foi aberto a partir de uma notícia-crime enviada pelo TSE e autorizada por Moraes, também relator do caso. Durante live, em agosto de 2021, Bolsonaro vazou dados de uma investigação envolvendo um ataque hacker contra a Justiça Eleitoral, com o objetivo de atacar a credibilidade das urnas eletrônicas. Em fevereiro deste ano, a delegada da Polícia Federal Denisse Dias Ribeiro reafirmou que Bolsonaro cometeu crime ao vazar, pelas redes sociais, dados do um inquérito sigiloso.
A vice-procuradora-geral da República, Lindôra Araújo, pediu, porém, que a investigação fosse arquivada. Mas o pedido foi negado pelo STF com a justificativa de que a PGR não poderia impedir uma investigação policial que não foi requisitada pelo próprio órgão. Pelo posicionamento da procuradoria, com o foro era improvável que Bolsonaro fosse denunciado. Mas, com a consequente derrota nas eleições, ele poderá ser indiciado agora pela PF e denunciado à Justiça pelo MP.
Inquérito das fake news
O terceiro inquérito contra Bolsonaro trata de fake news e apura os ataques e as notícias falsas contra ministros do STF (INQ 4.781). Essa investigação está em curso desde 2019 no Supremo e está ligada a outro inquérito sobre a atuação de milícias digitais para atacar a democracia no Brasil. Bolsonaro, porém, foi incluído no processo em agosto de 2021, a pedido do TSE.
A abertura do inquérito foi uma resposta do tribunal aos repetidos ataques do presidente da República à Justiça Eleitoral e ao próprio processo eleitoral, para pressionar pelo voto impresso. A investigação é sigilosa e tramita no Supremo.
PF e CPI da Covid
Já a quarta investigação em curso diz respeito às denúncias de interferência na Polícia Federal (INQ 4.831). O caso veio à tona após o ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro deixar o governo, em 2020, afirmando que o presidente da República fez tentativas de interferir indevidamente na atuação da PF. Apesar disso, a previsão é que o inquérito seja arquivado, uma vez que a PGR se manifestou afirmando a inexistência de provas suficientes para imputar o crime a Bolsonaro. O órgão também pediu pelo arquivamento, que deve ser acatado pelo STF.
Mas, se não for arquivado até janeiro, ele também passará para a competência da Justiça comum. Bolsonaro ainda responde por denúncias de crimes e irregularidades apontadas no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid. Devido à sua gestão na pandemia, ao presidente foram imputados os crimes de charlatanismo, prevaricação, infração de medida sanitária preventiva, emprego irregular de verba pública e epidemia com resultado de morte.
A dois meses do fim do ano, a avaliação, no entanto, é que é pouco provável que a PGR denuncie Bolsonaro. Ao contrário, para cinco das denúncias Aras e Lindôra já pediram o arquivamento ao STF. Na Justiça comum, o Ministério Público poderá reabrir o caso, mas somente se houver novas provas.
Sigilos derrubados
Além disso, assim que deixar a presidência da República, Bolsonaro também terá que lidar com o fim do sigilo de 100 anos imposto por ele a vários decretos presidenciais durante o mandato. Em julho, por exemplo, o Palácio do Planalto decretou sigilo sobre os encontros do mandatário com os pastores lobistas do MEC Gilmar Santos e Arilton Moura. Ambos são investigados pela operação de um esquema de desvios de recursos da educação para municípios em troca de propina.
No mesmo mês, a Receita Federal impôs sigilo de 100 anos em processo que acusa o órgão de atuar para auxiliar a defesa do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) no caso das “rachadinhas”.
Durante a campanha eleitoral, seu adversário, eleito presidente pela terceira vez, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), prometeu derrubar os sigilos. Como chefe do Poder Executivo, Lula poderá modificar o artigo 31 da Lei de Acesso à Informação (LAI) que versa sobre o sigilo de 100 anos. Para isso, será preciso apresentar um projeto de lei ou baixar uma medida provisória. Outra possibilidade de mudança é alterar o Decreto 7.724, que regulamenta a LAI. A exposição do sigilo vem sendo um dos temas mais comentados após a derrota de Bolsonaro.