Coerente com o histórico negacionista do prefeito Rodrigo Manga, a Prefeitura de Sorocaba omite informações importantes nas divulgações oficiais sobre a pandemia de covid-19, e insiste em disseminar fake news aos classificar como “recuperados” aqueles que, tendo contraído a doença e apresentado sintomas de menor ou maior gravidade, conseguiram escapar com vida.
O uso da definição “recuperado” remete à ideia de alguém que readquiriu toda a capacidade física e mental de antes da doença, o que, infelizmente, não ocorre com todos. Muitos dos que são vitimados pelo coronavírus ficam com sequelas, como falta de ar, fadiga, fraqueza muscular, perda do olfato ou da visão, esquecimentos e outros males, cuja duração é um mistério para médicos e cientistas.
O fato científico dos efeitos pós-covid é reconhecido até mesmo por um dos governos nacionais mais negacionistas do mundo: o brasileiro.
“Um estudo da evolução tardia de pacientes que passaram por internação por SARS-CoV-2, publicado na revista científica The Lancet, demonstrou que, seis meses após a infecção aguda, 76% dos 1.733 pacientes avaliados apresentavam algum sintoma persistente”, salienta artigo publicado em fevereiro deste ano no portal da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (Saps) do Ministério da Saúde.

O fato científico dos efeitos pós-covid é reconhecido até mesmo por um dos governos nacionais mais negacionistas do mundo: o brasileiro. (Foto: Reprodução/Hypeness)
O texto prossegue: “O cansaço e a fraqueza muscular foram os sintomas mais comuns, presentes em 63% dos casos, seguidos por dificuldade para dormir, ansiedade e depressão. Além disso, entre aqueles que desenvolveram casos graves da infecção, 56% desenvolveram algum tipo de alteração pulmonar significativa.”
O artigo – publicado, é importante enfatizar, no site de um governo comandado por um negacionista – traz ainda uma definição da chamada “covid longa”, também denominada “síndrome pós-covid” e “covid crônica”. “Segundo a definição atualmente utilizada pelo Ministério da Saúde, a pessoa com condições pós-covid é aquela que apresenta manifestações clínicas novas, recorrentes ou persistentes após a infecção aguda por SARS-CoV-2, quando essas não são atribuídas a outras causas.”
Trocando em miúdos: há recuperados sim, mas não são todos. Os mais de 122 mil “recuperados” a que a Prefeitura de Sorocaba se refere em seus boletins diários simplesmente não existem – e causa profunda estranheza que nenhum órgão de fiscalização, nem a Câmara, nem o Ministério Público, levante objeção a essa fake news criminosa, repetida de forma contumaz desde o início da pandemia.
O que há em Sorocaba, segundo dados atualizados, são 122.745 sobreviventes da covid-19. Quantos estão recuperados de fato? Ninguém sabe ao certo. Quantos desses – dezenas de milhares, talvez? – batem diariamente nas portas das unidades de saúde, sem que a administração municipal sequer tenha se preocupado em cadastrá-los para um necessário programa de reabilitação? Com base nos estudos internacionais, é possível apenas imaginar.
Longe de mero preciosismo linguístico, é inegável o efeito que um adjetivo inadequado e impreciso – numa palavra, mentiroso – pode ter sobre a forma como a população encarou e encara a pandemia, sendo levada a crer que a covid-19 é algum tipo de doença que quando não mata, engorda. Isso, certamente, teve implicações desastrosas para o aumento dos contágios, levando muitos a adotar um comportamento de risco quando deveriam – sem prejuízo de sua fé, de sua autoconfiança ou de qualquer outro fator – ter medo, resguardar-se ao máximo e agir com prudência.
Efeito dissimulador, igualmente, pode ter a divulgação diária, pela Prefeitura e alguns órgãos de imprensa, das chamadas comorbidades dos falecidos, como se o fato de um paciente ser diabético, obeso ou cardíaco tornasse menos grave, mais aceitável e natural a morte por um vírus cujos efeitos no organismo, felizmente, hoje podem ser minimizados ao extremo, ou até suprimidos pela vacina.
Relevante para a sociedade seria a divulgação da condição de imunização dos pacientes internados e dos que falecem – algo que, provavelmente, jamais passou pela cabeça dos gestores do otimismo negacionista. Sempre que ocorrem óbitos, divulgam-se as doenças preexistentes dos falecidos, mas nenhuma palavra sobre terem recebido a vacina ou não. A quem interessa saber a idade, o gênero do paciente ou sua condição física? Que relevância têm essas informações para efeito de orientação da população? E, indo mais a fundo nesse questionamento: não seria a opção pela ênfase às doenças preexistentes uma forma de culpar a vítima pela própria morte, isentando assim de responsabilidade os que não combatem a pandemia de forma adequada, segundo parâmetros científicos?
Ao contrário das informações inúteis sobre as comorbidades dos falecidos, uma divulgação sistemática a respeito da condição de imunização – em outras palavras, uma indicação precisa sobre se quem precisou de internação ou morreu havia recebido uma, duas, três, quatro ou nenhuma dose de vacina contra a covid – teria, indiscutivelmente, um impacto importante na forma como a população encara a pandemia e se relaciona com o perigo.
Se fosse divulgado, hipoteticamente, que uma parcela dos que desenvolvem formas agressivas de covid foram devidamente vacinados, os vacinados deixariam de ser tão confiantes, e voltariam a usar máscaras, higienizar as mãos, evitar aglomerações e locais fechados. Se, por outro lado, fosse divulgado que as internações e óbitos ocorrem entre os que não receberam a vacina, ou tomaram uma dose e não voltaram para completar o ciclo vacinal, os que negligenciaram essa forma de proteção seriam levados a repensar sua atitude, e muitas vidas ainda poderiam ser poupadas.
Não se pode voltar no tempo e desfazer o mal que o negacionismo causou ao Brasil e a Sorocaba. Não é possível devolver a vida a quem a perdeu, e um esforço tão urgente quanto abrangente precisa ser feito para restabelecer a saúde de quem, a despeito do rótulo de “recuperado”, ainda sofre com as sequelas. Porém, de uma vez por todas, é fundamental que as autoridades parem de mentir para a população e de iludi-la, para que os erros do passado não se perpetuem.
A covid ainda mata. Somente neste começo de junho, três pessoas morreram em Sorocaba em decorrência da doença, segundo os boletins da Prefeitura de Sorocaba. É possível fazer algo para mudar essa situação? Sim, é possível. Por que não se faz? Talvez a resposta seja política, com possíveis imbricações eleitorais, psicológicas e econômico-financeiras (afinal, uma população amedrontada não vai a shows, não frequenta restaurantes, não passeia em shoppings, e isso contraria interesses poderosos, de cidadãos que têm acesso aos gabinetes e patrocinam desde o anúncio da rádio até a campanha eleitoral).
Certo mesmo é que os que sonegam informações preciosas, ou as distorcem para maquiar os fatos e apresentá-los menos cruentos do que são, assim como aqueles que se omitem no dever de fiscalizar e impedir que tais manipulações ocorram, colaboram de forma segura, retilínea, indiscutível para inflacionar o número de pessoas doentes, e são intrinsecamente responsáveis por uma parcela, talvez bastante significativa, das perdas sofridas pela população nesses mais de dois anos de pandemia.
Para usar uma expressão bem popular: quem mente sobre a covid tem sangue nas mãos.
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