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O capital que tritura pessoas para realizar seus lucros não interessa ao Brasil

José Carlos Fineis (Portal Porque)

O discurso de Lula provocou faniquitos na imprensa, que se comporta como porta-voz do que existe de mais retrógrado no mercado. Foto: reprodução/YouTube

Os veículos assim chamados “tradicionais” de informação – aqueles organizados na forma de um corpo de jornalistas e analistas identificados, geralmente reunidos em torno de uma empresa de comunicação – têm batido com insistência na tecla de que são um antídoto eficiente (talvez o melhor) para o veneno das fake news, produzidas de forma clandestina por anônimos e distribuídas via WhatsApp e redes sociais, com o intuito de enganar o público e levá-lo a pensar e agir conforme a vontade de alguém.

A afirmação é correta em muitos aspectos e em suas linhas gerais, mas não é possível tomá-la como uma verdade linear, inabalável e que se possa aceitar sem maiores questionamentos. A complexidade do processo de colher, produzir e difundir a informação desaconselha qualquer tentativa de abordar o tema sem a necessária particularização e, indo mais além, sem uma análise caso a caso. São muitas as ressalvas.

Não se pretende, com isso, negar que existe um oceano de mentiras circulando na internet. Mas – e isso não é um mero detalhe – também existe uma perturbadora manipulação de informações nos canais de comunicação tradicionais. Manipulação esta que, sem muitos pudores ou tentativas de dissimulação, torna-se quase uma regra quando a pauta resvala nos interesses de setores do mercado direta ou indiretamente atingidos por medidas macroeconômicas.

É impressionante como as análises – seja nos jornalões, nas emissoras de TV ou nos grandes portais de internet – parecem ser pautadas não por uma apuração jornalística honesta, como seria de se esperar, mas sim pelos anseios de um certo segmento dos banqueiros e representantes do grande capital, ainda apegados a uma visão ultrapassada de mercado, incapazes de compreender a relação de causa e consequência entre bem-estar social e prosperidade, entre valorização do trabalhador e produtividade, entre distribuição de renda e desenvolvimento.

Um exemplo disso ocorreu na quinta-feira, dia 10, quando o “mercado” – segundo explanações de nove entre dez analistas de plantão nos meios noticiosos – teria reagido de forma negativa ao discurso do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, do PT. Lula nada mais fez que enfatizar a já conhecida vocação social de seu governo, além de questionar, de forma coerente com o que pensa, políticas econômicas que priorizam a estabilidade fiscal em detrimento da integridade e bem-estar de milhões de pessoas e destacar a necessidade de incluir as políticas sociais nas planilhas de planejamento econômico do governo.

A fala de Lula foi clara, retilínea, sobretudo humana: não é possível admitir como parte da normalidade uma economia em que, para realizar seus lucros, os agentes do mercado trituram as pessoas. Não pode haver espaço, no novo Brasil que se desenhou a partir das eleições de outubro, para o capitalismo predatório que impede o acesso de populações inteiras à vida e à dignidade. Há que se perseguir o crescimento e a estabilidade econômica sim, porém concomitantemente ao desenvolvimento humano, ao combate à fome, à democratização das oportunidades, ao resgate dos direitos e da cidadania de milhões de brasileiros historicamente relegados ao ostracismo, à invisibilidade e ao sofrimento.

Os arautos do mercado não tardaram a ocupar suas tribunas informativas para condenar a fala do presidente eleito e imputar, a ela – ó, horror! –, uma alta do dólar e uma queda de mais de três pontos da Bolsa. Com ar professoral, trataram logo de atribuir (sem nenhum juízo de valor) o movimento de gangorra daqueles indicadores a algo que, desde os tempos do Brasil Coroa, provoca ataques histéricos no setor mais sectário da velha elite do atraso, tão bem personificado na pedante ironia de Paulo Guedes: a possibilidade de o governo federal direcionar esforços e recursos àqueles, justamente, que mais precisam da atenção e do amparo do Estado.

A desfaçatez dos analistas só não foi maior do que a crueldade escondida em suas palavras. Sem ouvir um único operador de Bolsa, uma única corretora, eles tentaram colar no discurso presidencial o rótulo de algo que “desagradou o mercado”. Falaram convictos, como autênticas pitonisas por cujas vozes esse ente poderoso, o mercado, verbaliza seus temores e ameaças. Fingiram – elites e seus arautos – não saber que a Bolsa de Valores e o dólar estão sujeitos à influência de inúmeras variáveis internas e externas, como a constatação, ocorrida naquele mesmo dia, de que a inflação, após alguns meses de ligeiras baixas, voltara a crescer no Brasil.

O campo progressista conhece essa ladainha de outros carnavais. Quando os interesses dos banqueiros entram pela porta, os princípios do bom jornalismo saem pela janela. Foi com essa cantilena que esses mesmos analistas pavimentaram o aprofundamento da crise política e econômica em 2015 e avalizaram tacitamente o golpe que derrubou Dilma Rousseff, em 2016. Com esses mesmos argumentos rasos, ressuscitaram discursos devidamente enterrados no mausoléu do século 20, sobre um Estado que é mínimo quando se fala em desregulamentação da economia, em contenção de gastos com programas sociais, em supressão de direitos dos trabalhadores – mas que é o máximo quando se ocupa de socorrer bancos em apuros, perdoar dívidas de igrejas e sonegadores de impostos ou elevar ao status de heróis os produtores rurais que desvirtuam a função social da terra, impedindo que seus frutos alimentem os famintos para transformá-la em instrumento de produção de commodities destinadas ao mercado externo.

Curiosamente, a Bolsa voltou a subir na sexta-feira, um dia depois da suposta irritação do mercado. Não era um tsunami, afinal. A reação ao discurso de Lula, se é que ocorreu, não durou mais do que 24 horas. Foi, como diria o presidente eleito, apenas mais uma das inumeráveis marolinhas que empurram a Bolsa ora para cima, ora para baixo – por sorte, sob a influência predominante de investidores estrangeiros, por vezes, dotados de uma visão mais abrangente do Brasil e de seu potencial enquanto mercado emergente do que os próprios brasileiros.

É bom que assim seja. O capital despido de qualquer humanidade, que suga o sangue do pobre para realizar seus lucros, não interessa ao Brasil. Este país já conheceu, sob o comando do próprio Lula, o orgulho benfazejo de poder anunciar para o mundo: saímos do mapa da fome. E não se tem notícia de empresas que quebraram enquanto os programas sociais permitiam que os alimentos chegassem à mesa de todos.

Foi para fazer o desenvolvimento social, para melhorar as condições de vida na base da pirâmide, que mais de 60,3 milhões de brasileiros votaram em Lula. Outra coisa não se espera, dele, do que a inclusão de todos os brasileiros no círculo virtuoso do consumo, e, na outra ponta, como consequência lógica, da produção e distribuição de riquezas. Que direcione suas forças, sua capacidade e determinação para combater, sem trégua, uma visão de mercado segundo a qual, para que uns poucos ganhem muito, muitos precisam viver sem nada.

Que Lula siga em frente, sem temor. Que mostre novamente, aos catastrofistas de plantão, como é possível produzir, vender, prestar serviços, trabalhar, fazer negócios e ter lucros sem abrir mão da dignidade humana, do respeito às pessoas, de uma melhor distribuição de renda, de justiça social. E, principalmente, que os ajude a compreender aquilo que o mundo civilizado já aprendeu há muito: gastar para tirar as pessoas da fome e da miséria, para lhes proporcionar a possibilidade de exercer seus direitos com plenitude, não é despesa, é investimento.

José Carlos Fineis é editor-chefe do Portal Porque.

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