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‘Live do fim do mundo’: desinformação e sensacionalismo

Pedido de intervenção estadual em Itupararanga revela falta de informação sobre gestão da represa e trabalho do Comitê de Bacia

José Carlos Fineis* (Portal Porque)

À esquerda, anúncio da Prefeitura da live em que o prefeito Rodrigo Manga chegou a falar em “rompimento” da represa. Foto: reproduções/Facebook

Transmitido ao vivo nas redes sociais da Prefeitura, no começo da noite de terça-feira (17), o pronunciamento do prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) sobre possíveis perigos relacionados à represa de Itupararanga – segundo ele, graves e iminentes – só encontra paralelo nas piores lives de Jair Bolsonaro, como aquela em que o ex-presidente, de maneira irresponsável e criminosa, associou a vacina contra a covid-19 a um suposto risco de contrair o HIV e desenvolver a aids.

Agendada, não se sabe se por coincidência, para o mesmo horário do principal telejornal de Sorocaba – em que, como já era esperado, deveriam ser divulgadas novas informações sobre o escândalo de corrupção e superfaturamento na compra de um prédio pela Prefeitura, na atual gestão –, a live de Manga só serviu para criar um ambiente de medo, para que ele, com admirável teatralidade, assinasse um inócuo pedido de “intervenção” estadual na gestão da represa.

Não seria exagero nem maldade classificar como fake news o que o prefeito espalhou, utilizando-se das redes oficiais da Prefeitura de Sorocaba. Mesmo depois de assistir várias vezes a live (que, por alguma razão, teve seu início cortado na versão que ficou publicada), é impossível saber qual foi a base factual para a afirmação de que milhares de pessoas em Sorocaba e Votorantim estão em perigo – e, ainda que estivessem, em que ajudaria atemorizá-las, como Manga o fez.

O prefeito partiu de um pressuposto correto para chegar a uma conclusão enganosa. De fato, o volume do rio Sorocaba se deve, em parte, à vazão controlada que ocorre na barragem. Porém, se a vazão for reduzida ao mínimo, como Manga pretendia, o nível do reservatório, com as chuvas, tende a subir mais e mais, podendo — aí, sim — transbordar pelos vertedouros localizados no alto do paredão — algo a ser evitado, pois toda a água excedente passaria para o rio, sem controle.

Essa condição existe desde 1914, quando a barragem foi inaugurada, mas só se tornou um problema a partir do momento em que as cidades a jusante da represa, como Sorocaba e Votorantim, cresceram e impermeabilizaram o solo. Há, sim, o risco de a vazão da represa, associada às chuvas drenadas para o rio, causar enchentes. Mas, ao contrário do aparente desmazelo sugerido pelo prefeito, existe todo um aparato de monitoramento e controle da barragem.

Chega a ser constrangedor o pedido de intervenção estadual na gestão da represa, assinado por Manga durante sua live apocalíptica, que assustou muita gente. Constituído em 1995, o Comitê de Bacia Hidrográfica Sorocaba e Médio Tietê (CBH-SMT) reúne representantes de quase duas dezenas de órgãos do governo do Estado, entre eles o Departamento de Águas e Energia Elétrica, a Sabesp, a Fundação Florestal e a Polícia Militar Ambiental, além de diversas secretarias.

Também representantes de organizações da sociedade civil e de 35 municípios — Sorocaba entre eles — têm assento naquele colegiado, que se reúne periodicamente com a CBA e outros agentes regionais não só para traçar os planos de gerenciamento da vazão de água, mas para discutir outros temas relacionados à qualidade de vida de centenas de milhares de pessoas, como a poluição crescente das águas do reservatório e a deterioração de suas proteções naturais.

Se a intenção de Manga, como se especula, era desviar a atenção dos casos de corrupção em seu governo para o “risco iminente de vertimento da barragem de Itupararanga e consequente extravasamento do rio Sorocaba” (palavras da Prefeitura), o objetivo não foi alcançado. Ao contrário: diante de tanto alarde, mesmo para um prefeito notoriamente hiperbólico, a tese mais cogitada, nas conversas e nas redes sociais, foi mesmo a da cortina de fumaça.

Por outro lado, se o intuito de Manga foi conferir a si mesmo a aura de herói que salta para dentro da cena para salvar o povo, a manifestação técnica dos responsáveis pela gestão e controle da barragem esvaziou o espetáculo. Afinal, as decisões sobre o reservatório são tomadas de forma coletiva no CBH-SMT, com a participação de representantes do Estado e da Prefeitura. E se, apesar do controle já existente, o nível da represa subir em demasia, lamentavelmente não há nada que se possa fazer para evitar que a água transborde pelos vertedouros.

O que se espera de um gestor público é transparência, não sensacionalismo. As prefeituras de Sorocaba e demais municípios a jusante de Itupararanga têm o dever de garantir que a barragem seja segura. Para isso, entretanto, existem mecanismos administrativos, políticos e jurídicos. Nada justifica amedrontar a população e acenar com um risco que, até onde se sabe, não é maior, neste momento, do que tem sido nas últimas décadas, sempre na estação de chuvas.

A existência desse risco, é forçoso lembrar, não isenta a Prefeitura de fazer a lição de casa, com a adoção de providências indispensáveis — ainda que não sejam, por si só, soluções definitivas –, como, por exemplo, a limpeza da calha urbana do rio Sorocaba, hoje tomado, em alguns trechos, por bancos de areia tão grandes que formam verdadeiras ilhas. O desassoreamento que melhora a vazão da água, por sinal, deveria ser permanente – mas o que se vê, ao longo do curso d’água, é um abandono como há muito não se via.

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*José Carlos Fineis é editor-chefe do Portal PORQUE.

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