Busca

Ainda há tempo de evitar que mutirão da saúde termine em desastre

Portal Porque
A Câmara de Sorocaba e o Ministério Público têm o dever moral e constitucional de analisar minuciosamente todos os detalhes da licitação pela qual a Prefeitura de Sorocaba está prestes a entregar o chamado “mutirão da saúde” para o Instituto Moriah, a fim de evitar que a contratação se realize sem as garantias necessárias da correta aplicação dos recursos públicos, sob pena de se tornarem cúmplices e corresponsáveis por eventuais prejuízos à saúde pública e ao erário decorrentes do contrato.
Nas últimas semanas, avolumaram-se indícios de que o Instituto Moriah, além de já ter-se envolvido em contenda judicial com a própria Prefeitura, em tempos recentes – marcada por atrasos de salários, greves e dezenas de processos trabalhistas, na conturbada terceirização do Hospital Vera Cruz –, não dispõe nem da capacidade técnica nem da estrutura material (especialmente, centro cirúrgico) necessárias para realizar as 8.794 cirurgias, 48.205 exames e 30.499 consultas enfeixadas no mutirão.
Na verdade, ao que tudo indica, o Moriah só participou da licitação porque, como o prefeito Rodrigo Manga deixou escapar em entrevista à Jovem Pan, na sexta-feira, 14/1, não pretende fazer tudo sozinho. O Instituto conta, segundo Manga, poder repassar serviços, não se sabe se em parte ou na totalidade, para hospitais locais (o prefeito citou como exemplos o Hospital do Banco de Olhos e o Santa Lucinda).
Trocando em miúdos: segundo Manga, o Moriah planeja gerenciar o dinheiro da Prefeitura de Sorocaba, em parte ou no todo – algo em torno de R$ 26,7 milhões, mais do que o dobro dos R$ 12,7 milhões previstos inicialmente –, para fazer o que a Secretaria da Saúde de Sorocaba, com seu quadro técnico-administrativo, poderia executar sem custos adicionais aos contribuintes: contratar serviços de hospitais bem estruturados para realizar cirurgias.
Cabe aqui uma questão inevitável, do ponto de vista jurídico e operacional: por acaso, esses hospitais, que sequer foram apontados formalmente na proposta de serviços como possíveis parceiros, forneceram cartas de anuência, indicando que concordam em ser subcontratados pelo instituto, com especificação de quantidade, condições, prazos para realização e preços finais dos serviços?
Indo mais além: os eventuais quarteirizados – e em especial hospitais onde, em tese, ocorreriam as cirurgias – dispõem de centros cirúrgicos e equipes de cirurgiões, anestesistas, etc., com disponibilidade para absorver essa demanda extra de serviços? Ou, mesmo que o Moriah possa contar com centro cirúrgico próprio, como informa de maneira não conclusiva em sua proposta técnica – na página 24 afirma que tem, mas, na página 326, refere-se a uma certa “área destinada ao Centro Cirúrgico” –, que garantia pode dar de que cumprirá o prometido?
Recentemente, no dia 22 de dezembro, o Hospital Municipal de Votorantim, que por sinal é administrado pelo Instituto Moriah, divulgou de maneira festiva, com direito a press-release e publicação no site da Prefeitura, que havia realizado 870 cirurgias ao longo de 2021. Ora, o que o Moriah se propõe a fazer em Sorocaba, em igual período de tempo, equivale a dez vezes essa marca!
Para se ter uma ideia, para acabar com a fila em um ano, considerando-se 365 dias de trabalho ininterrupto, o Instituto Moriah, se tiver centro cirúrgico próprio, e os hospitais subcontratados precisarão realizar 24 cirurgias por dia – portanto, uma por hora –, ALÉM daquelas que os eventuais parceiros já tenham agendado pelo SUS e convênios, das cirurgias de urgência e emergência – como ferimentos graves, infartos ou traumas cranianos, que entram a todo instante pelas portas de atendimento – e das chamadas cirurgias eletivas, que foram postergadas nos últimos dois anos, por conta da pandemia e superlotação dos hospitais.
Para completar uma visão panorâmica do que isso representa, basta citar que no primeiro ano do governo Manga, segundo revelou o PORQUE em 23 de dezembro, o total de procedimentos pendentes cresceu cerca de 46%, passando de 60 mil para 87,5 mil pacientes, frustrando assim o compromisso assumido por Manga na campanha eleitoral, de acabar com a fila da saúde. O aumento da fila é uma consequência inevitável da precariedade da rede municipal de saúde, e evidencia uma constatação um tanto óbvia: o desafio não é apenas zerar a fila passada, mas dar uma solução para os gargalos que fazem com que a fila cresça dia após dia.
Não por acaso, o padre Flávio Jorge Miguel Junior, gestor e presidente do Conselho de Administração da Santa Casa de Misericórdia de Sorocaba, tem declarado com todas as letras que é impossível o Instituto Moriah dar conta do mutirão da saúde. Em entrevista ao jornal Z Norte em 29 de dezembro, o padre Flávio explicou que, da forma como foi elaborado, o edital afugentou os participantes. Segundo ele, nem a Santa Casa, nem nenhum outro hospital tem condições de realizar todos os procedimentos agrupados no edital. Por isso, o Instituto Moriah não teve concorrentes e, sem concorrentes, venceu a licitação.
Compreende-se a preocupação de Rodrigo Manga com um atraso ainda maior desta que foi uma de suas principais promessas de campanha, mas, ainda que isso arraste o processo por mais alguns meses, é recomendável que o prefeito e seu secretário da Saúde considerem a possibilidade de lançar um novo edital, fracionando as cirurgias em vários lotes menores, de forma que outros centros médicos e hospitais possam ser integrados ao mutirão, naquilo que têm condições de assumir com responsabilidade. Pior do que atrasar mais um pouco o mutirão será se dinheiro público for gasto e os objetivos não forem atingidos, tornando ainda mais angustiante a situação de quem espera há anos por um exame ou uma cirurgia.
E se faltar bom senso ao prefeito para buscar um caminho seguro, que não se omitam a Câmara e o Ministério Público em sua tarefa de orientá-lo.
mais
sobre
LEIA
+