Em uma década, o Teatro Escola Mario Persico proporcionou uma sucessão de eventos relevantes para a história do teatro de Sorocaba. Nesse período, foram apresentados mais de seiscentos espetáculos, e nem sempre de forma convencional: em alguns deles, os espectadores não puderam bater palmas, porque teriam provocado a ira de um vizinho do teatro; em três ocasiões, a plateia foi constituída de apenas um espectador.
E mais: o fundador da escola, Mario Persico, já atuou em 160 peças, acumulando as funções de diretor e ator. Às vezes, de diretor, ator — e autor. Com participações em dez festivais, ele conquistou nove títulos de melhor ator. “Em par com as vitórias, surgiram os problemas. Contudo, nada nos calou, ou nos impediu de ir adiante com nosso propósito. Resistimos. Aqui, a arte não repousa”, disse Mario.
É com essa energia que ele criou a Escola, em 2013, com o apoio do grupo que dirige, a Cia. Clássica de Repertório, e a inaugurou com uma peça ousada: “Os que chegam com a noite”. “Ela foi escrita com base no universo noturno da cidade. Colhemos aqui mesmo, em nossa sede, entrevistas com garotos de programa, prostitutas, travestis, dependentes químicos — enfim, tudo o que há de vida marginal na noite sorocabana.”
Mario revela mais detalhes dessa montagem: “Eu e os integrantes da Cia. Clássica convidávamos aquelas pessoas para uma roda de conversa. Nem todas aceitavam. Mas, àquelas que topavam, pagávamos o quanto elas cobravam de seus clientes por uma hora de programa, valor que juntávamos por meio da contribuição de todos nós, via cotização.” A hora custava, naquela época, em média, cinquenta reais.
“Com base nessas entrevistas, prossegue Mario, fizemos um trabalho que resultou em grande sucesso de público e de crítica. O título da peça veio emprestado de um filme inglês de 1962, o ‘Night comers’ com Marlon Brando, que era uma continuação de ‘Os inocentes’, um filme de terror psicológico, estrelado por Débora Kerr, que por sua vez era inspirado em ‘A volta do parafuso’, de Henry James.”
Sucederam a “Os que chegam com a noite” outras peças de longas temporadas, com as “Sombras do passado” e o “Eterno laço de amor”. Dois melodramas que ficaram em cartaz por mais de um ano, com entrada franca.
Proibido aplaudir
O sucesso de público gerou incômodo a um vizinho da escola. Ela fora instalada em dois apartamentos do prédio de número 823 da rua da Penha: no apartamento térreo e naquele do terceiro e último andar, ao qual se tem acesso por escadas. O vizinho residia no segundo andar. Irritado com os aplausos e os gritos de “bravo!” dos espectadores ao final das apresentações, ele passou a fazer ameaças ao diretor, a gritar e a chutar a porta do teatro a fim de exigir silêncio.
Com a intenção de manter a paz, Mario passou a solicitar ao público que aplaudisse os espetáculos sem bater uma mão na outra, mas que o fizesse em libras, a linguagem dos surdos: levantando as mãos e agitando-as sem barulho. E, também, que não expressasse sua admiração com o tradicional “Bravo!’’. Isso ocorreu em 2017. Depois, o vizinho se mudou. As palmas de uma mão batendo na outra e o “bravo!” puderam voltar.
Um espectador apenas
Embora a companhia colecionasse êxitos, houve três ocasiões em que os espetáculos tiveram apenas um espectador. “Mas em respeito à pessoa que se preparou para assistir àquela peça, em nosso teatro, naquele dia e hora, jamais cancelaríamos a apresentação”, disse Mario.
Um desses espectadores únicos foi o contador Wellington de Souza Firmino, que também é músico: toca bateria. Era o ano de 2017 e o drama que então se encenava sob a direção de Mario Persico era “Eterno laço de amor”.
Wellington diz ter se impressionado com o fato de ser o único presente no auditório. “Imaginei, por isso, que a encenação seria cancelada. Eu compreenderia. Entretanto, o Mario me falou que, havendo plateia, independentemente do número de presentes, o espetáculo tem de acontecer. Na época, isso me chocou, mas depois me fez sentido: entendi que essa atitude, afinal, é por conta de um trabalho feito com amor em sua melhor versão.”
Essa produção encantou Wellington “em todos os detalhes. Lembro-me de que a peça tratava de um relacionamento baseado em crenças espíritas, as quais permitiam ao protagonista aguardar o retorno da pessoa amada mesmo depois da morte dela. Isso me trouxe grande reflexão, pois eu nunca havia visto o amor sendo interpretado dessa forma.”
Agenda alucinada
“A intensidade de nosso trabalho estimulou a nossa própria produção teatral bem como a de outros coletivos da cidade e da região, que aqui vieram se apresentar, e assim pudemos ter uma agenda semanal alucinada, sem descanso, de tal maneira que nos transformamos num centro cultural dos mais pulsantes de Sorocaba e região”, comenta Mario.
Esse desempenho foi reconhecido pelo público que, em votação pela internet, promovida pelo Jornal Rol, elegeu Mario Persico como Melhor Produtor Cultural e Melhor Diretor de Sorocaba e região.
No balanço do setor teatral de Sorocaba, em 2018, o Blog do Simões, do professor e crítico José Simões, comentou: “Não tem sido fácil fazer teatro nos últimos tempos.” O blog “destaca o trabalho dos produtores, artistas e reconhece a luta daqueles que abrem espaço, brigam por verbas mínimas, ensaiam por um mundo melhor, defendem a produção local e produzem teatro com qualidade.” Na categoria “Destaque”, Simões cravou seu reconhecimento “ao Teatro Escola Mario Persico pela manutenção de temporada semanal no espaço”.
Pandemia, crise e desafios
E de repente veio pandemia, que isolou as pessoas, ameaçou a todos de morte, fechou portas e instalou a crise econômica, inclusive no teatro.
Para enfrentar esse revés, com engenho e coragem, Mario desbravou novos caminhos: escreveu e dirigiu a radionovela “Drácula”, com episódios diários exibidos pelo canal mantido pela Escola no YouTube, e pela rádio Rádio Nova Tropical FM, de Votorantim. E fez exibições virtuais de montagens como a de “O Inferno são os Outros”, adaptação de “Entre quatro paredes”, de Jean Paul Sartre.
As apresentações virtuais, entretanto, não trouxeram à escola o faturamento essencial para a sua manutenção: depois de sete anos de apresentações semanais, de repente ela ficou sem receita de bilheteria e das mensalidades pagas pelos alunos do curso de teatro.
A realidade pandêmica impôs ainda um desafio adicional ao Mario: encontrar alternativa econômica para a sobrevivência da escola, que ficaria quase dois anos sem espetáculos e sem aulas.
Foi então que ele acionou seu tino comercial, já testado com sucesso em dois bares noturnos de que fora proprietário (Bauhaus e Embriagai-vos), e se lançou à cozinha, passando a vender comida. Uma vez por semana, fazia sopas. “Tive de me virar. Passei seis meses fazendo sopas, pesquisei bastante a respeito delas e fui aprendendo um monte de coisas, de tal modo que não repeti nem sequer uma vez o sabor delas.”
As restrições causadas pela pandemia cessaram e a escola vem retomando suas atividades aos poucos. E já começa a celebrar seus dez anos por meio de uma maratona de espetáculos (leia abaixo).
O Senhor Teatro
A arte já estava no menino Mario Persico, na terra em que veio à luz, a cidade de Santa Cruz de Rio Pardo, pois, desde muito cedo, ela, a arte, nele se manifestava no gosto pela montagem da árvore de Natal e do presépio. Enquanto não chegava essa época, ele riscava folhas, com os traços da infância, desenhando pássaros, cavalinhos, árvores, mar, sol, lua.
E eram traços bonitos não apenas aos olhos da família, mas inclusive dos professores. “Certa vez, uma das minhas professoras gostou tanto de uma paisagem que fiz com giz de cera, na qual se via um horizonte, com montanhas e sol ao fundo, que ela me levou de classe em classe para que eu a mostrasse aos colegas.”
Todavia, a cena do nascimento do menino Jesus num estábulo em Belém é a que mais lhe chamava a atenção. Mario explica: “O presépio, criado por São Francisco de Assis, no século XIII, é um importante símbolo religioso, e, também, uma estrutura rústica, singela, bonita, que me toca muito.”
Ainda na infância, o cinema já vinha conquistando-lhe o coração. Entretanto, sucedeu de, em 1964, a família vir morar em Sorocaba, onde ele teve, aos 18 anos, o grande encontro com o teatro. Frequentou um curso dado por Elvira Gentil, promovido pela Prefeitura. Paixão instantânea. Desde essa época, nunca mais parou de escrever, representar e dirigir.
A revolução de “A mulher zumbi”
Mario criou a Cia Clássica de Repertório depois de várias encenações bem-sucedidas. Em 15/10/1994, a Cia estreava, no Teatro Municipal Teotônio Vilela, a peça que veio revolucionar a história do grupo e do teatro sorocabano: “A mulher zumbi”. O público e a crítica consagraram-na imediatamente.
Essa montagem conquistou 27 prêmios em festivais realizados em São Paulo e fora dele, e fez temporadas em teatros paulistas, mineiros e brasilienses. Esse triunfo levou a Cia. a internacionalizar-se, indo representar o Brasil no XII Entepola – Encontro de Teatro Popular Latino-Americano, no Chile, em 1998. No ano seguinte, excursionou por Portugal
O tempero do sucesso
“A mulher zumbi” é de autoria do Mario. Nas palavras dele: “Eu a escrevi tentando resgatar a chanchada circense, no gênero ‘terrir’ – teatro cômico ou terror para rir. O texto passeia por vários estilos teatrais: farsa, chanchada, chanchada circense, comédia de costumes, vaudeville (comédia que alia dança e canções, intriga e até acrobacias), melodrama.”
O autor brinca no seu texto com a outra arte de que gosta, o cinema, fazendo referências a clássicos como “Rebecca – A mulher inesquecível” e “Psicose” (Alfred Hitchock); “O bebê de Rosemary” (Roman Polanski); “Os girassóis da Rússia” (Vitório de Sicca); “Os guarda-chuvas do amor” (Jaques Demy); “A pantera cor-de-rosa” (Blake Edwards), “…E o vento levou” (Victor Fleming) e “Quanto mais quente melhor” (Billy Wilder), entre outros.
Tudo isso apresentado em alta voltagem por dois atores: o próprio Mário e Jair Christo. Eles se desdobram em seis personagens, que trocam, alucinadamente, 36 figurinos, num jogo ágil e cômico. Um intenso exercício de atuação para os atores. E que agradou ao público, pois nada menos que 40 mil pessoas já assistiram à peça.
O mote da história é simples: numa ilha do Caribe, a amada esposa de um grande proprietário é transformada em zumbi por um feiticeiro local. Para desfazer a maldição, o marido teria de apresentar ao feiticeiro outra mulher em tudo semelhante à sua esposa.
O marido encontra Ethel, a quem promete casamento. Depois de o enlace já ter sido feito por procuração, em Londres, ela vem à Ilha na esperança de consumar o matrimônio. E se vê envolvida numa trama sórdida.
Decorridos longos anos em cartaz, “A Mulher Zumbi” foi transformada em média-metragem, com produção sorocabana da Loja de Ideias.
Com base nesse sucesso todo, Mario efetivamente profissionalizou seu grupo e montou a Escola de Teatro Mario Persico, que agora completa dez anos.
Aluno especial do curso de Mestrado da Universidade de São Paulo (ECA), na disciplina Teoria e Prática da Peça Didática de Bertold Brecht, ministrada pela professora Ingrid Dormien Koudela, e pós-graduado em Pedagogia do teatro, pela Universidade Sorocaba, Uniso, Mario também é professor do Núcleo de Artes Cênicas da Fundec.
E o gosto que tinha na infância pela montagem do presépio, símbolo de nascimento de Cristo, se conecta com a tradicional procissão de a “Paixão de Cristo” de Vila Assis. Atualmente, Mario dirige esse espetáculo, que existe há mais de quarenta anos e reúne mais de cem integrantes.
Essa procissão representa, para os cristãos, a via sacra, a morte e a ressurreição de Cristo, e a consequente salvação da humanidade que se vê perdoada de seus pecados.
I Maratona de Teatro inicia as celebrações
Cinco espetáculos serão apresentados gratuitamente neste sábado (17), das 14h às 22h, durante a 1ª Maratona de Teatro, dando início às celebrações dos dez anos do Teatro Escola Mario Persico, fundado em 2013 pelo dramaturgo, ator e diretor Mario Persico.
As apresentações das peças obedecerão à seguinte ordem:
14h: “A visita” – Núcleo de Arte Cênica da Fundec
15h30: “Minha vida com Jaime” – Cia. Clássica de Repertório
17h: “Senhora Felicidade” – Grupo Teatral Duartes
18h30: “A mão esquerda e outras histórias” – Segundou na Brigadeiro
20h: “Sob o azul do céu” – Cia Clássica de Repertório
“A maratona é símbolo de nossa primeira década de resistência artística. Um marco relevante na cena cultural da cidade, que desejamos partilhar com o público”, celebra Mario. Ele também adianta que novos eventos comemorativos estão sendo planejados para o próximo ano.