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Curta sobre comunidades terapêuticas será apresentado neste sábado, com debates

A obra ficcional "40 dias no deserto", de Mauro Baptistella, é inspirada em relatos reais de violências e mortes ocorridas nessas instituições

Maíra Fernandes (Portal Porque)

https://www.youtube.com/watch?v=bdftWf-OmXM

Não por acaso a referência bíblica de um período de provação dá título ao filme “40 dias no deserto”, que o diretor sorocabano Mauro Baptistella lança neste sábado,  às 16h, no Sesc Sorocaba, e às 20h, no Auditório Francisco Beranger, em Votorantim.

A obra ficcional de 15 minutos usa a arte para dar luz a uma realidade ainda presente na atualidade: as violências em comunidades terapêuticas evangélicas, herança triste das práticas aplicadas nos antigos manicômios espalhados pelo País e, durante décadas, concentrados, em grande parte, na região de Sorocaba.

“A ideia, com o filme, é levantar essa questão e incitar o debate para uma nova proposta”, adianta Baptistella, reiterando a necessidade de discutir o assunto e procurar novas formas de lidar com as dependências químicas e de álcool, mas à luz da saúde pública.

Depois de ter mergulhado em outro assunto bastante sensível e ainda tabu — o suicídio, mote da obra “Ouvidos Calados”, de 2018 –, o diretor se viu envolvido no tema da saúde mental.

Acompanhando relatos relacionados ao tema, o estopim ocorreu quando chegou ao seu conhecimento a notícia de pastores e lideranças religiosas que se passavam por policiais para levar dependentes à força para essas comunidades. Ao buscar mais informações sobre essa realidade, entendeu a relação, ainda, com as práticas dos antigos manicômios.

“Depois que a luta antimanicomial começou e esses locais começaram a ser fechados, achamos que teria um combate contra aquelas torturas praticadas. No entanto, ao observar as notícias recentes, percebemos que a realidade nessas comunidades ainda é muito parecida com o que ocorria nos manicômios”, conta.

Além dos caso dos abusos, torturas e outros tipos de violências, Baptistella pontua a dificuldade em tratar do assunto, principalmente, por envolver a fé em uma realidade que precisa ser tratada no âmbito da saúde pública. E, mediante o aumento de relatos sobre esses abusos nas comunidades terapêuticas evangélicas, a ideia de usar o cinema como esse lugar de debate gerou uma outra e importante dúvida ao diretor: fazer um documentário ou uma obra ficcional?

A realidade como pano de fundo

Por se tratar de um assunto sensível e ainda tabu, a opção de Baptistella por uma obra ficcional foi baseada na liberdade possibilitada com esse formato. Pautado na pesquisa de relatos reais, ele e o irmão, Carlos Baptistella, desenharam um roteiro que pode ocorrer no interior de alguma dessas comunidades, inspirados nas histórias divulgadas pela mídia, mas com a liberdade da ficção.

“A questão de ser documental ou ficcional foi difícil. Fiquei tentado em fazer de forma documental, mas, como é um assunto complexo, que deve ser debatido, questionado, e que também tem gente bem intencionada no meio, a opção em fazer ficção é que poderíamos falar, de forma mais livre e criar uma história com apelo mais narrativo. Por ser ficcional, somos inspirados em uma realidade de uma história que possa ser como essa.”

Para o diretor, por ser sorocabano, pela realidade da cidade que já concentrou sete hospitais psiquiátricos antes da desinstitucionalização, sendo destaque negativo como um polo de abusos, torturas e até mortes nesses locais, o tema se tornou mais sensível a ele e à equipe.

O filme “nasceu” na cabeça de Baptistella entre o final de 2020 e 2021, ainda sob o impacto de um período de pandemia, que trouxe à tona as questões da saúde mental tanto pelo sentimento de medo, luto, como o de incertezas e confinamento. Mas foi neste ano de 2022 que todo o processo de realização ocorreu, com a aprovação do projeto no edital ProAc Lab para o interior.

O roteiro é em parceria com o irmão Mauro Baptistella, e a locação foi uma chácara em Sorocaba, que possibilitou a filmagem em plano-sequência, sem cortes. As gravações ocorreram em setembro deste ano. “Um pseudodocumentário cru, criado como se fosse uma transmissão ao vivo dentro de uma comunidade terapêutica evangélica”, conta.

No filme, de acordo com a sinopse, um confiante e desavisado pastor, dono de uma comunidade terapêutica, recebe a iniciante influenciadora Gabriela para uma live. Com o cineasta Lucas, ela tenta conduzir uma conturbada transmissão ao vivo, mas a reportagem surpreende a todos com o que encontra.

Debate por meio da arte

Além da apresentação do filme, haverá um bate-papo com profissionais da área da psicologia e jornalismo: Lúcio Costa psicólogo, psicanalista e mestre em Educação, Comunidade e Movimentos Socias; Tamiris C. Gomes Mazetto, psicóloga; Priscila Santos, estudante de jornalismo, escritora e que já teve nessas instituições de recuperação em álcool e outras drogas; e Carol Fernandes, jornalista do Portal Porque e pesquisadora do tema.

De acordo com Lúcio Costa, que participará do debate e tem participado da luta antimanicomial em Sorocaba e pelos direitos humanos, a importância de tratar o tema por meio da arte enriquece e amplia o debate, extremamente necessário, sobretudo, na região de Sorocaba, que herdou, com o fechamento dos hospitais psiquiátricos, um número considerável dessas comunidades terapêuticas, política fortemente divulgada e defendida também por autoridades locais.

“Sabemos da violação dos direitos humanos nessas comunidades e, também, a ligação histórica do prefeito com elas, o que é preocupante”, avalia, afirmando que esses locais contêm os mesmos problemas estruturais dos manicômios, com muito repasse de dinheiro público para a aplicação de “pseudotratamentos” não efetivos.

“O filme se passa nesse contexto, abrindo as portas de uma instituição de cunho religioso que diz ofertar tratamento. Contudo, esses locais – que via de regra são todos iguais – não tratam, mas segregam”, afirma o pesquisador.

Para ele, que vê muita potência ao trazer o debate para o campo da arte, o filme se mostra muito necessário, principalmente nesse momento de transição de governo e de mudança de política pública. “Até agora o governo Bolsonaro priorizou investimentos em comunidades terapêuticas, que violam direitos humanos e ofertam praticas ultrapassadas. Fazer esse debate pela via da arte é mais potente, chega mais às pessoas”, considerou, adiantando que acredita que a chegada de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) à presidência no próximo ano é um aceno de alento a uma situação estruturada de forma que não contempla nem a saúde pública, tampouco os direitos humanos.

Sobre o diretor

O filme é de Mauro Baptistella, que dirigiu e roteirizou “Ouvidos calados”, “Tropeada”, “A mulher que se casou com Iauaretê”, “Minha vida de cineasta”, “Querida mamãe” e “Televício”. Na pós-produção, atuou nos filmes: “Dois coelhos”, “Free Havana”, “Solace” (título brasileiro: “Presságios de um crime”), “Mais forte que o mundo – A história de José Aldo”, “O faixa preta”, “Acampamento intergalático” e “Alice no mundo da internet”.

Serviço

O filme e o bate-papo ocorrem neste sábado, 17, no Sesc Sorocaba, às 16h. O Sesc fica na rua Barão de Piratininga, 555, Jardim Faculdade. Depois, às 20h, o filme será exibido no Auditório Francisco Beranger, que fica na avenida Vereador Newton Vieira Soares, 291, Votorantim, com bate-papo com a equipe.

No dia 19, às 19h30, a obra será apresentada no Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e Região, que fica na rua Júlio Hanser, 140, com bate-papo com lideranças religiosas. Todas as exibições são gratuitas. Também haverá exibição on-line amanhã, no mesmo horário das presenciais, por meio do canal no Youtube (clique aqui).

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