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Com ‘fome de arte’, Ana construiu um teatro em sua casa, no Jardim Maria Eugênia

Aos 70 anos e sem nenhum apoio do poder público, Ana Maria Duarte sonha possuir um teatro ainda maior

Davi Deamatis (Portal Porque)

Ana Maria diante do muro que se tornou atração turística e local preferencial para selfies, mas que também foi incompreendido por algumas pessoas. Foto: Davi Deamatis

Na poesia Manifesto, Ana Maria Duarte escreveu: “A fome seca as almas.” Esse verso é a tradução de sua própria realidade: ela tem fome de arte. E então se alimenta bem de poesia, de artes plásticas, de dança e de teatro, passando ao largo da secura.

Assim nutrida, ela vai em busca de realizações, de soluções. Exemplo: diante da falta de espaço para que sua filha Alessandra Duarte, professora de dança, mostrasse os espetáculos que montava com suas alunas, Ana Duarte construiu um teatro em sua casa, montado num salão de 7 metros por 5,5 m, com quarenta lugares. Não há espetáculo que não lote a casa. Às vezes, o público dobra.

Numa outra poesia, Ana Duarte escreveu estes versos, que espelha seu espírito destemido, empreendedor:

“Sozinha nessa festa/ E sem fantasia/ o que mais me resta?/ Entro então na folia/ Com a vida invadindo a fresta.”

“E sempre há uma fresta” – ela reafirma.

O teatro recebeu a denominação de Espaço Cultural DuArt´s, e está localizado na rua Antônio São Leandro, 76, no Jardim Maria Eugênia. Logo à entrada, há símbolos mostrando que ali existe alguma coisa de singular: na calçada, há a escultura de um homem com uma coruja na cabeça, ladeada por outras quatro corujas, em homenagem à sabedoria. Na feitura dessas peças, Ana Duarte usou jornal, cimento e cola, e textura. A coruja, para muitos povos, de fato representa a sabedoria e o conhecimento. Por isso, é igualmente tida como o símbolo da filosofia.

Ana Duarte esculpiu as corujas no período da pandemia: “Tudo parou, eu dava aulas numa casa de idosos. Fiquei triste com a paradeira. E com medo também. Mas, você sabe, artista tem comichão, não pode parar senão morre. Então decidi esculpir aquelas corujas e colocá-las na calçada.

No muro, já constavam 43 mensagens de estímulos, cada qual transmitida por apenas um vocábulo. São verbos e substantivos impressos no lombo de caixinhas de fitas de videocassete encravadas na parede. “São palavras que me ocorreram num momento bom, que achei útil partilhar com o público”, disse Ana Duarte.

Beleza e Preconceito

“As crianças, especialmente elas, gostam muito dessa frente aqui, e fazem selfies. Até os rapazes do correio e os motoqueiros, quando vêm me entregar alguma coisa, pedem para fotografar a calçada. Os carros diminuem a velocidade a fim de que seus ocupantes possam contemplar as esculturas, as palavras na parede e eventualmente fotografar”, conta Ana Duarte.

Mas a beleza das peças expostas também despertou o preconceito em algumas pessoas. Ana recebeu reclamações pessoalmente e ouviu falatórios dando conta de que elas não gostaram das corujas na calçada. “Algumas, por motivos religiosos, confundem os símbolos e julgam essas imagens como sendo objetos ligados a feitiçarias ou a algum ente que não convém ao Deus delas – ou que, apenas por desconhecimento do que de fato representam aquelas aves, atribuem a elas algum sinal de má sorte, de morte ou coisa parecida.”

Por essa razão, Ana Duarte pintou no muro um esclarecimento a respeito da coruja: “Na Mitologia Grega/A noite era considerada/o momento dos pensamentos filosóficos/E a coruja, por ter hábitos noturnos/acabou representando a busca da sabedoria.”

Espaço das Artes

Quando Ana Duarte abre o portão, o visitante se depara com um corredor, no lado direito da casa, pelo qual se tem acesso ao teatro. Nas paredes, uma galeria: quadros pintados a óleo; no chão, esculturas feitas de garrafas pet e tampinhas, jornais e cartuchos de papelão, descartados por costureiras que já se utilizaram de suas linhas.

E plantas. Na entrada do teatro, há um carrinho de pedreiro carregado com pedras, no qual Ana pintou uma frase que faz uma bem-humorada intertextualidade com a poesia de Drummond: “pedras do meu caminho”. Aliás, Carlos Drummond, Cecília Meireles e Vinícius de Moraes são os poetas preferidos de Ana Duarte.

Cortinas pretas, chão preto. Ana se senta na arquibancada e, com calma, vai cavando suas lembranças: “Minha filha, Alessandra, desde muito mocinha, dedicava-se à arte-educação e dava aulas em várias escolas da cidade. Aqui, ela montou uma escola de dança para crianças, na década de 90. Chegou a ter 180 alunos. Mas nunca obtivemos qualquer apoio do poder público. Jamais conseguimos, por exemplo, um espaço no teatro municipal para as apresentações das alunas dela.”

O diretor de teatro, poeta e dramaturgo Dado Carvalho, que Ana Duarte tem como irmão, “vendo a nossa dificuldade, me sugeriu que montasse um teatro em casa, no salão aqui do fundo. Topei na hora. Ele mesmo pintou as paredes, providenciou cortinas, iluminação, e adequou o espaço para a instalação dos camarins. E, assim, montamos o teatro.”

As delícias da cultura

A filha, Alessandra, passou a ensinar balé ali no teatro, e montou diversos espetáculos. Até 2015. Depois, ela se casou, e foi se dedicar ao comércio de comida fit em Votorantim, desistindo das aulas.

Ana Duarte conta: “Então eu assumi o teatro. Por um tempo, aluguei este espaço para uma professora de balé, depois para um grupo de capoeira. Findo o período da pandemia, estamos retomando nossas ações aos poucos.”

Outra atividade que ela quer retomar ali, em parceria com Dado Carvalho, são as reuniões dos poetas ligados ao grupo PoetArt, do qual também fez parte seu marido Oswaldo Biancardi Sobrinho, o Wadeco, falecido há seis anos. Ele foi produtor musical, poeta e jornalista. No teatro, há um espaço de convivência que, em homenagem a ele, recebeu a denominação de Boteco do Wadeco.

Aos setenta anos, Ana Duarte sonha com o dia em que terá um grande teatro, com capacidade de abrigar pelo menos cem espectadores. Ela diz: “Não tenho ambição de ser uma grande atriz, uma estrela. Mas ser dona de uma grande casa de espetáculo, sim. Isto é uma delícia.”

Natural de Botucatu, ela morou em São Paulo, Rio Grande do Sul e, a partir de 1986, fincou o pé em Sorocaba, onde teve a oportunidade de participar, como atriz, de diversas peças teatrais infantis, dirigidas por sua filha Alessandra, além de dar aulas de pintura e artesanato em várias escolas, centro esportivo, clínica de idosos, entre outros.

Destaca-se, ainda, a sua atuação no papel de Alzira Sucuri, figura popular de Sorocaba, retratada pela Cia do Silêncio, no documentário “Cem anos com Alzira”, em 2011. E atuou em outros dois projetos feitos com recursos da Lei de Incentivo à Cultura de Sorocaba (Linc), que homenagearam as mulheres e o líder espiritual João de Camargo.

Agora, Ana Duarte atua na peça que Dado Carvalho escreveu em sua homenagem e que, apropriadamente, recebeu o título de “Senhora Felicidade”.

Segunda reportagem da série “Arte da Resistência”, dedicada às pessoas que criaram espaços culturais alternativos em Sorocaba, em contraponto à falta de investimentos nos espaços oficiais. Para ler a primeira reportagem, clique no link abaixo.

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Fachada do Espaço DuArt’s tem esculturas feitas com material reciclado, com garrafas pet e jornai . Foto: Davi Deamatis

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