A Biblioteca Comunitária Milton Expedito Nascimento, do Parque das Laranjeiras, hoje localizada na rua Michel Chicri Maluf, 450, “é uma conquista de mais de uma década de resistência cultural de jovens estudantes de nossa periferia”, disse Josué Lima, um de seus idealizadores.
Josué estudava na Escola Estadual Antônio Cordeiro, no Laranjeiras, em 2000, no ensino fundamental, onde era dirigente do Grêmio Escolar. E uniu-se a outros colegas, inclusive de outras escolas de bairros da região, Paineiras, Guaíba e Santo André, engajados no movimento estudantil e na música, principalmente no rock e no rap, “para levantar uma bandeira: criar uma Biblioteca Comunitária”.
Lembra-se Josué: “Havia um sentimento de frustração entre os jovens: as bibliotecas existentes em nossa região não satisfaziam as nossas necessidades, porque ora não tinham livros o bastante, ora não tinham um funcionário que fosse para nos atender simplesmente abrindo ou fechando a biblioteca.”
Começaram, então, a promover eventos na escola: realizaram torneios de futebol de salão e shows musicais. E pediam aos que fossem assistir aos jogos e/ou às apresentações que contribuíssem doando um livro a título de ingresso.
Cultura em movimento
Entre os estudantes havia inúmeros grupos de rap. Em meio a eles estava Ana Paula de Oliveira, também estudante do ensino fundamental na Escola Antônio Cordeiro. Desde criança, ela cantava em sua igreja, evangélica, em casamentos e em festas de aniversário.
Nas reuniões feitas por Josué, ela conheceu o coletivo de rap Posse, Rima e Revolução, do qual passou a fazer parte.
“Eu já gostava do rap porque meus irmãos ouviam essa música no rádio. As letras falavam muito comigo, uma vez que retratavam a minha realidade e das pessoas que eu conhecia. E eu desejava mudar essa realidade dos jovens da periferia, que viviam sem acesso à leitura, à educação e à faculdade”, disse Ana Paula. Ela aderiu à luta e recebeu convite para integrar o grupo Filologia, com Juliano Santana e Thiago Saci.
Resistência
“Nós sentíamos que havia preconceito em relação aos jovens e aos movimentos dos quais fazíamos parte. Então, adotamos uma estratégia visando driblar possíveis resistências: criamos um evento chamado ´Cidadania na Escola´. E fomos em busca de apoio de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e da Associação dos Engenheiros e dos Arquitetos para que aqui atendessem à comunidade”, disse Josué.
Com esse evento, os jovens granjearam o apoio da direção da escola e da comunidade. Por isso, começaram a aumentar a arrecadação de livros, inclusive infantis, de gibis e cds. Assim, eles intensificaram a luta pela Biblioteca. Ana Paula e seu grupo passaram a fazer apresentações quase todos os meses, com a finalidade de arrecadar de livros. Todavia, faltava-lhes espaço. O ano era 2002.
Um marco histórico
Nessa época, existia um prédio público abandonado, do antigo posto de saúde do Parque das Laranjeiras. O prédio atiçou nos jovens o desejo de ocupá-lo.
Assim se fez. Ocuparam o prédio, e, em mutirão, fizeram a pintura dele, depois a limpeza, e ali colocaram os livros. Contudo, na manhã do dia seguinte ao da faxina, os vizinhos — que aprovaram a ocupação, pois viviam inseguros diante do abandono do local –, começaram a ligar para os jovens avisando-lhes que ali estavam chegando máquinas para a demolição do prédio.
Josué rememora: “Foi um corre-corre desesperado. E de repente estávamos no prédio, visto que morávamos próximo dele. Quatorze estudantes, meninas e meninos, para fazer a resistência. Subimos no telhado, no muro, nas janelas. Eram 8h.”
A Prefeitura é que havia pedido a desocupação, alegando que o prédio seria demolido porque estaria com a estrutura comprometida. Depois das máquinas, vieram os policiais militares e os guardas municipais. Eles traziam em mãos a ordem judicial para que desocupassem o imóvel.
“Havíamos ficado lá o dia todo, resistindo. A negociação se acabou quando os policiais anunciaram: ´ou vocês saem agora, ou vamos ter de tirar vocês daí´’. “Esse episódio foi tema de amplas reportagens. A repercussão na mídia nos trouxe a simpatia da comunidade. Foi um marco para o projeto, que deslanchou de vez”, diz Josué.
Santo André 2
Sem lugar onde pudessem levar a Biblioteca, os jovens receberam um oportuno convite do coordenador da Associação dos Moradores do Jardim Santo André 2, Cido Lima: “Se vocês quiserem se instalar aqui, nós temos espaço.”
Aí começou de fato a Biblioteca, que então recebeu o nome de Zumbi, em homenagem a Zumbi dos Palmares.
Nesse local, a cantora Ana Paula de Oliveira dedicou especial atenção às crianças do bairro. Neta de avô mineiro, que tocava sanfona, evangélica e estudiosa de música, Ana Paula começou a dar aulas de canto para aquelas crianças, com as quais formou um coral infantil.
Diz ela: “Ensaiávamos todos os sábados. Devido à carência delas, percorríamos os estabelecimentos comerciais da redondeza pedindo doações para o café da manhã para elas, nos ensaios. Havia criança que não tinha o que comer em casa. Por essa razão, era muito gratificante proporcionar aquele café para elas.”
Novo despejo
“Com as doações crescendo, não somente de livros, mas também de cds, dvds, discos de vinil, gibis, o coral e as aulas de canto, e as apresentações dos grupos de rap, ganhamos novo impulso. Ficamos bons anos assim”, continua Ana Paula.
“Até que sofremos novo baque: o dono do terreno obteve na justiça a ordem de despejo dos moradores daquele bairro. Nós fomos os primeiros a receber a intimação para deixar a área. Como a maioria dos jovens já estava trabalhando, decidimos voltar para o bairro Laranjeiras, onde alugamos uma casa”, contou Josué.
Novamente a comunidade, professores e comerciantes acolheram bem os jovens. E muitos deles passaram a contribuir inclusive com o pagamento do aluguel.
Uma homenagem
O radialista Milton Expedito Nascimento, Dinho, era um dos voluntários da Biblioteca, desde o início de das lutas pela sua criação. Ele foi morto a tiros disparados por policiais militares, dia 23 de dezembro de 2018, no Parque das Laranjeiras.
Dinho teve sua moto e dois celulares roubados. Por meio do localizador de celular, encontrou sua moto e o telefone. Na volta para casa, foi viso pilotando a moto por dois policiais. Um deles atirou.
Em sua memória, a Biblioteca que havia sido denominada de Zumbi, passou a ser nomeada de Biblioteca Comunitária Milton Expedito Nascimento.
Com orgulho da luta, Josué comenta: é uma Biblioteca, mas podem chamar de Centro Cultural. Pois as atividades aqui avançaram e se diversificaram: além dos cursos de fotografia, das noites de vinis, coral, saraus, lançamentos de livros e curso de violão, costumo dizer que já nos transformamos, com méritos, no Centro Cultural Milton Expedito Nascimento.”
Quarta reportagem da série “Arte da Resistência”, dedicada às pessoas que criaram espaços culturais alternativos em Sorocaba, em contraponto à falta de investimentos nos espaços oficiais. Para ler as reportagens anteriores, clique nos links abaixo.
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Nome da biblioteca, hoje, homenageia o radialista Milton Expedito Nascimento, o Dinho, morto por PMs em 2018. Foto: divulgação