
O que eu sei de Paulo? Nada. Absolutamente nada. Apenas sei seu primeiro nome: Paulo. Como meu irmão, que era poeta, mas desse eu sei bastante, afinal, era meu irmão! E era poeta! Mas e aquele Paulo, o Paulo perdido, o Paulo apagado da memória, o Paulo que era preto, era o único, quase foi meu amigo naquele tempo de escola “de primeiro grau” (para os de hoje, “de ensino fundamental”)?
Eu tive um, unzinho, um único colega-quase-amigo preto em toda minha vida escolar, até a faculdade e, inclusive, no meu atual (e há longo tempo) trabalho público. Que eu me lembre. E se eu estiver cometendo um grave deslize, esquecendo de alguém? Ah, sim, agora me lembro, teve também a Rosa, pessoa que nunca mais olhou para mim severamente depois que, chegando na repartição, cantei para ela: “Rosa, morena, onde vai, morena Rosa? Com essa Rosa nos cabelos e esse andar de moça prosa? Morena, morena Rosa”, o que, aliás, me lembra que hoje, chamar preta (ou negra, como queiram) de “morena” está errado nos padrões vigentes. Talvez esteja mesmo. Deve estar, porque preto é preto, não tem que disfarçar ou amenizar. E ela era preta, como Paulo de imagem apagada na minha memória. A Rosa foi minha amiga enquanto tivemos proximidade no trabalho. Digamos que talvez ela seja minha redenção de branco, que pode dizer “eu tenho até amigos pretos!” (exagerando, claro, porque, sim, reformando o que eu disse antes, eu tive, sim – ah, Cartola… – uma, umazinha, uma única amiga preta, mas, para parecer menos branco, poderia pular do singular para o plural: amigos pretos. A menos que eu some o Paulo. Pronto, já são dois: Paulo e Rosa.
Um longo parágrafo acima para uma justificativa pobre. Notem que isso é bem típico de branco. Muitas explicações e pouca razão, quando se trata desse assunto.
Desde uma idade muito tenra eu me reconheci branco e questionador, procurando a origem das coisas, das palavras e das diferenças. Uma vez (recordo-me por causa da expressão da minha mãe, que ficou, como ela diria, “estupefacta”), eu cheguei a uma conclusão: “olha! Eu sou criança, que vem de criar! Então eu sou uma cri-an-ça!”. Eu ia nessas questões e, numa dessas, eu entendi que era branco e o Paulo preto. Só ele, talvez na escola toda, mas, com certeza, na minha classe de branquinhos. E logo passei a me policiar. Tanto que, aos doze anos, declarei publicamente que um dos maiores problemas atuais era o racismo. Na mesma declaração, eu disse que queria ser cantor de samba, lembrando do Emílio Santiago. Naquela época muito pouco ou quase nada era falado sobre racismo. Na escola se falava de escravidão, sim, mas o foco era a “descoberta” portuguesa, a divisão geográfica do país, os tratados europeus, a pujança que ouro e café proporcionaram. Só esqueceram de dizer quem recebeu os dividendos dessa pujança. Sobre a questão de que tudo isso era fruto de uma intensa exploração e submissão de pessoas de pele preta, não. Era tangencial. Mas minha intuição e meu espírito questionador perceberam, mesmo sem entender os motivos.
Hoje, olhando para trás, vejo que, mesmo sendo assim, mesmo falando com todas as letras, mesmo apontando, inclusive para pessoas muito próximas, seus modos embutidos de racismo, eu permaneci na bolha branca. Meus amigos e relacionamentos contumazes (reais, ok? Peço aqui perdão aos virtuais, porque essa é uma outra relação) são todos brancos, com uma ou outra exceção justificadora da regra (logo, não contumazes, embora pelo menos uma tenha sido bem importante).
Sim, estou cansado e frustrado, talvez até deprimido, pois aquela mesma sensação de criança de uma coisa nova (você entendeu a verbalização do termo aqui, não entendeu?) ainda permanece, mas a longa luta diária da vida nos deixa presos às nossas bolhas fortemente reforçadas por tudo que nos cerca. E isso não é uma boa desculpa. É mais uma fuga dentro da minha bolha branca, que insiste em não ser furada. E eu já sei o porquê, mas isso fica para outra oportunidade, pois isto aqui não é um tratado, é apenas um devaneio e, talvez, um pedido muito mal feito de desculpas de minha parte por tudo que temos feito contra os pretos.
O que não resolve a questão.
*Pedro Tortello é músico e produtor cultural.