Busca

Os feirões de empregos e o capacitismo sutilmente estabelecido

A inclusão é só uma palavra bonitinha sem a integração. Cada dia mais, vemos a necessidade de que as reformas de políticas públicas se apliquem também às diretrizes que acompanham a empregabilidade das pessoas com deficiências

Maíra Germano*

“A empregabilidade das pessoas com deficiências e doenças raras é carregada de oportunismo e pré-conceitos.” Foto: Secom/PMS

Nos últimos anos, com o aumento demográfico da cidade de Sorocaba e da região metropolitana, o mercado de trabalho tem sido um dos setores que mais vêm ganhando “vitalidade”. Empregos em centenas de áreas, desde o meio industrial até o comércio central, vêm sendo destaque em noticiários e até justificando indicação para prêmios.

Para ajudar ainda mais, embora com tantos empregos e empregabilidade, conforme vem sendo veiculado nas mídias, existem os feirões de emprego, que são constantemente realizados na cidade, uma vez que existem muitas demandas de diversos setores e uma confusão de informações sobre candidatos habilitados ou não para tais vagas.

Esses feirões são reais oportunidades para quem dá sorte de se encaixar nos requisitos solicitados; esses feirões, ainda, movimentam milhões de reais na economia local e do Estado de São Paulo. Entretanto, existe um fator que passa quase imperceptível entre feirões, mutirões e agências de recrutamento e seleção: o capacitismo. A empregabilidade das pessoas com deficiências e doenças raras é carregada de oportunismo e pré-conceitos.

Antes de prolongar, uma rápida definição sobre o capacitismo: é o veto de oportunidades reais ao trabalhador devido a sua condição – no caso, deficiência ou “possíveis” dificuldades que uma pessoa com doença rara possa vir a ter ou não.

Falo isso com propriedade, pois, como pessoa com deficiência devido a uma doença rara, nos últimos anos sofri recusas de empregos por apresentar o CID (Código Internacional de Doenças), e aparentemente, na seleção do meu currículo, houve precipitações diante do CID. Para ser mais clara, parece haver um padrão de olhar o CID no currículo, ignorar as capacidades e formações, e apenas um julgamento de “é deficiência auditiva? Tem problemas cognitivos ou de raciocínio.”

Talvez seja uma ideia precipitada minha, não sei. Mas não seria surpresa alguma que essa suspeita seja confirmada.

Não digo apenas por mim. Diversas pessoas que possuem um CID comentam comigo, me procuram para relatar casos semelhantes aos meus. Pessoas de carne e osso, com histórias, famílias, formações, sonhos, que entram esperançosas num emprego em que prometem tudo, faltando apenas tirarem do papel o conto de fadas que pintam.

Relatos de pessoas com deficiências ou doenças raras que entram em empresas superando barreiras, demonstrando seus talentos e capacidades e tendo seus sonhos pisoteados porque “o orçamento baixou, então teremos que fazer cortes”, ou “mas no seu caso/cargo não há um plano de carreira, você entendeu errado na captação”.

Podem parecem coisas meio (ou totalmente) absurdas para ler. Mas essa é a realidade crua e nua que ronda os trabalhadores com um CID tatuado na vida. O julgamento do CID anteriormente a uma entrevista é algo, no mínimo, antiético. Vai contra os direitos instituídos por leis que asseguram que as pessoas com deficiências têm direito de serem tratadas com dignidade em qualquer âmbito de suas vidas.

Lembro de uma entrevista recente, como exemplo, para uma vaga home office em que a entrevistadora começou a entrevista com um tom de voz estranho – ela estava gritando. Sim, gritando. Por eu ter deficiência auditiva, uso aparelhos auditivos que me permitem ter uma vida normal. Perguntei à entrevistadora se o microfone dela estava ruim ou se estava tudo bem, cheguei a achar que ela também possuísse uma deficiência. Ela me alegou em um som quase estridente que era devido a minha deficiência que estava falando daquela forma. Então expliquei a ela o mal-entendido, que eu estava com aparelhos auditivos. “Mas na tabela de CIDs, o seu CID aponta surdez, como que você está ouvindo simplesmente com aparelhos auditivos?” Sim, isso aconteceu. Depois disso, entramos num alinhamento e prosseguimos a entrevista. Infelizmente não fui selecionada para a vaga home office – não por falta de competências e capacidades, mas adivinha? Sim, por ser uma pessoa com deficiência.

Passei anos relutando para aceitar a minha realidade, minhas dificuldades (que são bem mínimas com o uso dos aparelhos, mas… sempre tem o mas). Meu primeiro emprego foi um exemplo perfeito de capacitismo. Passei na entrevista para operadora de caixa de uma rede de farmácias. Quando cheguei para meu primeiro dia, me colocaram como repositora de produtos. Sim, é isso mesmo. Nem preciso descrever a frustração que começou a crescer em mim, e obviamente não pararia de crescer tão cedo. Abandonei um curso da faculdade que eu amava, devido a falta de empatia para integrar meios que eu pudesse continuar estudando com todos.

Como outro exemplo, bem comum, é o padrão de empregabilidade de altos cargos ou planos de carreiras para pessoas com deficiências ou doenças raras dentro das empresas. Existem, com certeza. Existem quando há acidente no trabalho, que envolveria um processo legal; acaba saindo mais “barato” pra empresa evitar os custos de um processo indenizatório e criar, quase que por mágica, um plano de carreira para essas pessoas que tiveram “um golpe de sorte” do destino e passaram a andar com um CID estampado na cara e ganharam promoção.

A segregação na sociedade com todas as pessoas com deficiências e limitações, ou com as diferenças que fazem parte da vida de todos, se tornou algo corriqueiro, sutilmente inclusivo. A ironia é usar a inclusão para algo tão cruel com seres humanos e não aplicarem de verdade na vida trabalhista de milhares de pessoas.

Eu costumo dizer nas minhas conversas, palestras, explicações: a inclusão é só uma palavra bonitinha sem a integração. E, cada dia mais, vemos a necessidade de que as reformas de políticas públicas se apliquem também às diretrizes que acompanham a empregabilidade das pessoas com deficiências.

As cotas, hoje, se mostram ineficazes. São raras as empresas que realmente seguem uma direção humanitária, integrativa de verdade. Claro, as cotas têm um propósito importante na sociedade, mas a falta da fiscalização e consciência humana não permitem sua eficácia. Então, pra que manter uma política pública que não tem trazido grandes vitórias e benefícios, uma vez que em sua criação o intento era esse?

Mas para que essas políticas públicas mudem, é preciso mobilização. É preciso, querendo ou não, exposição. Não é recorrer ao coitadismo ou vitimismo, mas à verdade que as empresas escondem.

Você vê hoje pessoas que possuem o selo “CID de qualidade” tomando toneladas de antidepressivos, medicações para dormir, atrás de tratamentos e terapias porque o trabalho não é o que queriam, mas necessário. Temos ganhado salários e convênios médicos para gastar 90% todos os meses com exames, consultas, remédios caríssimos que nos propõem um tiquinho de satisfação ou felicidade em ter um trabalho… que vai continuar custeando esse ciclo vicioso doentio.

Isso acontece com pessoas sem deficiências também, com certeza, mas que possuem maior liberdade de estarem insatisfeitas. Pessoas com CID não têm esse direito, na visão empresarial.
Não estou exagerando. Nós precisamos ter mais união. Pessoas com deficiências, pessoas com doenças raras são PESSOAS, são seres humanos, como citei obviamente mais acima. Possuem metas, sonhos, realizações, famílias, filhos, pais, mães. Possuem estudos, formações, capacidades, talentos.

Com uma revisão de políticas públicas e maior união entre as pessoas, podemos transformar empresas como referências. Podemos transformar o município como uma cidade modelo. Podemos mover a região metropolitana como uma das mais INTEGRATIVAS do Brasil. Possuímos todos os recursos, mãos, conhecimentos para isso. Começando pela atenção nas escolas, no ensino, uma nova política pública de atenção às necessidades de todos – crianças, adultos, idosos com necessidades especiais, deficiências e doenças raras –, muitos problemas de caráter educacional, de mobilidade pública, acessibilidade para além de rampas e trilhas de guias para pessoas com cegueira ou baixa visão.

Precisamos nos mobilizar, com simpatizantes, pessoas que enxerguem esse mundo que estamos vivendo. Estamos em 2023, e ainda vemos notícias de trabalhadores resgatados em situações análogas à escravidão. Tem muita coisa errada que ainda precisamos resolver. E por que não resolvermos todos juntos?

Não sabemos o dia de amanhã. Pode ser alguém próximo, pode ser você o próximo contemplado com o selo do CID pro resto da sua vida. E lutar pra garantir a dignidade de todos como um todo não é um favoritismo, é exercer seu papel de humanidade.

*Maíra Germano é formada em Gestão Financeira pela UNINTER, pós-graduada em Finanças e Estatísticas pela Universidade FUTURA-FAVENI, cursando atualmente Ciência Política pela UNINTER. E-mail: mairagermano@live.com

mais
sobre
cid empregabilidade inclusão mercado de trabalho pessoas com deficiência
LEIA
+