
Representantes do povo brasileiro sobem a rampa com Lula: “O mandato lhe foi entregue pelo povo e não pelo seu antecessor.” Foto: Tânia Rego/Agência Brasil
Roger Bastide defendia algo comum entre os etnólogos atuais, o fato de que os mitos nascem em momentos de esgarçamento e desequilíbrio social. A tensão nas estruturas faz com que a sociedade projete coletivamente suas angústias, seus medos, suas frustrações. As narrativas mitológicas, os signos e os mitos se constroem para dar sentido – alegórico – e pôr fim à vida desordenada. Os principais mitos políticos coletivos ou arquetípicos, como definiu Jung, são: o da Conspiração (típicos de golpes e revoluções), a Idade do Ouro (houve no passado uma fase dourada da nação que precisa ser resgatada), o Salvador (um líder que diz ser a própria nação e governa acima da mesma ) e, por último, o mito do unificador.
Em meio às crises e desentendimentos, um político, um grupo político ou mesmo várias nações se unem para reconstruir o país ou o mundo. O unificador é um apaziguador. Antes dele, a sociedade estava em crise, a violência era a linguagem comum. Havia divisão e agressividade mútuas. Claro, as maiores violências eram cometidas pelo político ou grupo que usurpou o poder.
Tempos de exclusão, tempos de retrocesso político, social e cultural.
O unificador simboliza a superação dos conflitos e da desarmonia. Alguém capaz de reatar os laços desfeitos entre pessoas e pensamentos políticos, enterrados no fundo do lodo social e da anomia (o sociólogo Durkheim considerava estado de “anomia” a sociedade em que o respeito às leis, às sanções estatais e às instituições em geral desaparecem ou está totalmente desacreditado, tornando-a uma sociedade sem limites, sem regras e dominada pela violência do homem contra o homem).
Se os primeiros governos Lula se aproximaram muito do mito do “salvador”, este terceiro que se inicia pode ser identificado, indubitavelmente, com o mito do “unificador”.
Desde o início da campanha, no final de 2021, o esforço de Lula pelo consenso, num pacto social e numa aliança ampla em termos de ideologias políticas, tem sido o norte da trajetória em busca do novo mandato. Por si só, isso não garantirá que o governo unificador dará certo. Muito menos que as forças desagregadoras não continuam presentes nem lutarão para impor sua vontade política, a qual é pautada pela desunião e discórdia.
Na Mitologia grega existe um herói, irmão de Europa, denominado Cadmo (ou Cadmus). O guerreiro era o mais forte antes de Herácles. Lutou na guerra entre Beócia (Tebas) versus Troia. Apesar de vencedor, ele é lembrado por ter colocado seus próprios soldados em guerra, para ver qual o mais valoroso, sobrando apenas cinco guerreiros. Cadmus derrotou o dragão que dominava a região da Beócia e com os dentes da fera ele plantou as árvores frutíferas da futura cidade. Cadmus pacificou, delimitou e ordenou o território da pólis Tebas. Coube a ele ainda a entrega do alfabeto fenício aos tebanos. Em resumo, o antigo herói da mitologia grega foi um unificador, pois trouxe a paz (mesmo com os excessos e riscos), estabeleceu a cidade e seus cidadãos sobre uma terra sólida, auxiliou a germinar os campos e trouxe a civilização (simbolizada pelo alfabeto).
Temos diversos exemplos na história de unificadores. Uma das características do mito unificador é o grande banquete ou ceia. Os homens e mulheres que irão construir a nova sociedade abdicam de suas diferenças, de sua pretensa superioridade, de sua força política, para – em conjunto –, fazer nascer o amanhã. Quase sempre nas narrativas há uma ceia, um banquete, uma celebração para firmar o pacto.
Outro elemento em comum, além do sentar-se à mesa, é a imagem circular ou esférica da união. Jesus Cristo partilhou a última ceia e o último vinho com seus 12 apóstolos numa mesa redonda. A visão dos apóstolos e Cristo lado a lado como conhecemos, devemos à estratégia de pintá-los em perspectiva, como imaginou Leonardo da Vinci. Em verdade, estavam numa mesa redonda, uma mesa sem centros, sem pontas, onde todos têm o mesmo peso e importância. Cristo abdicou de sua divindade para misturar-se entre os homens.
Outra narrativa é a do Rei Artur, o unificador mítico da Inglaterra antiga. As referências à história de Jesus Cristo são diversas. Doze eram os apóstolos cristãos e os cavaleiros arturianos. Cristo fez a ceia numa mesa simples e redonda, os cavaleiros se reuniam em volta da Távola Redonda. A busca pelo Santo Graal é a ligação final: os cavaleiros estavam em busca do cálice em que Cristo tomara seu último vinho. Artur é herdeiro espiritual de Cristo. A história é cíclica.
Dante criou o imaginário dos ciclos do inferno. Milton, no século XVII, deu nova voz poética ao inferno. Em o “Paraíso Perdido”, ele imaginou o Pandemonium, uma cidadela erguida pelo próprio Satanás. Mesmo nas profundezas, a mesa do diabo é circular. O filósofo e poeta inglês T.S. Eliot escreveu o longo poema “Terra desolada” em 1922. Uma história da decadência ocidental. Um grito de desespero frente à guerra que terminara e a nova, muito mais traumática, que viria. No III canto encontramos esse trecho:
“…Doce Tâmisa, corre suave, pois falarei baixinho e quase nada
te direi.
Atrás de mim, porém, numa rajada fria, escuto
O chocalhar dos ossos, e um riso ressequido tangencia o rio.
Um rato rasteja macio entre as ervas daninhas,
Arrastando seu viscoso ventre sobre a margem
Enquanto eu pesco no canal sombrio
Durante um crepúsculo de inverno…”
O desencanto e o desconsolo devem ter atingido gradações insanas nos humanistas e nas pessoas mais sensíveis, pois após a Primeira Guerra veio o nazismo e o holocausto da Segunda Guerra. O que fazer depois de 1945? O mundo escolhe a liderança de dois unificadores. Estados Unidos e União Soviética teriam a incumbência de trazer paz e a harmonia. Do lado capitalista, uma das iniciativas foi a criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Qual o símbolo da ONU? Sim, uma esfera. A projeção cartográfica escolhida foi a polar ou azimutal, pois é nela em que os países não têm um centro, um norte. Todos somos iguais. No mesmo ano do Nobel de T.S. Eliot, a sociedade civil instaura um órgão de união e diplomacia universal. Após as trevas, a esperança.
Meio século de guerra e a Europa busca esquecer o passado e caminhar na direção da unidade. O Tratado de Maastricht funda a União Europeia em 1993. Quantos países? Doze. Qual a forma representada na bandeira? Estrelas em forma circular. As permanências históricas e míticas.
E o banquete cívico de 1° de Janeiro de 2023? Consciente ou não, a posse de Lula e Alckmin teve vários sinais e símbolos de uma restauração democrática.
Brasília, a capital da geopolítica, ganhou um dia ensolarado em meio à chuva e inédito frio na capital, talvez um último lamento dos céus, dos tempos pandemônicos. O passeio pelas largas avenidas do velho Rolls Royce, transportando os novos governantes, acabou por encontrar velhos conhecidos nas largas calcadas e recuos de Brasília. O caminho tomado por milhares de pessoas; as camisas vermelhas, perseguidas na última década, predominavam. Timidamente, erguiam-se as bandeiras brasileiras. Em frente ao Congresso Nacional, uma gigantesca bandeira era desfraldada na multidão. Ela crescia e tomava quase toda uma quadra, como se nos dissesse que o país havia renascido e que aos poucos poderia gritar o brado retumbante outra vez.
Após os discursos de praxe, com destaque para o proferido pelo presidente do Supremo Tribunal, estavam as autoridades lado a lado, sorridentes, harmônicas, equilibradas e unidas: Executivo, Legislativo e Judiciário. Aos poucos se destacavam, entre centenas de ternos cinza e outros tantos pretos, um grupo usando um diferente terno de tom azul royal. Presidente, vice, futuros ministros e membros da base aliada, todos de azul, alguns até com a camisa e a gravata azuis. Por quê? Porque o verde e amarelo foram confiscado pelos fascistas. O recado é: nossa bandeira também é azul. O azul que nos deu o primeiro título mundial em 1958. O azul positivista, a única cor nova inserida na bandeira republicana de 1889. O azul que poderá trazer a harmonia de volta.
Quando Lula quebrou o protocolo e pediu para pegar outra caneta e assinar o termo de posse, contou-nos uma história boba, aparentemente. Wellington Dias lhe deu em 1989 para assinar quando eleito em 1990. Lula não se elegeu, perdeu 3 eleições seguidas. Esqueceu-se da caneta. Quem lhe salvou em 2003 foi Ramez Tebet que lhe emprestou a caneta. A caneta nordestina quase se perdeu. Quem o salvou foi a caneta sul-matogrossense, estado em que Lula teve poucos votos, ao contrário da caneta piauiense de Wellington Dias, reencontrada 33 anos depois. O Nordeste é a essência do Brasil. O Nordeste é a gênese de Lula. Mas anunciou-se algo grandioso. Ramez Tebet era opositor a Lula, virou aliado. Passados 20 anos, a filha, Simone Tebet, recebeu o sinal: a caneta é o cetro. Lula já escolheu a sucessora.
No filme “O discurso do Rei” (2010), um professor autêntico e inovador tem um método para acabar com a gagueira. A história começa quando Stephen Fry, o professor, tem uma tarefa árdua: tem poucos dias para ensinar o rei inglês George (Colin Firth), recentemente empossado no trono, a fazer um pronunciamento sobre a entrada da Inglaterra na Segunda Guerra. Mas como passar força e união com um rei gago? Numa das cenas mais tensas, o professor tenta relaxar o rei e senta-se no trono secular da família real. O rei fica furioso, se desespera e grita com o sarcástico professor que ainda tripudia:
— É só uma cadeira velha…
O rei decepcionado faz transparecer que aquele objeto não era uma simples cadeira e sim o símbolo de séculos e séculos da história do Reino Unido. Os signos e objetos são mais poderosos do que imaginamos.
Empossados o presidente e o vice, era o momento mais preocupante do banquete cívico. Os soldados de Cadmus iriam bater continência. Um Lula sorridente atravessa as três forças armadas incólume. A democracia e a soberania estavam preservadas.
Empossados, presidente e vice, agora passeiam de Rolls Royce e são ovacionados. Os dois, históricos adversários políticos, agora estavam esperançosos. Um paulista e um pernambucano. O Estado mais rico e o abastado de outrora. Um operário e um médico. A elite e as classes populares.
O esperado era o ato final, apenas simbólico no sistema político brasileiro: a passagem da faixa presidencial. Costurada em 1910 a pedido do Marechal Hermes da Fonseca, foi entregue pela primeira vez em março de 1915, quando o presidente militar vestiu Wenceslau Brás, um civil. Com o tempo, a faixa presidencial original se deteriorou e duas novas foram criadas. Nem os presidentes do regime militar deixaram de seguir o protocolo simbólico da alternância de poder. Uma espécie de erguer a taça na política. Mas desta vez houve mais um apagão democrático do governo derrotado. Não aceitando o resultado das urnas, presidente e vice deixaram o país antes da posse e se recusaram e cumprir a cerimônia mais simbólica do jogo democrático. O presidente seguiu o conselho da esposa: “O mandato lhe foi entregue pelo povo e não pelo seu antecessor.”
Na rampa de acesso para o local onde a faixa seria passada, aos poucos se juntaram um operário, um idoso, um jovem com deficiência, uma mulher, uma catadora de reciclados negra (a quem coube a honra de colocar a faixa no presidente) e um líder indígena de 90 anos. Ali começava o mandato do unificador. Para o maior estudioso dos mitos da história, Joseph Campbell, os mitos existem para guiar o espírito humano. Nos fornecem um mapa para cada ciclo da nossa vida ou experiências que passamos – individual ou coletivamente. A mitologia é a canção do universo, formada por mil culturas e povos diferentes. O mito do unificador é nossa esperança de reconstrução. Em meio aos representantes do povo que subiram a rampa, estava a cadelinha Resistência. Ela esteve ao lado de Lula durante a prisão de quase dois anos, passando frio, fome e chuva, esperando o unificador deixar a cela paranaense. Mas e o círculo? Comum aos unificadores… Estava ali, no último cidadão que abraçou e entregou simbolicamente a faixa: o líder indígena e seu colar amarelo-ouro, de um círculo tão grande que parecia pertencer ao mundo.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.