
Torcedores chegam para assistir partida no Kenillworth Road, o charmoso estádio do Luton, por entre corredores laterais das casas de operários. Foto: Reprodução Facebook
Os ingleses inventaram o futebol, mas foram os brasileiros que ensinaram a jogá-lo. Semelhante ao rock, inventado nos Estados Unidos, porém cantado na Inglaterra.
A terra do Sex Pistols tem atualmente o futebol mais rico do mundo. Entretanto, por trás da opulência e dos bilhões de libras, sobrevive o velho ludopédio raiz. Ludopédio foi uma das palavras pensadas pelos dirigentes esportivos brasileiros no final do século XIX para denominar o novo jogo trazido por Charles Muller em 1893. Felizmente, o substantivo parnasiano não vingou.
Imagine ser o segundo time de uma das cidades mais ricas do país. Vir da tradição proletária e periférica. Nos primeiros 120 anos de história, ele patinou entre a primeira e segunda divisão. Tanto que é o maior vencedor desta, com sete títulos nacionais. Sempre foi o patinho feio de Manchester. No filme “O incrível Jimmy Grimble” (2000), um menino magricela, com orelhas de abano e pobre, sofre bullying na escola. O sonho do menino é jogar no time que parece com ele, o Manchester City. E Grimble e suas chuteiras mágicas começam a reverter a história de humilhações. Grimble é craque e leva o time da escola à final do campeonato nacional. Vira mito, assim como os azuis claros do City.
No final dos anos 80 o futebol inglês passou por uma crise quase terminal. Era necessário transformar tudo. Em 1992 nasce a Premier League. A violência desaparece dos estádios, o futebol melhora e os clubes enriquecem com patrocinadores milionários. A Inglaterra passa a ter um verdadeiro campeonato mundial de clubes, com centenas de craques de dezenas de países importantes no esporte. A Legião Estrangeira se tornou a regra, tanto que o poderoso Chelsea chegou a entrar em campo sem nenhum jogador inglês.
Foi nessa revolução que o Manchester City foi adquirido pela empresa Abu Dhabi United Group (ADUG) dos Emirados Árabes Unidos. Em 15 anos de parceria, o time saiu do purgatório para ganhar 20 títulos de peso, entre eles o campeonato europeu deste ano (Champions), sete Premier League, seis Ligas e três Copas da Inglaterra (o torneio mais antigo do futebol mundial).
Os fanáticos torcedores e irmãos Gallagher, brigados desde 2009, prometiam voltar com a banda Oasis se um dia o City ganhasse a Champions. Pelo jeito terão de voltar a cantar “Wonderwall”.
A trajetória vitoriosa teve retorno nas arquibancadas. O City era a nona maior torcida do país, hoje é a quinta. A mesma posição que ocupa nas torcidas estrangeiras no Brasil. Atrás só do Liverpool, Real, Barcelona e Arsenal. A questão que fica é: qual foi o preço para o City? O time deixou de ser “raiz”. Trocou décadas de mediocridade nos campos por uma máquina de colecionar troféus. O torcedor, seja ele “raiz” (o futebol das ruas, das várzeas, das lutas em gramados carcomidos, do torcedor desdentado que paga cinco conto num ingresso e se aperta num estádio sem regras) ou “nutella” (ou, na versão brasileira, o “coxinha”, símbolo de estádios assépticos, que parecem hospitais, gramados sintéticos, torcedores brancos, conservadores, pagando fortunas por ingressos) — o torcedor, raiz ou Nutella, quer é levantar as taças.
“Quando entrei no City Ground (o estádio do Nottingham Forest) em janeiro de 1975, foi como se estivesse em um deserto – um lugar sem vida, sem cor e nem mesmo uma folha verde para dar esperança. E, como em um deserto, parecia não haver um fim. Os torcedores estavam cansados de ver os melhores jogadores substituídos por outros sem capacidade, estavam desiludidos. Então, como a minha mãe sempre fazia quando tinha um grande trabalho pela frente, resolvi limpar o convés e começar do zero. Não foi fácil ou prazeroso, mas tinha que ser feito de uma forma drástica, porque o clube estava à beira da falência e eu não gostaria de afundar com ele.”
São palavras do técnico Brian Clough em 1975, ao assumir o comando da equipe do Nothingham Forest. Clough foi um dos mais vitoriosos técnicos e que obteve façanhas inigualáveis no futebol inglês. Primeiro no Derby County e depois no Forest. A floresta que aparece no nome e no escudo do time mais antigo em atividade no mundo (1865) não é a Sherwood, do personagem Robin Hood, mas parte da lendária floresta está nos entornos da região em que fica a sede dos “Reds”, como carinhosamente ficaram conhecidos.
Clough pegou um time que era saco de pancadas na Segunda Divisão inglesa e por muito pouco não caíra para a Terceira Divisão no ano anterior. O time estava em 13° lugar na Divisão de Acesso em 1975. O técnico reorganizou a equipe, deu confiança aos jogadores e reestruturou o departamento de futebol. Em 1976, o Nothingham Forest foi campeão da Segunda Divisão e subiu para a Primeira (atual Premier League). No ano seguinte, uma nova façanha: os Reds terminam em terceiro na Premier League. Mas os anos de ouro vieram entre 1978 e 1981. O Nothingham vence a Premier League em 1978, à frente dos gigantes Liverpool e United.
O inacreditável aconteceu depois. O time inglês disputou sua primeira Copa Europeia de Clubes Campeões (atual Champions League) e fez uma campanha surpreendente. Passou pelos tradicionais Porto (Por) e Liverpool. Na semifinal, derrotou o campeão alemão Colônia. O estádio Olímpico de Munique viu em 30/5/1979 o Nothingham Forest bater o Malmöe, campeão sueco daquele ano por 1 a 0. Eram o terceiro time inglês a ganhar o campeonato europeu. A título de comparação, seria como se o São Bento se tornasse campeão brasileiro.
Quando o ônibus chegou com a delegação inglesa no dia seguinte, cerca de 250 mil moradores de Nothingham estavam com as bandeiras vermelha e branca dançando pelos ares. Foi a maior festa popular da história da cidade. A dimensão gigante pode ser medida pelo fato de Nothingham ter 280 mil habitantes. Sim, quase a cidade toda comemorava nas ruas.
No ano seguinte, os comandados de Clough repetiram a façanha. Foram até a final contra o Hamburgo da Alemanha, jogaram no estádio Santiago Bernabeo do Real Madrid e venceram por 1 a 0, conquistando o bicampeonato europeu. No campeonato inglês daquele ano, foram vice-campeões. Conquistaram também o bicampeonato da Liga inglesa em 79 e 80. Após o sexto lugar no inglês de 1981 e o 13° em 1982, o técnico Clough acabou sendo demitido. Voltou a dirigir o time e a conquistar mais um bicampeonato da Liga Inglesa em 1989/1990. Ficou com o vice na Copa da Inglaterra em 1991. Entre 1992 e 1999, o time caiu várias vezes para a segunda divisão.
Entre 1999 e 2020 só fez campanhas medíocres na Divisão de Acesso. Voltou à Premier League em 2021. Na temporada deste ano, por pouco não foi rebaixado. A solução encontrada pelo novo proprietário? Importar jogadores brasileiros de destaque como Danilo e Scarpa. Desde 2012 o time pertence à família Al-Hasawi, do Kuwait. Poderão os torcedores do Forest voltar a entoar os belos versos do maior poeta que nasceu em Nothingham, Lord Byron:
Nessas feições tão cheias de serenidade,
Nesses traços tão calmos e eloquentes,
O sorriso que vence e a tez que se enrubesce
Dizem apenas de um passado de bondade:
De uma alma cuja paz com todos transparece,
De um coração de amores inocentes.
Há dois filmes sobre Brian Clough e o Nothingham Forest. O primeiro fala da breve passagem dele pelo Leeds United em 1974. A turbulenta campanha durou um mês e meio apenas. Demitido dos Leeds, Clough acertou com o Nothingham. Michael Sheen interpreta o técnico em “Maldito Futebol Clube”; de 2009. Alguns anos depois lançaram o documentário “O milagre do Nothingham “(“I believe in miracle”, 2017). O filme começa narrando a história de Brian Clough e sua passagem de 44 dias pelo Leeds United. Aparentando ser uma pessoa impossível de se lidar, a única oferta de trabalho para Clough vem de um time fraco da segunda divisão, chamado Nottingham Forest, que não tinha nenhuma perspectiva de crescimento. Após cinco anos, como visto neste artigo, o Forest levantava o bicampeonato europeu.
Outros três times, que por aqui seriam denominados de “pequenos”, também tiveram anos de glória. O primeiro deles é o Derby County. Entre 1968 e 1975, com o já citado Brian Clough de técnico, saiu da condição de time intermediário para vencedor. Subiu para a Primeira Divisão em 1969. Conquistou dois títulos ingleses em 1971 e 1975, terminou duas vezes em segundo lugar. O time de camisa branca, calções pretos e pequenos detalhes em azul ganhou ainda três Ligas inglesas na década de 70. Surpreendeu na Copa dos Campeões Europeus em 1972, sendo eliminado apenas na semifinal, derrotado numa partida polêmica para a Juventus da Itália. Desde 2007, o County patina entre falências e rebaixamentos. Amarga um lugar intermediário na Terceira Divisão inglesa.
Um dos mais ferrenhos adversários do Derby era o Leeds United. O time foi rebaixado este ano na Premier League. Original do condado de Yorkshire, o Leeds ganhou três campeonatos ingleses (o último em 1992, na última edição antes da Premier League). Venceu uma Liga e o mais importante e tradicional torneio inglês, a Copa da Inglaterra.
Outro time rebaixado este ano foi o Leicester City. O time da calções e camisas azuis viveu entre rebaixamentos e ascensões em toda a sua história. Sua maior glória era ter vencido a Segunda Divisão Inglesa por sete vezes e por três vezes a Copa da Liga Inglesa. Em 2015 o time sobe para a Premier League e surpreende o mundo todo ao ganhar o mais difícil torneio de futebol do mundo, no primeiro ano de acesso. Sorte, azarão, fogo de palha, foram os elogios ao “Léshter”, como se pronuncia o nome do time. Fez uma campanha honrosa na Champions de 2016, caindo nas quartas de final. Na Premier League fez boas campanhas entre 2017 e 2022. Na temporada 2020/2021 foi campeão da renomada Copa da Inglaterra. Após oito anos de boas campanhas de um time “raiz”, o Leicester brigará na próxima temporada para retornar à elite do futebol no seu país.
E nosso conto de fadas se encerra com a história mágica do Luton Town. Fundado na pequena cidade do sudeste inglês, Luton, com apenas 200 mil moradores. Boa parte da renda da cidade sempre veio das chapelarias. Não é à toa que um dos apelidos dos torcedores do Luton é “chapeleiros”. Luton é sede da Vauxhall Motors, uma subsidiária da GM-Opel na Inglaterra. Produz cerca de 15 mil carros mensais. Os nomes dos carros são esquisitos: Chevette (o mais popular da história da empresa), Vectra, Kadete, Astra e Zafira. Sim, a GM do Brasil tem a mesma planta da fábrica de Luton. Digamos que Luton é a São Caetano inglesa.
O time existe desde 1885. Nasceu da junção entre o Luton Excelsior e o Luton Wanderers. O Luton manda seus jogos no Kenillworth Road, um pequeno estádio com parte das arquibancadas de madeira, como o saudoso Humberto Reale na avenida Nogueira Padilha em Sorocaba. Não tem iluminação artificial exigida pela Premier League. Mas o detalhe mais charmoso é a localização do estádio. Ele fica encravado num bairro de sobrados construídos pelos operários de fábrica. São aquelas simpáticas casinhas “germinadas” (como se fala erroneamente no Brasil), todas num estilo semelhante, rentes à rua, com suas janelas que parecem respiradouros para a vida. Para se chegar ao estádio, os torcedores e os jogadores precisam atravessar os quintais e corredores laterais das residências. Lembram demais os campos de futebol nas favelas paulistanas de Paraisópolis e Heliópolis. Atravessar o bairro até o Kenillworth Road é como um passeio há 50, 70 ou 100 anos no velho futebol raiz.
A Netflix tem um belíssimo seriado sobre as origens do futebol na Inglaterra e, portanto, no mundo. “The English Game” (“O Jogo Inglês”, de 2020). Com algumas liberdades históricas, a série narra os princípios do jogo, ainda sem regras e totalmente amador. Nasceu como algo aristocrático e universitário. Aos poucos a popularidade aumenta, algumas empresas resolvem investir em bons jogadores que para disfarçar a profissionalização eram contratados pelas indústrias inglesas como “operários”.
O diretor dos seis episódios, Julian Fellowes, conta que teve a ideia de contar a história de como os meninos de uma escola de Eton criaram o futebol entre 1850 e 1860, quando levou seu filho para assistir uma partida entre o West Ham e Manchester United em 2018. Qual era a raiz daquele esporte monumental, repleto de regras e tradições e bilhões de espectadores pelo mundo? Followes demonstra com beleza de imagens e uma reconstituição primorosa do passado os primeiros campos de futebol e jogos. Os primeiros times nasceram nas regiões operárias mais ao Norte do país.
Não existe nenhum time em atividade daquele período (o Nothingham, como vimos, é o mais antigo). Outro fato curioso, as agremiações nasceram em associação com fábricas inglesas. Uma delas era uma fábrica de armas, daí o nome Arsenal (originalmente Royal Arsenal). Construíram-se campos, estádios e o centenário Wembley, o templo maior do futebol (o original existiu entre 1923 e 2003). O futebol atualmente está no imaginário de todos os continentes. A Premier League é, disparada, a mais rica e disputada competição do globo.
E como fica o Luton? Talvez um clube que se parece demais com as origens do futebol. Terá de fazer uma grande reforma no estádio, passando por iluminação artificial, novas e modernas arquibancadas e corredores de torcedores que não passem em meio a varais de roupas, cachorros adversários e bicicletas de criança. O custo das reformas é estimado em R$ 70 milhões. Muito para um time que há anos estava atolado em dívidas e prestes a fechar e disputando a Quinta Divisão Inglesa. Uma campanha dos torcedores fanáticos que incluiu a doação de sangue pagou boa parte das dívidas do Luton semi-profissional de 2013.
Aos poucos o time foi se reestruturando e buscando novos recursos. Entre 2015 e 2020, conquistou três acessos e voltou à Segunda Divisão. Este ano disputou os play-offs de acesso à Premier League e na final venceu de forma dramática, nos pênaltis, o Coventry City. Após 35 anos o Luton Town voltará à elite do futebol inglês. Será sua primeira temporada na milionária Premier League.
Dinheiro não faltará, afinal a promoção de 2023 deu ao time $ 167 milhões de libras esterlinas, ou quase R$ 1 bilhão de reais de direitos televisivos. A raiz virá encorpada e rica. Comparando com o futebol brasileiro, o Flamengo será o time que mais receberá verbas da televisão para disputar o Campeonato Brasileiro, com aproximadamente R$ 280 milhões, quase quatro vezes menos do que o Luton Town. Torcemos pelos bons resultados do caçula da Premier e que consiga repetir os feitos dos anos 80 e 90, quando ganhou a Copa da Inglaterra em 1989, foi vice dois anos depois e terminou em sexto lugar no Campeonato Inglês de 1992.
Como toda boa história do futebol-raiz, encerro com a narrativa do jogador da República Democrática do Congo de 29 anos, Pelly-Ruddock Mpanzu. Ele está no Luton desde 2013. Disputou e venceu da Quinta à Segunda Divisão. Saiu do amadorismo para o profissionalismo e de quebra às vezes é convocado para a seleção do seu país. Disputou mais de 300 partidas pelo time do sudeste inglês, mas nenhuma delas terá a importância desses 38 jogos na Premier League de 2023/2024. God save the king.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem