
A personalidade de Wilde se mistura com os personagens de seu único romance, “O retrato de Dorian Grey”, um mergulho profundo no narcisismo. Foto: Napoleon Sarony/Wikimedia Commons
Na Mitologia Grega existe o história de Narciso. Ovídio nos conta que o Deus do Rio Cefiso e a ninfa Liríope tiveram um filho que era o mais lindo do Olimpo. Narciso cresceu vaidoso e centrado apenas em si. Teve dezenas de amantes de ambos os sexos, com os quais desfrutava dos prazeres da carne, para em seguida esquecer o parceiro ou parceira. O oráculo dissera à mãe de Narciso que ele só viveria muito se não se amasse em demasiado.
Narciso desprezou uma Deusa, denominada Eco. Mesmo ela suplicando várias vezes, Narciso jamais se interessou pela bela moça. Revoltada, Eco se vinga. Enfeitiça Narciso para que ele se veja refletido num lago. O herói, ao ver sua própria face no lago e não saber que era ele refletido, se apaixona perdidamente por tal beleza. Numa das narrativas, Narciso mergulha no lago para possuir o homem tão belo. Ele nada até a profundeza do lago e morre afogado, apaixonado por si mesmo. Torna-se a bela flor de narciso, a pedido da Deusa Deméter.
Freud estudou o mito para delinear um grave distúrbio de personalidade: o narcisismo. A sociedade contemporânea, cada vez mais individualista e a busca sem limites pelo lucro, típicas do capitalismo, são os elementos externos ao paciente psicanalítico do início do século XX.
O distúrbio narcisista pode aparecer em crianças que foram superprotegidas ou abandonadas. O ego é valorizado ao extremo. Não há espaço para o outro. O narcisista detesta ser contestado, pois entende que tudo tem de girar em volta dele, afinal a razão está sempre ao seu lado. São pessoas incapazes de se colocar no lugar do outro, não entendem que seus atos podem magoar ou destruir o outro, afinal não têm empatia.
O narcisista cria um mundo fantasioso e, mesmo que seja colocado em situação extrema, irá mentir e fingir para proteger seu ego.
O narcisista jamais se responsabiliza por algo ou pede perdão. Nossa sociedade do espetáculo, neste início de século XXI, incentiva o narcisismo e o individualismo. Temos de ser jovens, poderosos, ricos e deslumbrantes em tudo o que fazemos.
O Instagram e o Facebook são as redes sociais preferidas. Precisamos nos destacar. Precisamos ser felizes. Precisamos ostentar riqueza. O outro? Ah, o outro é um fracassado. Ou, como cantou Caetano Veloso em “Sampa”: “…é que Narciso acha feio o que não é espelho…”.
Nos anos 50, Billy Wilder dirigiu “Crepúsculo dos deuses”. O filme conta a história de uma estrela do cinema que envelheceu e foi esquecida. A atriz decadente e depressiva encontra num jovem roteirista a oportunidade de voltar à fama. A decrepitude da atriz, da casa em que mora, dos funcionários da residência, é brutal. A cena do Ano Novo, em que apenas o casal está presente, é trágica. Narcisa não aceita viver sem fama, sem holofotes, sem viço.
Talvez a obra que mais profundamente entendeu o narcisismo foi “O retrato de Dorian Grey”, de Oscar Wilde. Raramente a obra de um artista confunde-se com a vida do mesmo. Escritores visionários transcendem sua insignificância, ou entram num conflito interno em que a arte nega a existência e vice-versa.
Interpretar grandes obras nos é tortuoso, pois a primeira tentação é buscar nas experiências individuais as pistas para entendermos a questão estética. E por fim terminamos sem entender nem um, nem o outro.
Alguns autores do século XX transformaram sua obra num expurgo da vida. Henry Miller, Charles Bukowski, Jack Kerouac, Allen Ginsberg despejaram nas máquinas de escrever sua dor. Mas nenhum deles fez o que Oscar Wilde produziu: uma profusão de ideias, pensamentos e sentimentos enevoadas entre a obra e o autor. Maneirismos que nos confundem. Ornamentos por todos os lados. Não conseguimos distinguir uma e outra parte. Corpo e alma entrelaçados.
Quando lemos Dorian Gray, temos a certeza de que ele é Oscar Wilde. Ou quem sabe Lord Henry Watton? Mas não seria ele Basel Hallwart?
Oscar Wilde era aluno genial. Estudou nas mais tradicionais escolas inglesas. Casou, teve filhos. Escrevia para jornais e produzia peças de sua autoria. Aos trinta e poucos anos possuía sucesso de público e comercial. Que mais ele podia querer? Ser feliz. Ser pleno em sua sexualidade.
Wilde adorava se travestir em festas privadas e longe da família. Teve dezenas de casos com outros homens. Mas, em 1894, apaixonou-se por Alfred Douglas. Filho do Marquês de Queensberry, Douglas vez ou outra extorquia Wilde.
A Inglaterra vivia a era vitoriana. O “Império onde o sol nunca se põe”. A nação mais rica que já existiu. Uma terra de nobres e aristocratas, além da genial burguesia que inventou a indústria. A Inglaterra é a civilização. Lugar em que se respeitam reis e leis. País de elevadas tradições morais e éticas.
Nada mais hipócrita. Durante três séculos, a Inglaterra matou, torturou, roubou, traficou riquezas do mundo tudo. A famosa frota naval britânica nasceu dos facínoras piratas. As naus aportavam nas ilhas britânicas tomadas de sangue e ouro. Pilharam o planeta, anexaram todos os confins e depois, com a instalação da indústria, por mais de um século, trataram seus operários como alguém menos que escravo.
O “Manifesto Comunista” foi escrito para o Partido Comunista da Inglaterra apesar de Marx ser alemão. A rainha Vitória era a personificação desse falso moralismo, dessa história enviesada.
Para defender os valores morais dessa nobre terra inglesa, o marquês processa Oscar Wilde por sedução de menores e outros crimes contra “a moral e os bons costumes”. Longa e desgastante, a ação triturou a alma do artista. A imprensa, como uma hiena, arrancava tripas do autor de “A importância de ser honesto”.
Ao final, Wilde assume a própria defesa, pois sabia que já estava condenado mesmo antes de começar o julgamento. O promotor lhe questiona sobre “o amor que não ousa dizer o nome”, um eufemismo vitoriano.
Charles Gill (acusação): O que é esse amor afinal?
Wilde: “O amor que não se atreve a dizer seu nome” neste século é uma afeição tão grande de um ancião por um homem mais jovem como havia entre Davi e Jônatas, como Platão fez a própria base de sua filosofia e como você encontra nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare. É esse profundo afeto espiritual que é tão puro quanto perfeito. Dita e permeia grandes obras de arte, como as de Shakespeare e Michelangelo, e as duas letras minhas, como são. É neste século incompreendido, tão incompreendido que pode ser descrito como “o amor que não ousa dizer seu nome”, e por isso sou colocado onde estou agora. É lindo, é bom, é a forma mais nobre de carinho. Não há nada de antinatural nisso. É intelectual, e existe repetidamente entre um homem mais velho e um mais jovem, quando o homem mais velho tem intelecto, e o homem mais jovem tem toda a alegria, esperança e glamour da vida à sua frente. Que deveria ser assim, o mundo não entende. O mundo zomba e às vezes coloca um no pelourinho por isso.
Oscar Wilde é condenado a dois anos de trabalhos forçados numa prisão. Um refinado artista que cometeu o delírio de amar. Seguidor da escola do Estetecismo, Wilde adorava as sensações e os sentidos. Era a “Arte pela Arte”. Uma estética que despreza as convenções sociais e políticas. Fundamental é despertar no espírito humano o prazer de uma sinfonia perfeita, o desejo ao tatear uma escultura em bronze, a adoração e admiração em ver as cores e letras, seja num quadro de Monet, ou numa peça de Shakespeare. Uma alma que não vê sentido algum num livro de leis ou num manual de construção.
Wilde terá seu deserto e sofrimento numa masmorra qualquer inglesa. Sai de lá destroçado por dentro. Muda-se para Paris e vive apenas menos de 2 anos. Morre aos 46 anos e está enterrado no cemitério de Pére Lachaise. Seu túmulo está protegido, pois virou centro de adoração e depredação. Quem ama lhe deixa mensagens e beija sua lápide. Levavam também pedaços do túmulo. Protegeram-no de mais essa sevícia. A Inglaterra o perdoou em 2015. Cento e quinze anos após sua morte. Sim, eles são civilizados.
Voltemos ao único romance de Oscar Wilde. “O retrato de Dorian Gray” é escrito em 1891. Após uma longa descrição sensorial da paisagem, da atmosfera e do sobrado em que mora o pintor Basel, o texto relata a chegada de Lord Henry ao atelier. Ali, Basel está finalizando sua mais bela e perfeita obra, um retrato de Dorian Gray. Este é descrito como o mais belo jovem que já existiu. Capaz de seduzir a tudo e a todos apenas com sua maravilhosa persona.
Lord Henry se encanta com Gray, mas deixa o rapaz em desespero quando lhe fala da inevitabilidade da velhice e senilidade. O corpo é um inimigo cruel, desfaz-se como vento. Qual a solução? — pergunta o jovem. Viver em função do prazer ao extremo. Praticar o hedonismo. Aproveitar todo o dia como se fosse o último.
Gray olha para a sua imagem no quadro e vê o instante da beleza eternizado apenas nas tintas. Desesperado com a passagem do tempo, sente um desejo de que jamais envelheça e olha para o quadro com inveja.
As três personagens começam a passear e exercer o prazer pela noite londrina. Numa casa de espetáculos e bar encenava-se “Romeu e Julieta”. Gray se apaixona pela beleza da atriz Sybil Vane, então com 15 anos. Após o cortejo, decide se casar. O irmão dela lhe dirige uma ameaça: se fizesse mal a Sybil, sofreria nas mãos dele, James.
Pouco tempo depois de casados, Sybil volta aos palcos e tem uma atuação lamentável. Gray se desencanta. A beleza dela estava na interpretação. Ela agora era uma mulher realizada no amor, não uma jovem desesperada por encontrar o “príncipe encantado”, como era apelidado nos bares noturnos o jovem Gray. Decepcionado, ele abandona Sybil. Ela entra em desespero e se suicida.
O irmão James começa a perseguir Gray. O jovem narciso volta à casa e percebe que a imagem no quadro havia envelhecido e adquirido um ar sombrio. E assim foi por 18 anos. Dorian Gray manteve sua face intacta aos 40 anos, mas a sua imagem no quadro envelhecia e mostrava traços das dores que ele causava nas pessoas.
Uma bela noite, de volta a Londres, ele reencontra James. Desconfiado, o irmão de Sybill o reconhece como Gray. Em sua defesa, o ex-jovem fala que jamais poderia ser o homem descrito, pois estava com pouco mais de 20 anos. James o solta, Gray foge. Os frequentadores do bar o avisam: “É ele, o príncipe encantado “. Na perseguição, o ex-cunhado acaba morrendo. É a alusão a Hamlet.
Gray encontra Basell em depressão no sobrado. Jamais aceitou o fato de que seu quadro mais belo era por causa da beleza de Dorian Gray e não de sua capacidade estética. Gray vivia numa fase altruísta, acreditando que isso poderia reavivar a beleza do quadro. Quando entram na sala, a imagem de Gray está ainda mais horripilante. Ser bom não foi uma escolha. Gray entende que era uma outra face da seu narcisismo: “Olhem como sou bom, admirem-me”. Basell tem uma discussão, Gray o mata. Busca um conhecido químico para desfazer o corpo, este se nega a ajudá-lo.
Na última cena temos Gray voltando ao sobrado e tentando destruir o quadro com uma faca. Ouve-se da rua um grito gutural. Quando os que passavam por ali entram no quarto, veem um retrato de um jovem maravilhoso e, caído sobre as cortinas, um ancião de face doentia e sarcástica. Mais abaixo uma faca enfiada em seu corpo que lhe tirara a vida.
“O retrato de Dorian Gray” lembra o mundo atual. Vivemos numa sociedade com pouca empatia pelo outro. Somos egoístas. Adoramos todos os tipos de procedimentos “estéticos” que nos deixem belos e eternamente jovens. Tão narcisistas como Dorian Gray. Desconhecemos tanto a verdadeira riqueza da arte. Denominar de “estética ” o ato de turbinar os seios, ou enxertar glúteos de silicone é tão raso quanto considerar um toque de celular como uma nova sinfonia.
Vivemos num mundo de imagens falsas e retratos que congelam o tempo. E Wilde sabia disso, tanto que certa vez disse: “A sociedade acredita que sou Lord Henry. Eu sou próximo do que foi Basell. Mas no futuro quero ser Dorian Gray.” Muitos hoje são Dorian Gray. Alguma dúvida? Basta olhar em seu Livro de Retratos, mais conhecido como Facebook.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.