
O medalhista olímpico desfila em carro aberto em Nova York: logo depois, banido do esporte, ele cairia no esquecimento. Foto: reprodução
No ano em que Hitler chegava ao poder, ele venceu 75 das 79 provas que disputou. Ganhou uma bolsa na Universidade de Ohio. Dois anos depois, numa ensolarada manhã de verão, o rapaz negro, que era obrigado a trabalhar de engraxate para poder continuar estudante, realizou o maior feito da história do atletismo mundial: venceu quatro provas em 45 minutos no Campeonato Universitário dos Estados Unidos. Ganhou as 100 jardas, depois saltou 8,13 m, venceu as 220 jardas com barreiras e terminou com a vitória no revezamento 4 x 100. Em todas as provas, ele bateu o recorde mundial. Feito inigualável.
Treze anos antes do feito esportivo, o menino, então com 9 anos, acabara de migrar com os pais e nove irmãos do Alabama para Ohio. As grandes migrações levaram milhões de trabalhadores empobrecidos, em geral negros, dos Estados do Sul para o Norte dos EUA. Na primeira escola mista da vida, um irritado professor pergunta:
– Qual seu nome?
– Jei Ci (JC) Owens.
– O que? Não entendi nada!! Ainda mais com esse sotaque terrível do Sul.
– Jei Ci Owens.
– Jesse Owens!!
Jesse Owens carregou o nome errado até a eternidade. A segregação era menor em Ohio do que no Alabama, mas permanecia. Owens era um dos poucos atletas olímpicos que tinham de dividir o tempo entre estudos, treinos e trabalho em tempo integral. Os atletas brancos ou eram de origem abastada, ou recebiam patrocínios disfarçados, ou os dois. A hipocrisia do Comitê Olímpico Internacional em só aceitar atletas “amadores” persistiu até os anos 80. Mas, desde pelo menos 1912, muitos atletas recebiam salários, prêmios, ou possuíam empregos fantasmas para disfarçar o fato de serem profissionais.
Owens foi selecionado para disputar as Olimpíadas de Berlim em 1936. A Alemanha estava há 3,5 anos sobre regime nazista e Hitler estava com a popularidade em alta, inclusive no cenário internacional. O Führer livrara a Alemanha do comunismo e isso agradava a burguesia internacional. Ao contrário do que se pensa, a definição da sede em Berlim ocorreu em 1931, portanto bem antes da ascensão do nazismo.
A partir de 1934 Hitler adotou os Jogos Olímpicos como uma vitrine da administração do Partido Nazista. Construiu o monumental estádio para 110 mil pessoas, construiu uma gigantesca e idílica Vila Olímpica para os atletas (foi a primeira vez da história que isso foi feito). Ergueu um novo aeroporto, construiu novas estradas de rodagem em concreto armado para Berlim e abriu o país para cobertura internacional.
Entre 1° e 16 de agosto de 1936, cerca de 6.000 atletas de dezenas de países competiram pelo ouro olímpico. Hitler colocou rádios por toda a cidade, ergueu telões de cinema e estreou as imagens por tevês colocadas em praças públicas. Para levar a imagem de reconstrução e ordem do país, criou a cerimônia de desfile da tocha olímpica, carregada por atletas. O trajeto da tocha (que passou a ser obrigatório após Berlim) passava estrategicamente por áreas em que o governo nazista havia reformado ou construído na cidade.
Nas competições, a Alemanha mostrou força: terminou em primeiro com 33 medalhas de ouro (nove a mais que os Estados Unidos, segundo colocado), 26 de prata e 30 de bronze (no quadro geral, conquistou 33 medalhas a mais que os Estados Unidos).
Hitler adotou uma estratégia de esconder o preconceito, a perseguição às minorias e, principalmente, a questão judaica. A Alemanha nazista parecia ser o sonho de uma nova Grécia: culta, industrializada e de corpos esculturais, como vemos no início do filme “Olympia” de Leni Riefenstahl. A audaciosa propaganda política de Hitler ia além. Queria realizar algo impecável. Afinal, em 1940 as Olimpíadas seriam em Tóquio (a trinca nazi-fascista, Roma/Berlim/Tóquio), em 1944 em Roma e, a partir de 1948, sempre em Berlim, a “Nova Atenas”.
Grécia e Roma antiga sempre foram sua inspiração. Na arquitetura, nas artes, no estilo de vida. A ideologia nazista era um misto de culto sagrado ao Imperador, típico da Roma dos Césares, com uma vida espartana e um desejo de ser um ateniense, dispensando a democracia, claro. As Olimpíadas representavam muito dessa ideologia, desse delírio coletivo alemão.
Mas o Führer teve escola na questão esportiva. O fanfarrão Mussolini, o Duce italiano. Um ditador que adorava ressaltar as virtudes atléticas próprias. Todo ano, Mussolini ia aos campos em época de colheita e ceifava a terra, sempre sem camisa, para demonstrar força. Galhardeava também seus dotes sexuais, tendo deitado com mais de 5.000 mulheres (a maioria virgens menores de 15 anos, oferecidas pelos próprios pais ao líder italiano, um estupro em massa com consentimento do genitor). Mas foi no futebol que Mussolini abusou da propaganda política e ideológica do regime fascista. Em 1928 a seleção universitária italiana é campeã mundial de futebol. Em 1934, numa Copa extremamente bem organizada em oito cidades italianas, incluindo a construção de quatro novíssimos estádios, o maior deles e palco da final em Roma recebia o nome de PNF, que nada mais era do que Estádio do Partido Nacional Fascista. O estádio de Milão recebeu o nome de Benito Mussolini (hoje é o Estádio Giuseppe Meazza, o grande jogador italiano dos anos 30).
Nas quartas de final contra a Espanha, após uma falta dupla no goleiro de Castela, a Itália faz o único gol do jogo. Único não, afinal o árbitro suíço anulou dois gols legítimos da Espanha. Tão legítimos que a Fifa e a Federação Suíça expulsaram o apitador, que jamais trabalhou como árbitro depois da vergonhosa atuação. Mas semifinais, um gol italiano com falta brutal no goleiro – não marcada, é claro. Na grande final, a Tchecoslováquia terminou vencendo o primeiro tempo por 1 a 0. No intervalo, um bilhete pessoal do Duce para o técnico Vittorio Pozzo e todos os jogadores da Azurra:
Vencer ou Morrer
A Itália conquista uma bela virada e torna-se, pela primeira vez na história, campeã mundial de futebol. Nas olimpíadas de Berlim, a Itália teve participação discreta, mas o futebol mais uma vez trouxe o título para os fascistas. Foram quatro vitórias irrefutáveis, incluindo um 3 a 1 na Áustria (que após a anexação em 1938, cedeu seis jogadores à Alemanha nazista). Aliás, diz a lenda que a grande irritação de Hitler nas Olimpíadas foi a derrota da Áustria por goleada para o Peru. Mesmo tendo vários jogadores expulsos, os sul-americanos tascaram 4 a 2 nos conterrâneos de Hitler. Meia hora depois do fim do jogo, um bilhete de Hitler e o Comitê Olímpico anula a partida. Com a recusa do Peru em fazer uma absurda nova partida, o país foi eliminado.
Havia uma última glória italiana. Na Copa do Mundo da França, o país se torna o primeiro bicampeão mundial (feito só repetido pelo Brasil de Pelé e Garrincha em 1958 e 1962). Por sinal, a Itália derrotou a grande sensação do torneio na semifinal, o Brasil de Leônidas da Silva, escolhido o “bola de ouro” do torneio. Antes, a Itália havia goleado a anfitriã em Paris. Isso não impediu um novo bilhetinho de Mussolini. Desta vez, a morte passou longe, afinal a Itália de Giuseppe Meazza e Pozzo goleou os húngaros por 4 a 2. Cada um dos quatro títulos foi tratado como um sinal da superioridade italiana em relação ao mundo e uma reafirmação dos lemas fascistas que diziam ser os jogadores da “bota” os herdeiros de sangue dos invencíveis centuriões romanas. Nunca foi apenas uma partida de futebol.
Na tribuna de honra do estádio olímpico, Hitler entregou as primeiras medalhas para os atletas alemães. Como não desceu para entregar a atletas de outros países, Hitler recebeu um recado do COI: ou entregava medalhas a todos ou a nenhum. Dois dias depois da abertura, o Führer viu Jesse Owens derrotar os atletas arianos e bater o recorde mundial dos 100 m rasos. Saiu antes das premiações. Hitler não viu o segundo ouro de Owens nos 200 m rasos, mas assistiu o atleta americano receber dicas do alemão e bater o recorde olímpico do salto à distância. Era o terceiro ouro de Jesse Owens em seis dias de competição.
No dia 9 de agosto, a pedido do técnico americano, dois atletas judeus deixaram a equipe do 4 x 100. Owens substitui um deles. A equipe dos Estados Unidos vence com recorde olímpico e mundial. Owens ganha sua quarta medalha de ouro. Um feito repetido décadas depois por Carl Lewis, um atleta profissional extremamente bem pago. e sob suspeitas de doping.
A lenda dizia que Owens derrotou Hitler. Que o ditador nazista deu as costas ao atleta negro, se recusando a entregar a medalha. O próprio Jesse Owens desmentiu. O maior atleta da história disse que Hitler só o viu em ação duas vezes e fez um aceno simpático quando ele ganhou a competição de salto e passou perto do Führer. O ditador reconhecia a superioridade de Owens? Claro que não. Foi apenas mais uma estratégia do marketing nazista da “Nova Atenas”. Tanto que há relatos do diálogo de Hitler com o arquiteto Albert Speer. Para o líder nazista, os negros eram selvagens, eram quase macacos, portanto deveriam ser excluídos das próximas olimpíadas, pois seus dotes corporais eram animalescos. Este é o Hitler que conhecemos.
Jesse Owens relatou que em Berlim foi a primeira e única vez na vida que pôde dividir alojamentos e vestiários com atletas brancos. Morreu sem mágoas dos nazistas. Voltou aos Estados Unidos e desfilou em carro de bombeiros pelas ruas de Nova York. Foi levado para um jantar no mais luxuoso hotel da cidade, o tradicionalíssimo Waldorf Astoria. Foi barrado na portaria: afinal, negros só poderiam entrar no suntuoso prédio pela porta dos fundos e nos elevadores de serviço, mesmo que o jantar fosse em sua homenagem.
Owens lembrava ainda que jamais o “democrata” Franklin Delano Roosevelt o parabenizou, nem pessoalmente nem por carta. Os Estados Unidos praticamente o ignoraram. Em 1937, Owens foi expulso do esporte. Primeiro porque competiu nos 4 x 100 com um tênis desenhado especialmente para ele por Adi Dassler, o dono da Adidas. Depois por ter recebido para competir em torneios de exibição pelo país.
Owens caiu na miséria. Passou a disputar corridas contra cavalos, trens; a saltar sobre crocodilos famintos. Virou porteiro de prédio, engraxate, lixeiro. Fez todos os tipos de serviços por quase 20 anos. No início dos anos 60, com ajuda de alguns ex-atletas, montou uma pequena empresa. Faliu e acabou sendo preso por ter deixado de pagar alguns impostos. Vendeu as medalhas de Berlim para poder comer. O Comitê Olímpico norte-americano o contrata como consultor em 1968, aos 55 anos de idade, três décadas depois do feito heroico em Berlim. Owens morre meio esquecido, de câncer no pulmão, em 1980.
O maior atleta do atletismo mundial no século XX e um dos seis maiores atletas olímpicos da História teve apenas um ano de glória, entre o verão de 1935 e 16 de agosto de 1936. O país que nos ajudou a derrotar o nazismo era tão racista quanto o algoz alemão. Jesse Owens foi o herói sem nunca ter sido. O homenageado de uma festa para a qual não foi convidado, como quase todos os negros norte-americanos e brasileiros.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.