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Nadia Comaneci: do céu ao inferno (como tantas outras) no mundo dos esportes

Martinho Milani*

A Olimpíada de Montreal, em 1976, foi palco para o nascimento daquela que viria a ser uma lenda na ginástica olímpica. Foto: Reprodução/COI

Béla Karólyi passeava pelas ruas da cidade industrial de Onest da Romênia comunista. Corria o ano de 1968. Meses antes, na vizinha Tchecoslováquia, ocorrera a Primavera de Praga, uma tentativa de trazer democracia e liberdade para o mundo socialista. As tropas do Pacto de Varsóvia acabaram com o “assalto aos céus ” ainda antes do fim de ano. Karólyi era o técnico da seleção romena de ginástica e procurava meninas talentosas para o esporte…

Foi ali em Onest que a história da ginástica olímpica mudou pra sempre por causa de uma mulher. O treinador grandalhão viu uma menina de seis anos saltar e pular como jamais vira antes. Entrou na escola em que ela estudava, afinal a menina saíra do pátio. Exigiu que a diretora o ajudasse a encontrar a aluna talentosa e depois de ver as centenas de crianças perfiladas no pátio da escola, reconheceu a menina. Seu nome era Nadia (uma abreviatura do russo Nadiaidja, que significava “esperança”) Helena Comaneci.

Convenceu os pais e ela foi fazer um teste no centro olímpico próximo a Bucareste. O primeiro aparelho era a trave. Karólyi pediu para que ela tentasse atravessar a barra estreita duns 30 cm de largura e elevada 1,5 m do chão. No trajeto de ponta a ponta eram quatro metros, Nadia deveria tentar alguma acrobacia. Nenhuma menina de 6, 7 ou 8 anos conseguia. Nenhuma criança de qualquer sexo tinha sucesso em sua primeira tentativa. Aos seis anos, aquela menininha franzina subiu sozinha a trave, fez três exercícios e chegou do outro lado, sem titubear. Foi o primeiro ato de uma das maiores lendas do esporte.

A teoria de Karólyi

O técnico romeno acreditava que as atletas mais velhas que competiam na ginástica perdiam o eixo de gravidade para manobras arrojadas e acrobáticas, pois estavam com o corpo e a estrutura óssea prontos. A ginasta russa Olga Korbut pesava 40 kg e estava com quase 18 anos na Olimpíada de Munique em 1972, quando se tornou um fenômeno da ginástica. Nadia Comaneci entra no ginásio de Montreal em 1976 com apenas 14 anos de idade e pesando 5 kg a menos do que Korbut (mesmo sendo três centímetros mais baixa do que a romena).

A teoria permitiu ao técnico ganhar todos os títulos olímpicos e mundiais possíveis entre 1972 a 1980. Exilado nos Estados Unidos, formou a nova escola de ginástica daquele país. Mais uma saraivada de medalhas olímpicas e mundiais. Sempre com atletas de seus 13 a 17 anos.

A Olimpíada de Montreal 1976

Nadia em Montreal, no Canadá: quem projetou o placar não imaginou que uma ginasta tivesse a nota máxima. Foto: Reprodução/COI

Na fase classificatória, Nadia Comaneci iniciou seus movimentos nas barras assimétricas, a mais desafiadora e difícil série de aparelhos e exercícios para uma ginasta. O Ginásio vai se calando aos poucos nos 3 minutos da apresentação. Os semblantes estão estupefatos. A menina romena termina o exercício solo e ninguém aplaude. Em verdade, há um silêncio absoluto típico de momentos em que o transcendental se faz presente.

Passados alguns minutos, a plateia se recupera e vê Nadia olhar de forma incrédula para a nota: UM!! Os jurados deram nota UM! O Ginásio começa a vaiar e nesse momento uma fiscal começa a conversar com Nadia Comaneci perto do placar eletrônico. A empresa que fez o aparelho jamais imaginou que alguém atingisse a nota máxima com três dígitos. Dessa forma, o aparelho só possuía 2 dígitos, então a nota máxima seria 9,9 (nove ponto nove). Nadia Comaneci não tirara nota UM. Sua nota foi DEZ! Três dígitos: 10.0. Nem o placar era tão grande quanto aquela mulher. Aos poucos o ginásio entende o erro e por vários minutos aplaude em pé a menina de ouro.

Ao final da competição, Nadia Comaneci quebra mais 6 vezes o placar eletrônico: mais 3 nas assimétricas, 2 na trave e uma no solo. Sai do Canadá com 3 medalhas de ouro e duas de prata. E com o mundo assombrado por ter presenciado tamanho talento.

A curta carreira

No ano seguinte, Nadia Comaneci conquistou várias medalhas de ouro em mundiais. Na Olimpíada de Moscou em 1980 seu rendimento foi excelente, mas não mais excepcional, levando mais duas medalhas de ouro, duas de prata e uma de bronze. A violenta separação dos seus pais em 1978 abalara demais a cabeça da ainda adolescente Nadia Comaneci, com apenas 16 anos. Competiu oficialmente até 1984, ano em foi para a Olimpíada de Los Angeles como observadora.

Entre 1981 e 1983, recebeu muitas honrarias e disputou poucos torneios. Parte pela idade “avançada” para os movimentos, parte porque seu técnico Karólyi fugira para os Estados Unidos em 1981. Em três anos, Nadia perdera a estrutura familiar e o treinador revolucionário. Uma carreira profissional de menos de dez anos. Mesmo assim inigualável. Jamais outra ginasta teve tantas notas máximas na ginástica. Mais do que isso: ainda hoje existem quatro exercícios obrigatórios que pontuam para as ginastas no solo, trave e barras assimétricas. Todos eles foram inventados por Nadia e recebem seu sobrenome, como o cartwheel-back.comaneci.

Nadia Comaneci nos dias atuais: depois de muito sofrimento com ex-companheiros, empresária bem-sucedida. Foto: Reprodução/Facebook

No mundo dos homens

Além da separação dos seus pais, em 1978, e da fuga do técnico Karólyi, três anos depois, Nadia sofreu muito no mundo dos homens, mesmo com fama e o respeito que ginástica lhe trouxe. A Romênia possuía um dos mais ditatoriais regimes comunistas do leste europeu. Preocupado com a fuga de Karólyi, o líder Nicolau Ceucesco designa para a polícia política do país a incumbência de vigiar Nadia 24 horas por dia. Medo de que a atleta romena mais famosa do mundo também fugisse. Foram nove anos de terror para ela.

Em 1984, durante seu noivado, o filho do ditador invade o local, prende alguns convidados, mata outros e termina por estuprar Nadia Comaneci. Entre 1984 e 1989, ela ainda foi obrigada a visitar o Palácio para servir o filho do ditador, além da ingestão forçada de drogas. Finalmente, em 1989, consegue fugir da Romênia e se exilar nos Estados Unidos.

Panait, o ginasta que a ajudou a fugir, acabou se casando com a romena em 1993. Depois de muita violência doméstica e espancamentos, Nadia e Panait são expulsos do país; afinal, ele, além da violência contra Nadia, cometeu vários crimes nos Estados Unidos. Comaneci só conseguiu o divórcio em 1996.

Somente no final dos anos 90 ela volta ao país. Casa-se novamente em 2003. Tem o filho Dylan em 2006. O inferno masculino parecia ter acabado.

Nadia Comaneci é uma referência eterna para o esporte. Hoje, é embaixadora da ginástica romena. Toda Olimpíada a vemos nos camarotes oficiais. É uma bem-sucedida empresária de materiais esportivos e escolas para ginastas nos Estados Unidos. Como toda mulher, tem muito a comemorar pelas suas conquistas, sua luta e sua dedicação. Infelizmente também, tem muito a lamentar sobre a violência perpétua dos homens.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.

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