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Liberdade para odiar

O velho mundo conservador se desfaz pelos ares e a primavera dos novos tempos se anuncia. Mas, como em toda transição, o arcaico convive com o hodierno, as formas do passado se diluem no contemporâneo

Martinho Milani* (especial para o Portal Porque)

Hitler odiava as faculdades de Belas Artes e Arquitetura. Os neofascistas atuais têm ojeriza ao conhecimento científico e ao pensamento e liberdade existentes em universidades. Foto: reprodução

Zygmunt Bauman defendia que vivemos em “tempos líquidos”. As ideias do filósofo e sociólogo polonês são um aprofundamento e aperfeiçoamento da interpretação sobre o que é o Pós-Modernismo. Segundo diversos pensadores, o período posterior à Segunda Guerra Mundial levou a uma crise da razão iluminista e das grandes narrativas totalizantes de progresso. Conceitos como Igualdade, Liberdade, Fraternidade, Justiça Social perderam o sentido. As grandes batalhas humanitárias não fazem mais sentido. Democracia, social-democracia, socialismo, anarquismo, comunismo são ideais políticos generalizantes e perversos. Walter Benjamin, filósofo alemão do entreguerras, afirmava que na era da reprodutibilidade técnica a arte perdera sua aura de encantamento e beleza. Os tempos pós-modernos são fluidos, de uma volatilidade interminável. Tudo o que era sólido se desmanchou no ar. As velhas certezas, as antigas bandeiras, a estética tradicionalista, os relacionamentos humanos, tudo o que nos cerca deixou de ser absoluto.

Encontra-se aí a primeira pista para se entender o avanço da extrema-direita no mundo. Na era da razão havia teóricos, filósofos, pensadores sérios, artistas e ideologias que construíam uma resposta para as mazelas humanas. Ao contrário, a pós-modernidade combina com o fascismo; afinal, os regimes autoritários que iniciaram sua caminhada há exatos 100 anos (Mussolini tomou o palácio de governo italiano em 28 de outubro de 1922), nunca foram uma ideologia. Sempre foi um amontoado de ideias proferidas por um Duce, um Fuhrer, sem nenhum programa, nem doutrinador. Por isso a eterna dificuldade dos historiadores em definir o nazifascismo, pois ele nunca foi um movimento político como o Liberalismo Clássico, o Conservadorismo ou o Socialismo. Era apenas o capitalismo autoritário, racista, nacionalista, romântico e antidemocrático, centrado na figura de um líder supremo.

Vive-se numa era de transição histórica. O velho mundo conservador se desfaz pelos ares e a primavera dos novos tempos se anuncia. Mas, como em toda transição, o arcaico convive com o hodierno, as formas do passado se diluem no contemporâneo. Parte do que assistimos na vida e na política atuais se dá por essa confusão de tempos históricos. O mundo que se despede não aceita e não quer entender o jovem que se apresenta. A extrema direita sempre foi racista, jamais irá aceitar o protagonismo de negros. São machistas, portanto não respeitam a sociedade em que as mulheres se empoderam. Homofóbicos, pois desrespeitam a política de gêneros. Querem o extermínio de índios, muçulmanos, sírios, curdos, mexicanos e ucranianos. A terra é plana, a raça é a branca, as riquezas são dos homens.

A atual onda de extrema-direita que a maioria dos pensadores sociais denomina de “neofascismo” começou com a eleição de Viktor Orbán na Hungria em 2010. Ídolo do clã Bolsonaro e bastante elogiado nos tempos de Donald Trump nos Estados Unidos, Orbán está no seu terceiro mandato seguido. Com alterações sucessivas na Constituição do país para lhe garantir um mandato eterno, destituição de todos os tribunais jurídicos superiores e indicação de ministros adequados ao seu pensamento, o líder húngaro tem um discurso e práticas nacionalistas, xenófobas e anti-imigrantes. A ideia do muro cuja construção Trump iniciou no sul dos EUA para impedir a imigração de latinos veio da fronteira artificial e militarizada que o líder húngaro construiu no sul do seu país. Homofóbico e transfóbico, Orbán falou no Congresso da Direita norte-americana ano passado que o mundo precisava de mais “Chuck Norris e menos drag queens”. Na primeira fila da plateia, aplaudindo-o efusivamente, estava Flavio Bolsonaro.

Bolsonaro encontra Orbán, da Hungria, em fevereiro deste ano: troca de afagos e declarações de afinidades. Foto: reprodução/redes sociais

No ano seguinte à ascensão do líder húngaro, faleceu o ex-paraquedista do exército da República de Vichy (a parte sul da França que aderiu ao nazismo na segunda guerra), Jean Marie Le Pen, líder da ultradireita francesa por décadas que dizia que os campos de concentração foram um pequeno detalhe da segunda guerra e que Hitler era o maior estadista da história europeia. Em seu lugar assumiu a direção do partido de extrema direita Reagrupamento Nacional a filha de Jean Marie, a advogada Marine Le Pen. Nesses dez anos ela vem criando um discurso nacionalista e xenófobo mais adocicado, incluindo aí a formação de uma equipe de penetração nas redes sociais e uma fábrica de fake news, além da autodefinição como uma simples “criadora de gatos”. Ela mora com sete gatinhos e luta pela causa animal. E como poderia ser má uma simpática senhora que ama os animais? Hitler adorava seus pastores alemães. A estratégia de Marine tem dado certo. Na primeira eleição presidencial que ela concorreu, obteve 18% dos votos, em 2012. Na última, ocorrida este ano, Marine foi ao segundo turno e foi derrotada pelo atual presidente Macron. Sua votação expressiva atingiu 41,5% do eleitorado francês.

Em 2015 foram mais três governos de extrema-direita eleitos. Na Polônia, o partido Lei e Justiça elege o primeiro ministro Mateusz Morawiecki. O ex-comediante da televisão Volodymyr Zelenski é eleito após um golpe de estado na Ucrânia em que o antigo presidente foi assassinado. Zelenski acomodou no seu governo algumas agremiações neonazistas nanicas e a temerosa milícia Azov, supremacistas brancos ucranianos. Não se pode afirmar que a Ucrânia é um país nazista, nem que seu presidente é fascista, mas ele aceitou de bom grado a ultradireita do país. A invasão russa, comandada por Vladimir Putin, alega defender o mundo contra a ameaça nazista; entretanto, não se justifica a guerra, até porque em muitos casos o líder russo tem estimulado grupos de extrema-direita pelo mundo. O terceiro eleito foi Donald Trump nos Estados Unidos. Fez um governo recheado de xenofobia, aversão aos movimentos sociais, racismo explícito, negacionista e homofóbico.

O partido Vox da Espanha não chegou a vencer as eleições legislativas de 2020, mas obteve 56 cadeiras das 450 para deputado, além de três senadores. A maior votação desde sua fundação em 1988. Na Suécia, Jimmie Akesson, o político que vem mudando a imagem (não os ideais) do partido Democratas, conseguiu se eleger governante do país nórdico. Um dos países mais civilizados, ricos e tolerantes do mundo agora é administrado por um líder que é anti-União Europeia, prega a expulsão dos imigrantes sírios do país e o corte de gastos sociais. No mesmo ano, o Brasil elegeu seu líder de extrema-direita, Jair Bolsonaro. Por último, tivemos as eleições de setembro deste ano na Itália. O grande vitorioso, com quase 30% dos votos do país, foi o Fratelli d’Italia. Fratelli é apenas o novo nome do Partido Fascista italiano. A nova primeira-ministra será Georgia Meloni, política de extrema direita italiana há duas décadas. Seu lema na campanha: “Deus, Pátria e Família”. Mórbida semelhança com o Brasil.

E quais são as características desse Neofascismo? Vejamos por pontos:

• O anticomunismo. Tanto no velho nazi-fascismo como no neofascismo, a crença de que o comunismo está prestes a destruir a civilização é conceito essencial. O anacronismo aqui é claro: não há mais um movimento comunista, os partidos e sindicatos de esquerda enfraqueceram e muito. O neofascista é tão paranoico que vê comunismo na questão de gênero. Ideias totalmente fora do lugar e época.

A globalização ou mundialização são também responsáveis pela destruição dos verdadeiros valores da civilização. A ignorância neofascista é tão grande que eles defendem que globalização e comunismo são duas faces da mesma moeda. O mundo sem fronteiras, nem bandeiras, muito menos Deus, não deve prosperar. Por isso o nacionalismo, a xenofobia e as intolerâncias religiosas. O neofascista vê o demônio em tudo, menos em si, numa clara projeção junguiana.

Georgia Meloni, do Frateli d’Italia, novo nome do Partido Fascista: mórbida semelhança com o Brasil. Foto: reprodução/redes sociais

Para o neofascista, o mundo continua binário. Meninas brincam de boneca; meninos de armas e carros. Homossexuais, transgêneros, seja lá qual a identidade das minorias LGBTQIA+, são todos degenerados querendo impor por meio de uma guerra cultural as próprias aberrações. Não aceitam conviver com as diferenças e, se pudessem, terminariam com todas elas.

Hitler odiava as faculdades de Belas Artes e Arquitetura porque nunca conseguiu entrar nos cursos oficiais. O Fuhrer era péssimo aluno e um artista abaixo de medíocre. Os neofascistas atuais têm ojeriza ao conhecimento científico e ao pensamento e liberdade existentes em universidades. Seguem o conselho reacionário de Alexis de Tocqueville de que a “democracia é a tirania da maioria”. Descrença na ciência, no estudo, no aprendizado por meio da liberdade tem muito a ver com a limitação intelectual dos neofascistas.

• São negacionistas. Mais de 7% da população brasileira acredita que a terra é plana. Bolsonaro e Trump nunca aceitaram a existência da covid-19. Negaram a eficácia da vacina e retardaram ao máximo sua aplicação. Não é à toa que Brasil e Estados Unidos foram os dois países que mais perderam vidas na pandemia.

Os líderes neofascistas são populistas, nacionalistas e defensores de que a exclusão social é responsabilidade única do próprio excluído. Eles atingem a crença comum de que no capitalismo basta você trabalhar e querer que terá seu lugar ao sol, e as políticas públicas de redução da desigualdade são meras formas de alimentar vagabundos.

Walter Benjamin defendia que o nazismo e o fascismo com seus desfiles cívicos, a gestualidade incisiva, as bandeiras, as suásticas, as camisas pardas ou pretas, a indumentária militar, eram um fenômeno estético. Uma reação conservadora às vanguardas culturais do início do século XX. O neofascista veste a camisa amarela de uma empresa de futebol e destila seu ódio nas redes sociais.

Joseph Goebbels, prefeito de Berlim e ministro da propaganda do período nazista na Alemanha, dizia que “uma mentira muitas vezes repetida se torna uma verdade”. Os neofascistas se utilizam de milhares de robots e fake news para divulgar mentiras e perversões dos “comunistas“.

• Possuem o poder econômico. Controlam a maioria dos bancos, do comércio, da indústria, do agronegócio. Assim como Hitler foi financiado pelos mais ricos empresários alemães, os políticos neofascistas nadam em dinheiro.

Os neofascistas, em verdade, vivem numa guerra cultural e política contra o Ocidente e os valores humanitários. Eles odeiam a liberdade, odeiam a igualdade, odeiam o direito das minorias, odeiam a democracia e a desqualificam sempre, odeiam os negros, as feministas, têm repulsa à comunidade LGBTQIA+, menosprezam índios e pobres. Não são solidários nem no câncer. Colocam uma metralhadora nas mãos de Jesus Cristo.

A luta contra o neofascismo é uma luta em defesa da humanidade. Civilização versus barbárie. Uma defesa das verdadeiras liberdades. Afinal, a única liberdade que o neofascista defende é a liberdade de odiar o próximo.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.

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