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Jim Crow, quase um século e meio de racismo nos Estados Unidos

Martinho Milani*

O personagem Jim Crow (do inglês, corvo) encarnou o racismo enraizado na sociedade norte-americana, permitindo-lhe zombar à vontade dos afrodescendentes. Foto: reprodução

Hipócrates desenvolveu a teoria dos humores. Para o pai da medicina, Humor era sinônimo de líquido. Seriam quatro os líquidos do nosso corpo. O equilíbrio ou a falta deste indicam a saúde ou a doença. Os líquidos são o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra. Cada um deles representa um estado de espírito. Temos o racional ou sanguíneo, o fleumático, o melancólico e o colérico.

A teoria, aprofundada por Galeno, predominou na medicina ocidental até o século XVII. Sobrou o conceito atual de Humor, como o estado de espírito que em geral é associado à felicidade.

Humor virou profissão. Duas formas de humor são respeitáveis: o humor de conotação política e o humor judaico. Sempre alicerçados em jogos de palavras, ironias, capacidade de rir de si mesmo e profundo desrespeito à autoridade. Humoristas judeus como Jerry Seinfeld e Woody Allen ou políticos como Chaplin e sua caricatura do homem mais poderoso do século XX, Adolf Hitler. Um humor que nos faz sorrir abalando nossas certezas. Mas, infelizmente, uma forma de humor ainda popular é a zombaria ou chiste, como queria Freud.

A zombaria é a inferiorização de uma pessoa ou grupo minoritário. Por meio de humilhações, macaquices, exageros de defeitos que só existem na cabeça de pessoas preconceituosas, a zombaria tem como função central desmerecer e exagerar, expor ao ridículo alguém ou um grupo. A plateia ri da violência psicológica disfarçada de arte pelo simples motivo de que concorda com o que vê. Alguém que zomba de um homossexual, macaqueando trejeitos, conta com o riso largo de uma plateia homofóbica. Assim, negros, judeus, índios, mulheres, homossexuais, pobres ou qualquer outro grupo minoritário são mutilados aos poucos por espectadores que tripudiam do sangue alheio.

Talvez o maior símbolo da zombaria foi Jesus Cristo. No caminho da crucificação ele sofreu três grandes ciclos de zombaria. O primeiro acontece quando ele começa a carregar a cruz. Judeus, romanos e gentios gritam pilhérias, cospem, chutam e chicoteiam Jesus. Num segundo momento, são os soldados romanos que, além de xingá-lo e cuspirem em seu rosto, lhe trazem vestes púrpuras. Cor da realeza. “Não és rei?” Perguntam-lhe com bazófia. Na cruz, mais uma vez todos se juntam na humilhação. “Desce daí, tu não és o filho de Deus?” ”Perdoa, pai, eles não sabem o que fazem.” Mesmo diante de tanta humilhação, numa última súplica divina, Jesus reafirma a que veio e qual o reino quer ver imperar.

Thomas D. Rice era um tipo de ator fracassado. Uma pessoa sem caráter e sucesso. Nas suas andanças pelas fazendas escravistas do sul norte-americano, na década de 1830, ele encontrou seu caminho: subia nos palcos e punha-se a cantar num inglês cheio de erros e propositalmente com trejeitos animais. Passava uma hora demonstrando ser ignorante, vagabundo, idiota e simplório. Vestia roupas esfarrapadas e sapatos invertidos.

Os espectadores que lotavam os teatros morriam de rir do começo ao fim. Mas por que riam? Porque Rice acrescentou um detalhe ao personagem: rosto, pescoço, corpo, braços e mãos eram pintados com tinta preta, a denominada black face. Rice criara um personagem que tratava o negro como imbecil e animalesco. Nascia das profundezas da sordidez humana o caricato Jim Crow. Um escravo negro que se assemelhava a um corvo.

Jim Crow virou um símbolo de como a sociedade americana enxergava seus afrodescendentes. Tornou-se uma alegoria tão forte que, em 1880, foi aprovada uma miríade de leis segregacionistas pelo país, principalmente no Sul. As leis ficaram conhecidas como Jim Crow Laws. Voltando um pouco, até a Abolição (1863), existiam dezenas de Estados segregacionistas nos EUA. Era o Black Code. Com a 13° emenda (a que garantiu a liberdade aos negros) e a 14° emenda (que proibia o Estado de impor qualquer tipo de cerceamento à liberdade da pessoa), não havia mais espaço para a segregação racial. Só que a Suprema Corte estadunidense resolveu ter uma interpretação esdrúxula da 14° Emenda. Segundo ela, quando o legislador falou ”pessoa”, ele se referia a pessoa jurídica, a empresa ou corporação, como dizem os americanos. Ou seja, o Estado não pode impor nenhuma restrição à atividade econômica. A corte de justiça transformou um direito fundamental do cidadão numa garantia do laisser faire das empresas.

Foi o que bastou para a Klu Klux Klan (KKK) justificar sua existência e para diversos Estados do Sul aprovarem leis proibindo casamento inter-raciais, proibindo negros de entrar num teatro, num cinema, etc. Afinal, agora, quem define o funcionamento do negócio é seu proprietário. Caso um teatro decida proibir a entrada de um negro, tal direito pertence à liberdade da pessoa (jurídica) contra o Estado. Rice fez emergir o monstro em 1836; cinco décadas depois sua criatura deu nome às leis racistas em Estados norte-americanos. Jim Crow estava na alma daquela comunidade.

Jim Crow chega aos desenhos animados coloridos no século XX. Foto: reprodução

Jim Crow abriu espaço para toda uma subcultura racista. Muitos artistas o interpretavam pelo país. Um estilo musical, aparentemente para crianças, surgiu: o minstrel. As letras se formam de repetições, em geral cantadas em sentido decrescente, testando a paciência e a memória do ouvinte. Exemplo:

”Cinco elefantes subiram num bote/ veio a onda e bote virou/ um elefante caiu e ficaram quatro elefantes num bote…”

O primeiro sucesso do gênero foi “Ten little niggers”. Posteriormente alterado para “indians” devido ao racismo explícito da letra e finalmente a “monkeys”, “soldiers”, “fingers” atuais.

Reproduzo o minstrel abaixo:

Ten little nigger boys went out to dine
One choked his little self, and then there were nine.

Nine little nigger boys sat up very late
One overslept himself, and then there were eight.

Eight little nigger boys traveling in Devon
One said he’d stay there, and then there were seven.

Seven little nigger boys chopping up sticks
One chopped himself in half, and then there were six.

Six little nigger boys playing with a hive
A bumble-bee stung one, and then there were five.

Five little nigger boys going in for law
One got in chancery, and then there were four.

Four little nigger boys going out to sea
A red herring swallowed one, and then there were three.

Three little nigger boys walking in the zoo
A big bear hugged one, and then there were two.

Two little nigger boys sitting in the sun
One got frizzled up, and then there was one.

One little nigger boy living all alone
He went and hanged himself and then there were none.

Tradução aproximada:

“Dez negrinhos saíram para jantar
Um sufocou a si mesmo e então havia nove.
Nove negrinhos sentaram-se até tarde
Um dormiu demais e depois havia oito.
Oito negrinhos viajando em Devon
Um disse que ficaria lá, e então havia sete.
Sete negrinhos cortando gravetos
Um se partiu ao meio e depois havia seis.
Seis negrinhos brincando com uma colmeia
Uma abelha picou um, e depois havia cinco.
Cinco negrinhos indo para a advocacia
Um entrou na chancelaria e depois havia quatro.
Quatro negrinhos indo para o mar
Um arenque vermelho engoliu um, e então havia três.
Três negrinhos caminhando no zoológico
Um grande urso abraçou um, e então havia dois.
Dois negrinhos sentados ao sol
Um ficou torrado e depois havia apenas um
Um negrinho morando sozinho
Ele foi e se enforcou e depois não houve nenhum.”

A música “infantil” brinca com a morte dum “little niger” por sufocamento, vagabundagem, torrado de sol ou mesmo se suicidando. Racismo é pouco para a terra de Jim Crow.

Surgiram os “minstrel shows”, apresentações teatrais em três atos. No primeiro ato era o próprio Jim Crow. No segundo ato havia muita música cantada, em geral, por 5 atores brancos com suas black faces. Terminava o terceiro ato com zombarias sem fim aos negros. A plateia entrava em delírio. A black face permaneceu no cinema até 1953. O premiadíssimo “O cantor de jazz” (1927), primeiro filme falado, tinha Al Jonson de cara pintada.

Jim Crow criou subtipos como o sucesso da história de “The little black Sambo”, contando as peripécias de um menino e seus pais no meio de uma floresta selvagem. Derrotados os perigos, a família se dedica a comer panquecas. O pequeno Sambo come 89 de uma vez. Aparece a Tia Jemama e corvos são utilizados pela Disney.

Jim Crow ganhou uma companheira. Uma doméstica negra fazedora de panquecas. Tia Jemima. Nem Pernalonga escapou do racismo. Numa passagem, ele dialoga e como sempre, menospreza um oponente negro, com os traços claramente exagerados. Noutra passagem, Pernalonga é explícito. Ele e Gaguinho são cantores de um “minstrel show”, com os tradicionais cinco cantores. Buggs Bunny pinta o rosto, assim como Gaguinho. A black face num inocente desenho. Pobres crianças que sequer perceberam isso.

Um dos melhores romances de Agatha Christie foi traduzido em vários países com o título de “O caso dos dez negrinhos”. Na trama, dez pessoas diferentes recebem um mesmo convite para passar um fim de semana na remota Ilha do Soldado. Na primeira noite, após o jantar, elas ouvem uma voz acusando cada uma de um crime oculto cometido no passado. Mortes inexplicáveis e inescapáveis então se sucedem. E a cada convidado eliminado, também desaparece um dos soldadinhos que enfeitam a mesa de jantar. Quem poderia saber dos dez crimes distintos? Quem se arvoraria em seu juiz e carrasco? Como escapar da próxima execução? São perguntas que a mestre do suspense nos impõe. A história do livro segue o movimento de um “minstrel”, talvez por isso o título original ser “ten little niggers “. No Brasil, atualmente, o livro é vendido com o título “E não restou nenhum”. Quase todos os países europeus também alteraram o título.

Lembram-se do simpático elefantinho Dumbo da Disney? Numa das cenas, ele sofre com o ataque de corvos. Os exageros, a zombaria, o linguajar, o charuto, tudo lembra o racismo. O líder da gangue tem o simpático nome de Jim. A alusão a Jim Crow é tão descarada que, ao lançar seu streaming ano passado, os estúdios Disney retiraram a cena do filme disponibilizado online.

Mesmo um escritor intelectual como Mark Twain tem seus deslizes. Em “Aventuras de Huckleberry Finn”, quando os meninos Huck e Jim encontram os negros, a descrição dos traços dos ex-escravos beira ao escárnio.

A liberdade ao escárnio, humilhação, pilhérias e zombarias aos afrodescendentes começa a ruir com a nova luta pelos direitos civis iniciada nos Estados Unidos em 1955. Rosa Parks era costureira em Montgomery (Alabama). Os ônibus reservavam as primeiras filas de assentos para os brancos e as últimas para os negros. No centro, qualquer um podia se sentar, mas se um branco ficasse de pé, tinha preferência. Parks estava em um desses assentos, e quando em um ponto próximo de um teatro um bom número de brancos subiu ao ônibus, o motorista pediu que ela se levantasse. Ela respondeu: “Não.” “Bem, então vou fazer com que a prendam”, disse o motorista, James Blake. “Pode fazer isso”, ela acrescentou, e acabou na cadeia. Aí começou o famoso boicote dos negros aos ônibus da cidade, um grande problema financeiro, porque eram os principais usuários. O boicote ganhou o país. Rosa uniu-se a Martin Luther King e levaram o conflito à Suprema Corte. Dez anos depois, as leis segregacionistas foram consideradas inconstitucionais. A 14° emenda voltava ao seu original e entrava em vigor a “lei dos direitos civis”. Negros americanos podem casar com brancos, podem frequentar universidades, frequentar teatros, parques, jogos, ter a igualdade formal da lei. O racismo estrutural continua firme, vide o brutal assassinato de George Floyd.

A zombaria contra Jim Crow durou quase 150 anos. As humilhações impostas aos afrodescendentes são o outro lado da alegoria criada pelo personagem. O racismo é parte da cultura norte-americana, está enraizado nas entranhas da nação. Sorte nossa viver no Brasil, terra da dissimulação, em que negamos o preconceito e o racismo. Aqui temos o Carnaval, onde o negro vira rei e o senhor, seu escravo.

p.s. Em 2001, Spike Lee trouxe de volta a black face e Jim Crow no filme “A hora do show”. Nele, um Executivo negro de rede de televisão, formado em Harvard, fica frustrado quando sua ideia para um programa de humor inteligente é rejeitada, e cria um outro programa, racista e primário, para se vingar. Só que o programa é aprovado e vira sucesso.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.

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