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‘Hair’, o musical que encantou gerações cantando a potência do amor

"Eles apenas acreditam na paz, no amor e na fraternidade. (...) 'Hair' é uma marreta de duas toneladas na cara dos boçais de então e de hoje.

Martinho Milani* - História Adversa (Portal Porque)

Berger (Treat Williams, falecido em acidente de moto no dia 12 de junho deste ano) e John Savage (Bukowski) em cena de “Hair”, musical que fez a cabeça de toda uma geração. Foto: Reprodução

— E quanto a homens?
— O que você quer dizer?
— Você tem alguma atração sexual em relação a homens?
— Se eu sou um homossexual?
— Sim.
— Eu não chutaria Mick Jagger pra fora da minha cama… Mas não, não sou homossexual.

O diálogo acima é uma das cenas magistrais do filme de Milos Forman, “Hair” (1979). A trupe de hippies tenta ajudar o caipira Claude (John Savage) e é presa. Dono de uma imensa cabeleira loira, Woof (Don Dacus, músico, em seu único filme) desafia a psiquiatra da cadeia.

Existem duas guerras contra a Indochina: a primeira é francesa e teve como objetivo destruir e devastar o povo do sudeste asiático para manter os interesses das multinacionais do país europeu — entre elas, a Michelin. O país que nos deu a Revolução Francesa, os ideais iluministas, a Comuna de Paris, lutou contra o nazismo mas jamais aceitou a independência do Terceiro Mundo. Massacrou a Indochina e depois a Argélia.

Os índios daqui estavam certos. Afinal, como era gostoso o meu francês, de preferência num churrascão nada gourmet. A agressão francesa à libertação da Indochina durou seis anos. Derrotados na batalha de Dien Ben Phu, os conterrâneos de Balzac foram sucedidos por outro partidário da civilização: os Estados Unidos.

Depois de dois anos de estabelecimento militar no sul do Vietnã, dando suporte ao governo ditatorial da região, os Estados Unidos iniciaram um ataque massivo contra os vietcongs, apoiados pela China comunista e localizados no norte da Península. Segundo as lendas norte-americanas, um contratorpedeiro havia sido atacado pelos rebeldes comunistas.

O serviço seria rápido. Atacar um dos países mais pobres do planeta, com uma população de baixa estatura e com soldados armados de metralhadoras da década de 40 e estilingues. John Wayne, o herói da América nos anos 40 a 60, no filme “Os boinas verdes”, faz um general que está de partida para o Vietnã em janeiro de 1964. Ele avisa a esposa: “Antes do Natal estou de volta.”

Mas a escalada da resistência vietnamita impressionava. Em 1969, um general americano afirma em entrevista que o grande problema é que os soldados americanos jamais viram um soldado vietcong. Cinco anos de guerra e nem sequer conseguiam ver o inimigo.

As derrotas sucessivas, os fracassos estratégicos e o avanço territorial dos vietcongs (comunistas e comedores de criancinhas) levam os Estados Unidos a uma violência sem precedentes: 1,5 milhão de civis vietnamitas mortos, mais bombas despejadas na Indochina do que em toda a Segunda Guerra. Além de 80 milhões de litros de herbicidas à base de dioxina despejados sobre as matas e a população civil (o famoso “agente laranja”, responsável por mais de meio milhão de mortes nos 20 anos seguintes à Guerra).

E, por último, o napalm, uma gelatina à base de gasolina para desfolhar a floresta úmida do Vietnã, mas que queimava os civis e ardia os ossos por dentro. O napalm, em contato com a água, entra em combustão, daí a terrível imagem da menina vietnamita ardendo em fogo em meio à estrada e aos brutamontes norte-americanos.

O musical da Broadway “Hair” foi adaptado por Milos Forman. Mostra as contradições do país de Kennedy. Há o bronco do interior que acredita que a “Pátria está acima de tudo”. A moça da aristocracia que cede aos desejos do futuro soldado, mas que é apaixonada pelo líder dos hippies. Existe toda uma dubiedade entre o mundo da contracultura, da paz e do amor da futura Era de Aquário e a sociedade militarizada, racista, misógina e conservadora.

“Hair” é uma imensa alegoria do que eram os Estados Unidos dos anos 60 e 70. Um país em convulsão que tinha um sonho. Não só isso. “Hair” resgatou um gênero meio em declínio no cinema: os musicais. Existem cenas e coreografias perfeitas, como a antológica passagem do jantar aristocrático no qual cinco jovens livres entram de penetra.

George Berger (Treat Willians) desafia o poder e a tradição em defesa do seu novo amigo. Canta e dança sobre a mesa de jantar das pessoas endinheiradas que só possuem dinheiro e bens. George e os hippies são sujos, têm os cabelos longos, não trabalham, não se preocupam com a vida e os valores morais estadunidenses (o principal deles era defender a Guerra do Vietnã).

Eles apenas acreditam na paz, no amor e na fraternidade. Não são piegas, não são mansos. São várias as cenas em que eles estouram e mostram força. Mas uma força alicerçada pelos verdadeiros valores éticos e de humanidade. “Hair” é uma marreta de duas toneladas na cara dos boçais de então e de hoje. Uma marreta contra os bacharéis, contra os homens que acreditam que seus cargos, seus smokings, suas peças de prata valem alguma coisa.

São apenas um grupo de pessoas solitárias e fechadas, cada um deles em seu próprio iglu; afinal são gelados como a neve. Morrerão em caixões de madeira nobre, vestindo Prada, mas passarão pela vida como um rio sujo e abandonado.

O destino da verdadeira amizade é um ato de heroísmo sem tamanho de George ao seu amigo Bukowski (seria uma alusão ao grande escritor pervertido da América dos anos 60?). Não tem como não chorar ao ver o mar de cruzes brancas sobre o gramado. A história narrada deixa as perguntas: para que a Guerra? Para que o genocídio na Indochina? Por que tirar a vida de tanta gente em nome da paz?

Em 30 de janeiro de 1968 o general Giap fez a maior ofensiva da história da Guerra: Thet. As bases americanas foram quase dilaceradas. A embaixada norte-americana foi cercada. Milhares de soldados do país morreram. Tudo numa brilhante estratégia de um país miserável, com pouquíssimas armas, mas com muita estratégia e coração.

Daquele dia para frente, os EUA aprenderam da forma mais dolorosa que jamais venceriam os vietcongs. A derrota era questão de tempo e dinheiro (nos dias atuais, teriam gasto cerca de U$ 1 trilhão no Vietnã). Levaram 2,5 milhões de soldados e perderam a guerra. O tratado de Paris, em fins de 1973, permitiu a retirada vergonhosa dos EUA. John Wayne poderia voltar para o Natal, mas 10 anos depois – e derrotado. Deixando atrás dele um rastro eterno de destruição e morte.

Posfácio

Eu era um garoto de 12 anos quando me sentei na sala 1 do recém-inaugurado cinema do Shopping Center Sorocaba. Aliás, como a região era caminho para casa, vi a chácara com alguns trechos do córrego Supiriri ser aterrada e dar lugar ao centro de compras da cidade. De repente, o celeiro onde víamos as vacas da Colaso serem ordenhadas virou um prédio gigantesco. Um dos maiores do mundo na minha imaginação provinciana. Não sabia nada sobre o filme que iria assistir.

“Hair” era um musical ambientado nos anos 60, era o que dizia o cartaz. Não imaginava que toda minha vida mudaria para sempre após terminar a película. Tudo mexeu comigo. As músicas, o cenário, os papéis, as contradições e o anti-heroi Berger (personagem interpretado por Treat Williams). Berger desafiava o poder, a burguesia, os pais, era o revolucionário. Mas cabe a ele o ato de maior grandeza e desprendimento ético da história. Ele se finge de soldado para permitir ao amigo caipira Bukowski ter uma noite com a paixão impossível.

O acaso faz a audácia se tornar tragédia. Bukowski perde a hora, o avião parte para o Vietnã como o hippie Berger. As asas do caça transmutam-se em cruzes brancas. Berger morreu pela pátria sem nenhuma razão, como o Vietnã foi uma guerra sem motivo. Um mero genocídio. Ali chorei por um bom tempo. Carreguei comigo as lições éticas de Hair e a imagem quase cristã de Berger.

No dia 12 de junho, Treat Williams (Berger) perdeu a vida num acidente de moto. Teve uma carreira impecável em filmes e séries, escreveu um livro infantil. Pena que a Era de Aquarius ainda não veio.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem

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