Tivemos, em recente sessão da Câmara Municipal, aceso debate sobre a utilização da laqueadura de trompas como instrumento de contracepção.
A discussão então ocorrida foi uma lastimável demonstração de que, no Brasil de hoje, perdemos a capacidade de expor serenamente distintos pontos de vista sobre questões de interesse para a coletividade e os meios e modos de solucioná-las. O entrevero entre legisladores produziu um excesso de calor e nenhuma luz, em prejuízo do interesse de algumas centenas de mulheres dos extratos sociais mais modestos necessitadas daquele procedimento.
O Planejamento Familiar é um direito das famílias brasileiras, contemplado no Título VIII da Constituição da República (Da Ordem Social), através do § 7º do art. 226, cuja redação é a seguinte: “Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.”
Trocando em miúdos: o casal tem o direito de planejar ou não o tamanho da prole. O exercício dessa prerrogativa deve levar em conta, simultaneamente, a dignidade da pessoa humana – e, por isso, a proibição de qualquer medida coercitiva em tal sentido – e a paternidade responsável. Vejamos, em detalhe, este último item cuja importância é crescente.
A família, na sociedade brasileira contemporânea, predominantemente urbana, tem estrutura e mecanismos de sustentação diversos daqueles do tempo de nossos ascendentes próximos ou remotos.
Quando a maioria dos brasileiros vivia na roça, era importante que as famílias gerassem muitos filhos por dois motivos básicos. Muitas das crianças, gestadas sem assistência pré-natal, morriam durante o parto ou em tenra idade. Também não eram poucas as mulheres que pereciam ao dar à luz. As crianças sobreviventes, com poucos anos de vida, passavam a auxiliar os pais nos trabalhos por eles desenvolvidos, contribuindo, assim, para o aumento do ganho familiar.
O acesso à escola, mesmo em grandes cidades dos Estados mais desenvolvidos, começava tarde, alcançava poucos indivíduos e por um período muito curto. No Estado de São Paulo, a reforma escolar mais avançada da velha República ocorreu no início da década de 1920, durante o governo de Washington Luiz. Ela somente garantia o ensino gratuito para as crianças pobres – filhos de operários – e por apenas dois anos. Ao longo das décadas, a escolarização foi estendida para quatro anos, mas o quarto ano não era encontrado em todos os grupos escolares.
Na sociedade urbana, em que vive hoje a maioria dos brasileiros, o trabalho infantil é proibido, o juvenil é desencorajado e o poder público deve oferecer educação gratuita da creche ao colégio. Criou-se, no Ministério da Educação, um órgão encarregado de repassar aos municípios os recursos necessários ao atingimento de tais objetivos. Entretanto, mesmo dispondo de uma rede de educação pública que garante ensino gratuito até o nível médio e, mediante vários mecanismos, facilita o acesso do educando ao nível superior, nas famílias que buscam criar condições para que seus filhos atinjam um nível socioeconômico ao delas próprias, os pais sabem que terão de, no todo ou em parte, arcar com a sustentação deles por vinte anos ou mais. Se a prole for numerosa, a tarefa torna-se impossível.
Levando em conta essas novas realidades, a Constituição e as leis que a detalham deram ao planejamento familiar a condição de direito assegurado a todo cidadão. Assim o fez não para negar o papel central da família e sim para ampliar o foco de sua atuação que, antes concentrado nas tarefas de concepção e geração de novos indivíduos, passou a compreender também aquelas relativas ao desenvolvimento e escolarização deles.
Ao detalhar o preceito constitucional, a lei nº 9.263, de 12 de janeiro de 1996, estabeleceu que ele compreende o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal, proibida a sua utilização para qualquer tipo de controle demográfico. Operacionalizado pelos órgãos gestores do Sistema Único de Saúde, inclusive os municipais, deve incluir o atendimento pré-natal; a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; o controle das doenças sexualmente transmissíveis e o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis.
Diz ainda a lei que, “para o exercício do direito ao planejamento familiar serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção aceitos e que não coloquem em risco a saúde das pessoas garantida a liberdade de opção”, “mediante avaliação e acompanhamento clínico e com informação sobre os seus riscos, vantagens, desvantagens e eficácia”. As previsões legais são particularmente restritivas em relação aos procedimentos de que decorram a esterilização, limitando-os a “homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar a esterilização precoce” e, ainda, em casos de “risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos”.
Considerados todos esses pontos, em que ficamos no tocante ao atendimento às centenas de mulheres que, segundo a vereadora Fernanda Garcia (Psol), devem passar pela laqueadura de trompas, as quais, acreditamos 1) preenchem as condições previstas na lei federal e 2) dispõem de relatório escrito e assinado por dois médicos testemunhando a necessidade daquele procedimento para eliminar “risco à vida ou à saúde” delas “ou do futuro concepto”?
O primeiro passo deve ser a solicitação do serviço, pela rede de unidades do SUS geridas pela Prefeitura que, pela sua condição de organismo gestor do sistema, a tanto se encontra obrigada. A etapa seguinte – de natureza hospitalar – seria a execução da laqueadura pelos hospitais conveniados com o município, os quais, entretanto, não o executam, invocando princípios éticos pelos quais pautam sua atuação. Em assim sendo, o governo municipal está obrigado a contratar um prestador de serviços não subordinado àqueles ditames. Ou, o que aparentemente seria mais fácil, negociar a realização das laqueaduras junto ao Conjunto Hospitalar estadual, com amparo na prescrição médica pré-existente. O que não pode é eximir-se de suas obrigações legais e constitucionais como instância gestora do SUS – omissão essa que, em se considerando o número das laqueaduras, pendentes de realização, deveria, há muito, ter sido captada e enfrentada pelo Ministério Público.
Observe-se, por fim, que errou a camarista ao reclamar do padre gestor da Santa Casa medida que ele não pode implementar sem colidir frontalmente com seus princípios doutrinários pessoais e aqueles da instituição que comanda. Errou o padre, ao equiparar a laqueadura ao aborto, pois nesta não se elimina a vida de um terceiro – no caso, o nascituro. E erraram os vereadores ao optarem pela solução mais fácil – a rejeição do requerimento da parlamentar –, esquivando-se de, através da parlamentação, encontrar uma solução que, levando em conta a laicidade constitucional do Estado, conciliasse os interesses e abreviasse a solução de um problema cuja pertinência não pode ser ignorada.
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Geraldo Bonadio é jornalista, advogado e escritor.
POLÍTICA – FALTA DE LAQUEADURAS NA REDE PÚBLICA VIRA DEBATE RELIGIOSO NA CÂMARA DE SOROCABA