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A festa da carne

"A festa é vilipendiada porque ninguém quer ver negros e pobres dançando alegremente na TV. Lugar de escravo é na senzala, chorando os rasgos do chicote. Quem não trabalha não vê sentido no lazer, na festa, no descanso. Festa somente se for pra celebrar uma nova fraude"

Martinho Milani* - História Adversa (Portal Porque)

Primeira escola de samba do Brasil, Deixa Falar, foi fundada em 1928. Meses depois, nascia a Estação Primeira de Mangueira. Quase sempre combatido pelos chatos de plantão, o Carnaval percorreu uma longa trajetória até chegar aos formatos atuais de folia. Foto: Gabriel Monteiro/Riotur

“ — Não há quem não saia no Carnaval disposto ao excesso, disposto aos transportes da carne e às maiores extravagâncias. O desejo, quase doentio é como incutido, infiltrado pelo ambiente. Tudo respira luxúria, tudo tem da ânsia e do espasmo, e nesses quatro dias paranóicos, de pulos, de guinchos, de confianças ilimitadas, tudo é possível…”

João do Rio, escritor carioca do início do século XX,  ainda é pouco conhecido. Infelizmente.  No conto “O bebê de tarlatana rosa” (1925) ele põe as preconceituosas palavras acima na voz do narrador Heitor. Mas vai além, numa narrativa delirante que ainda nos causa estranheza.

O conto de terror se passa no Rio de Janeiro, nos quatro dias e meio de Carnaval, entre o sábado e a quarta-feira de Cinzas. Heitor narra para os amigos, Anatolio e Maria da Flor, uma estranha aventura acontecida naquele mesmo ano na festa do Momo carioca. Com um vocabulário rico e inusitado, João do Rio fala da foliã ou folião (a dubiedade é uma constante do conto) que encontra no Carnaval “deste ano”, portanto bem próximo à reunião dos amigos. Embriagado pela atmosfera lasciva e de volúpia, Heitor começa o flerte com um beliscão no “bebê de tarlatana rosa”. O fino tecido de algodão que escondia as formas reais despertara a curiosidade e a sexualidade em Heitor. A máscara na face e o estranho nariz claramente artificial também.

O narrador e a foliã/folião vão num crescendo, girando pelos dias e ruas do Carnaval, até que na madrugada de terça para quarta Heitor se entrega aos beijos e carícias e, finalmente, vê a máscara cair e o segredo se revelar. Heitor fica estarrecido com a revelação e o bebê lembra que fora ele, o narrador, que iniciara tudo, portanto deveria se entregar ao prazer. Heitor foge desesperadamente para casa e quando vai entrar percebe que levara o nariz de cera na mão. O bebê era uma caveira.

O Carnaval, desde as origens, no mito de Dionísio, sempre foi a festa das inversões de posições e das máscaras. Dionísio, o Deus grego da festa, da volúpia e do prazer, se disfarçava nas festas que realizava no Olimpo. Tudo para enganar a esposa de Zeus, Hera, que possuía um ciúme vingativo do deus mascarado Dionísio, inventor do vinho e filho de uma amante de Zeus.

Qual o contrário do bebê, signo da vida? A morte. Heitor cutucou o/a mascarado(a) sem pensar nos opostos carnavalescos. As festas em homenagem ao Deus Dionísio na Grécia e Baco em Roma Antiga eram corriqueiras. Em comum havia a celebração da vida, o inebriante vinho (bebida inventada pelo próprio Deus), a sexualidade libertária, a volúpia, as fantasias e máscaras e a inversão de papéis. O escravo que seria rei por quatro dias. Foi assim com o palhaço negro e pobre Benjamin Oliveira que se tornou o primeiro Rei Momo do Carnaval carioca em 1910. Foi na Renascença que Dionísio deu lugar ao rei da alegria, o Momo.

Personagem célebre dos carnavais atuais, ele é o rei invertido da festa. Nos carnavais cariocas, o Momo recebia as chaves da cidade do próprio prefeito da cidade do Rio na sexta pré-Carnaval, um ato simbólico da passagem do poder.

Na Roma era uma tradição a utilização de grandes barcos colocados sobre rodas e arrastados pelas ruas. Dentro dos carrum navalis, havia homens e mulheres nus, dançando e cantando, falando palavrões, simulando sexo e que convidavam as pessoas a subirem nesses ancestrais dos carros alegóricos.

Alguns consideram que a palavra Carnaval vem do Carrum Navalis ou mesmo Carna Vale, festa da carne. Mas foi a igreja que adotou a festa pagã e cristianizou-a. Entre os século XI e  XII, a festa entrou no calendário da Igreja. Denominada de Carna Levare, significando “abster-se de carne”. Carnaval era a festa permitida antes de jejum quaresmal. Tanto que até hoje a data do Carnaval é marcada para 40 dias antes da Páscoa. Com isso, a igreja tentava controlar a festa do Carnaval, bem como as festas orgiásticas ocorridas na primavera. De fevereiro a abril, a Europa Ocidental vivia em festa. Com muito vinho, danças, cantos e sexo.

No século XX, com o aparecimento do samba, um estilo musical genuinamente brasileiro e fruto do Carnaval, a festa escorria pelas mãos da Igreja. No “Samba da minha terra”, Dorival Caymmi aproxima o samba dos carnavais pagãos…

“Eu nasci para o samba, no samba me criei. (…)
E quem não gosta de samba, bom sujeito não é.
É ruim da cabeça  ou doente do pé.”

Voltemos  à Renascença. Rabelais nos conta que a festa do excesso também era violenta. Socos, pontapés, mordidas, tabefes eram trocados entre os foliões. Tudo fazia parte do cenário da diversão. Macunaíma, num trecho carnavalesco, descreve uma alegre pancadaria em que o herói sem nenhum caráter participa.

Nosso Carnaval nada tem a ver com o veneziano.  Este se resume a uma festa “civilizada”, com os participantes mascarados e de tom aristocrático. Nossa festa ainda tem um predomínio de elementos populares e a atmosfera libertária e lasciva. Nos primórdios do Carnaval brasileiro está o Entrudo. Os festeiros passavam pelas ruas e casas cantando e dançando. A principal diversão era jogar baldes com água suja nas pessoas. Muitas das vezes com urina e fezes. O que provocava variados quebra-paus. O descontrole era tanto que em 1602 Portugal proibiu a festa na Colônia. E assim foi até o desaparecimento do Entrudo, no início do século XX, com reaparecimentos e proibições diversos.

A festa mais similar ao Carnaval de hoje foi constituindo-se paulatinamente a partir da primeira metade do século XIX. A data mais aceita é 1834. No início festejavam em salões fechados, com músicas que recebiam influência das polcas, ritmos como o lundu e os congos. As primeiras marchinhas surgiram no final do século XIX. Aos poucos, a festa vai pras ruas e surgem os cordões de foliões. Depois deles, aparece em 1853 o bloco do comerciante português José Nogueira de Azevedo Paredes.

Fazendo algazarras pelas ruas, bebendo vinho e cachaça. A banda do Zé Pereira tocava zabumba e tambores. O Carnaval saía da rua do Ouvidor e levava a festa para a Avenida Central, com as reformas do prefeito Pereira Passos. Nasce em 1900 o personagem do do Malandro.

As máscaras preferidas eram de velho, caveira, morcego, diabinho e marinheiro. Serpentinas douradas viram febre. O lança-perfume, legal até 1930, torna-se obrigatório nos salões.

Carros conversíveis importados transportavam os ricos da cidade. Fantasiados de arlequins, colombinas ou apenas mascarados, os viajantes travavam civilizadas batalhas de confetes, serpentinas e lança-perfume com os outros automóveis do desfile. Algo tão aristocrático e chato, que acabou quando os carros se popularizaram no Brasil nos anos 50. Eram os corsos que invadiam a avenida Rio Branco, inaugurada em 1914 e outras ruas importantes da capital brasileira.

Nesse mesmo ano, Chiquinha Gonzaga rege a peça Corta-jaca. A maestrina foi a primeira rainha do Carnaval. No ano da Revolução Russa, os poetas Donga e Mauro de Almeida gravam o primeiro samba da história,  “Pelo telefone”. Em 1928 é fundada a primeira escola de samba do Brasil, o Deixa Falar. Meses depois, nasce a Estação Primeira de Mangueira.

O Carnaval se espalha por várias cidades brasileiras: Salvador, Recife, Olinda, João Pessoa,  Natal, Santos. Muitas delas com desfiles de escolas de samba. Nenhuma com a grandeza e a opulência do Rio de Janeiro. Muitos sambistas, letristas, cantores, músicos, dançarinas nasceram no samba e no Carnaval e nele fizeram carreira e expandiram os territórios provincianos e internacionais. A festa nos representa como povo e cultura, rica em imagens e de uma alegria e divertimento únicos.

As escolas cariocas cresceram. O desfile se agigantou cada vez mais. Em 1985, o governador Leonel Brizola construiu o Sambódromo da Marquês de Sapucaí. Criticado pela elite, rejeitado pela Globo, Brizola gostava do cheiro de povo. As arquibancadas da Sapucaí sustentavam os expectadores durante os dez dias de Carnaval. No resto do ano eram uma escola em período integral para os alunos carentes.

Por dois anos, a TV Manchete transmitiu o desfile. O sucesso da “passarela do samba” foi instantâneo. A festa se mundializou e a renda não parava de crescer. Como disse certa vez o carnavalesco várias vezes campeão do desfile, Joãosinho Trinta:

– Pobre gosta de luxo, quem gosta de lixo é intelectual.

A Globo retoma os direitos de transmissão. Em 1991 foi a vez de São Paulo olhar para o futuro da sociedade do espetáculo. A prefeita Luiza Erundina constrói a passarela do samba paulista no Anhembi. Criticada, sofreu com sexismo e preconceitos diversos. Passados 30 anos, Erundina mostrou-se visionária.  As escolas de samba de São Paulo hoje têm um nível de apresentação de excelência.  Profissionais do Carnaval se revezam entre Rio e São Paulo. A Globo transmite ao vivo o desfile das duas cidades da sexta à noite até a terça de madrugada. Outra experiência bem sucedida da capital paulista foram os blocos de rua que proliferaram pela cidade na administração Fernando Haddad. Nos 15 dias que duram os blocos atualmente, São Paulo conta com a presença total de 40 milhões de foliões. E pensar que Vinícius de Moraes, nos anos 60, tascou o apelido de “túmulo do samba” para a capital dos bandeirantes.

A partir dos anos 90, os carros alegóricos passaram a desfilar com atrizes globais famosas. Inconscientemente, as torres separaram os ricos e brancos da comunidade, dos negros e seus pés no chão, se esfolando de tanto dançar e cantar. Como dizia o velho ditado: “Cada macaco no seu galho.”

Muitos intelectuais ainda rejeitam a festa. Algo tão necessário como desprezar o futebol. Religiosos, grupos conservadores, reacionários, falsos moralistas, chatos de plantão, pessoas avessas ao popular detestam o Carnaval, aspergem água benta contra a lassidão de costumes, a volúpia e a vagabundagem dos festeiros. Ah, o céu e suas  boas intenções.

A  GRES União da Ilha do Governador cantou um dos mais belos sambas-enredos da história em 1982. Didi e Mestrinho nos deram um primor de rimas contagiantes e imagens carnavalescas em “É hoje”:

“…A minha alegria atravessou o mar
E ancorou na passarela
Fez um desembarque fascinante
No maior show da Terra
Será que eu serei
o dono desta festa?
Um rei
No meio de uma gente tão modesta
Eu vim descendo a serra
Cheio de euforia para desfilar
O mundo inteiro espera
Hoje é dia do riso chorar…

Seria o Carnaval carioca o maior show da Terra? Será que o mundo inteiro espera? Existem reis e súditos momescos? Qual a necessidade do Carnaval?

Cada uma das 12 escolas cariocas tem de 4.000 a 5.000 integrantes que pulam, cantam e dançam Carnaval com um vigor admirável durante 90 minutos. Às vezes carregando pesadas indumentárias, com sapatos de saltos. Sincronizadas, as diversas alas das escolas de samba promovem um espetáculo de cores, tecidos, adereços, sons, ritmos, fantasias, penas, lantejoulas, dentro de um espaço-tempo predeterminados e em quase perfeita harmonia. Terminado o desfile de uma escola e um batalhão de funcionários deixa a Marquês de Sapucaí impecável novamente. São apresentações que misturam música, canto, danças, requebrados e acrobacias impressionantes. Não há nada no mundo que se compare a esse desfile, uma tradição cultural genuinamente brasileira.

Hoje assistimos festas de Carnaval, bailes, blocos carnavalescos e desfile de escolas de samba em centenas de cidades brasileiras. São mais de cem milhões de foliões, bebês de tarlatana pulando pelo país. Há brigas? Sim. Violência? Sim. Mas como reunir um milhão de pessoas numa rua durante horas e imaginar que todos serão arlequins apaixonados pelas colombinas?

Interessante observar que o preconceito contra a festa popular sai do campo da moral e atinge os cérebros da economia. Chicago Boys, Farialimers, PUC Rio ou FGV – posso estar enganado –, jamais produziram um estudo sobre o tamanho econômico da orgia dionisíaca tropical. Quantos empregos diretos e indiretos são gerados pelo Carnaval? Como ficam a indústria de tecidos, panos, sapatos, roupas, adereços e instrumentos musicais? E a indústria de bebidas? Qual a porcentagem de venda em relação ao ano? E os bares, restaurantes, salões de festas, arquibancadas, hotéis que recebem milhões de turistas? Dá pra pagar uma cachacinha para o chefe? O Carnaval é uma festa rentável e lucrativa, além de ter um potencial de crescimento ainda imenso. A vida é chata e entediante; o Carnaval nos liberta da mesmice cotidiana. Eleva nossa alma, lava com confete e serpentina nosso espírito. O Carnaval é a alegria que não temos ou que perdemos com a esclerose das ideias.

Então, donde vêm tantas críticas? Vêm dos preconceitos generalizados, vêm do racismo, vêm da aversão das elites à pobreza. A festa é vilipendiada porque ninguém quer ver negros e pobres dançando alegremente na TV. Lugar de escravo é na senzala, chorando os rasgos do chicote. Quem não trabalha não vê sentido no lazer, na festa, no descanso. Festa somente se for pra celebrar uma nova fraude. O Carnaval é a possibilidade do lucro em meio a algazarra. Nesta terra nunca se gostou do povo ou da cultura popular. O Carnaval incomoda por não ter dono nem Deus. O ódio de classes transparece nas inversões bacantes. Pois que viva o samba genuíno, pois que fortaleça o Carnaval, pois que celebre-se a carne, o vinho e a vida. O samba jamais irá acabar. Pois, como dizia o samba de Alcione em 1975:

“Quando eu não puder
Pisar mais na avenida
Quando as minhas pernas
Não puderem aguentar
Levar meu corpo
Junto com meu samba
O meu anel de bamba
Entrego a quem mereça usar..

Não deixe o samba morrer
Não deixe o samba acabar.”

É  Carnaval! Viva!

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.

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