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A Conspiração dos Fracassados

Os nazistas desprezavam a democracia, os direitos humanos e a arte. Qualquer semelhança com os golpistas do Brasil não é mera coincidência

Martinho Milani* - História Adversa (Portal Porque)

Ritual de queima de livros durante o governo de Adolf Hitler, na Alemanha. Ecos do ódio à arte e à cultura estavam presentes na conspiração de 8 de janeiro. Foto: domínio público

A cidade de Paris estava vazia. Não havia um carro, nenhuma pessoa, um cachorro sequer. Tudo em silêncio. A cidade das luzes, o epicentro de revoluções contemporâneas, o destino final de artistas do mundo todo, desde o século XVIII, amanhecia sombria no verão de 1940. A urbe era sangrada apenas por um cortejo fúnebre de centenas de soldados alemães, seguindo o carro oficial, um conversível que carregava o arquiteto Alfred Speers, o ministro Joseph Goebbels e o chanceler Adolf Hitler. Paris estava ocupada pelos nazistas.

Hitler desfilou sua trupe sórdida por diversos pontos históricos da cidade. As pontes sobre o Sena, a Champs Elysée, a Torre Eiffel e o Arco do Triunfo. O ódio e o desprezo apareceram quando o grupo avistou o Museu do Louvre. Os nazistas tinham ojeriza à arte ocidental contemporânea, denominada de “arte degenerada”. Apesar do esforço sistemático em preservar o acervo, com o transporte de 4.000 obras para castelos ao norte de Paris, parte considerável foi destruída pelos nazistas, ou mesmo confiscada para venda nos mercados de arte. Os corredores do Louvre estavam vazios, só havia destruição.

Calcula-se que 16.000 quadros, esculturas e peças variadas foram roubadas pelos nazistas de museus europeus. O valor atualizado da pilhagem estaria em US$ 50 bilhões. Existe um belo filme dirigido e interpretado por George Clooney, “Caçadores de obras-primas” (2016). Conta a história real da montagem de um grupo de historiadores da arte e especialistas no mercado artístico que tem como objetivo o resgate das obras de arte, tanto as roubadas quanto as escondidas por franceses.

Os nazistas odiavam judeus e ciganos, desprezavam a arte e a arquitetura contemporânea, execravam a democracia, negavam a cultura ocidental, consideravam os direitos humanos como desprezíveis. A origem desses sentimentos nazistas eram encontradas antes mesmo da formação do partido nacional socialista dos trabalhadores alemães (NSDAP, ou simplesmente partido nazista).

Em 1933, milhares de livros foram queimados em praça pública pelos adeptos de Hitler. A prática continua nos anos seguintes, até que, em 19 de julho de 1937, Adolf Ziegler, presidente da Academia de Artes Germânica, inaugura em Munique a EntarteteKuntz (Arte Degenerada). Mais de 600 obras foram expostas por várias semanas, com milhões de visitantes. Picasso, Kandinsky, Matisse, Paul Klee, Van Gogh, Lasar Segall (que logo depois fugiu para o Brasil), Marc Chagall, entre outros, eram “degenerados”. Entartete (degenerada) foi uma pseudoteoria do biólogo Max Nordaus no fim do século XIX. Ela dizia que os sucessivos cruzamentos entre animais levara a uma degeneração das espécies. Arte e raça estavam interligadas. A pureza ariana também era uma pureza cultural. E o que seria essa arte?

“(…) Os nazistas classificam como ‘degenerada’ (entartet) toda manifestação artística que insulta o espírito alemão, mutila ou destrói as formas naturais ou apresenta de modo evidente ‘falhas’ de habilidade artístico-artesanal. Em termos visuais, é degenerada toda obra de arte que foge aos padrões clássicos de beleza e representação naturalista, em que são valorizados a perfeição, a harmonia e o equilíbrio das figuras. Nesse sentido, a arte moderna, com sua liberdade formal de cunho fundamentalmente antinaturalista, é considerada ‘degenerada’ em sua essência…” (trecho do verbete “arte degenerada” da Enciclopédia Itaú Cultural)

Ray Bradbury publica em 1953 seu primeiro livro. Leitor voraz, ele passou meses devorando livros e escrevendo os manuscritos nas máquinas de escrever públicas da biblioteca de Los Angeles. O livro era “Fahrenheit 451″. Na distopia bradburiana não havia mais livros. O corpo de bombeiros possuía uma nova função: incendiar livros. O título é referência a temperatura necessária para a combustão de um livro. Considerados subversivos, os livros eram queimados e seus leitores eram presos. Uma ditadura sem letras. No filme homônimo (1967 de François Truffaut), o policial Monbeig se apaixona pela jovem revolucionária e junta-se aos rebeldes. Os rebeldes escolhiam um livro para “decorar”. Monbeig escolhe o clássico “Oliver Twist” de Charles Dickens. O livro é mais pessimista. A jovem é atropelada e morre. Monbeig, revoltado, usa o incinerador de livros para matar seus superiores. Premonitório em vários momentos e países do mundo.

O documentário “Arquitetura da destruição” (de Peter Cohen, em 1989) apresenta uma tese. Hitler foi um artista medíocre, rejeitado várias vezes pela Academia de Artes de Munique. Boa parte dos professores e artistas da época eram judeus. Hitler projetou mais um de seus fracassos no povo judeu. Na sua mente doentia, um povo degenerado só poderia produzir um desastre estético. A sandice do Führer ia a tal ponto que ele iniciou a construção de uma imensa Ágora nazista para 500 mil pessoas, toda em mármore. Ali seriam realizados os comícios nazistas por décadas. Depois de 200 anos, a obra teria de ser bombardeada e ficaria em ruínas, para que o III Reich fosse eternizado como a Grécia e a Roma antiga, berço da verdadeira civilização como queriam os nazistas.

Em 27 de fevereiro de 1933, o Reichstag (parlamento alemão) foi incendiado. Verdade ou não, a responsabilidade foi colocada por Hitler nos comunistas alemães. Foi o passo para a instauração da ditadura nazista. No dia seguinte, Hitler publica o “Decreto do Presidente do Reich para a proteção do povo e do Estado”. Na prática, o país estava em estado de sítio, sem remédios como o habeas-corpus, sem liberdade de ir vir e com prisões arbitrárias sem direito de defesa. Nos dias seguintes, mais de 25.000 pessoas foram detidas e torturadas. Mais de 2.000 morreram nas investigações. As porteiras do Apocalipse estavam abertas.

Quando olhamos para o passado não encontramos padrões, modelos ou repetições. A história é sempre única e diversa. Há pontos de verissimilhança, rupturas e esgarçamentos dos laços sociais que nos fazem lembrar o passado. A deusa Clio, patrona da ciência histórica, tem um livro de Tucídedes na mão e na outra uma trombeta. Dizendo para todos: “Conheçam a história, ela se anuncia no passado.”

Essa reflexão é necessária após a “Conspiração dos Fracassados”, a tentativa de Golpe de Estado ocorrida no Brasil no dia 8 de janeiro de 2023.

Desde a eleição de Lula em 30 de outubro de 2022, uma série de atentados à democracia se sucederam, muitos deles com o falso silêncio do derrotado Jair Bolsonaro, outros com a conivência da cúpula da Polícia Rodoviária Federal e de uma minoria de membros do Exército e policiais militares. Financiados por uma rede de empresários, em sua maioria do interior brasileiro (em especial de SP, SC e PR), arregimentando uma multidão de desocupados e muitos criminosos, todos partidários do ódio à democracia, aos direitos humanos e aos três poderes estabelecidos, por meio de uma miríade de robôs que despejam centenas de fake news diárias, levando desinformação e estimulando à violência pessoas que parecem ensandecidas na sua ignorância política.

As semelhanças dos terroristas brasileiros com o terror nazista são muitas, como a aversão à democracia e o anti-culturalismo, além da negação de princípios elementares do Estado de Direito.

A turba que invadiu os prédios que por sua arquitetura e por si só são patrimônios da humanidade, destruindo portas, janelas, estátuas, jardins, lagos, cadeiras, obras de arte diversas, esculturas, relógios centenários, uma Constituição histórica como se aqueles lugares, símbolos dos três poderes (Planalto, STF e Congresso), fossem partes de uma gigante cloaca onde terroristas defecam suas ideias — assim como o asqueroso servidor do banco do Brasil defecou literalmente no Congresso Nacional. Dezenas de obras de valor histórico arquitetônico, estético, foram vilipendiadas, como se o cadáver fosse a própria democracia.

Paradoxalmente, o ataque serviu para unir e sedimentar a força do Estado de Direito. O princípio constitucional de “freios e contrapesos” está cumprido. Poder Executivo, poder Judiciário e poder Legislativo mostraram que são independentes e harmônicos entre si. E que jamais recuarão frente à ameaça de terroristas. A democracia brasileira sai rediviva do 8 de janeiro. Aos criminosos, a cadeia.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.

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