
CRÉDITOS:
Marietta Baderna desceu no Porto do Rio em 1849 aos 21 anos. Bailarina clássica e de sapateado na Itália, aqui incorporou as danças africanas, em especial os batuques angolanos do lundu e a sinuosa arte de movimentar as cinturas com roupas curtíssimas, denominada de umbigada, já que a famosa e desejada barriguinha ficava exposta, como ela aprendeu com as quilombolas.
A sociedade imperial se escandalizava com a artista, mas ela possuía uma legião de fãs: os baderna. Machista como sempre, racista ao extremo, o cidadão e a cidadã do bem a acusaram de todo o tipo de putarias e vilanices (nenhuma delas real, por óbvio). O sobrenome da italiana virou adjetivo, sinônimo de vagabundo.
Saber a origem das palavras nos conta muito sobre os costumes. Perceber a boca que as profere nos ensina demais. Muito mais que saber grego ou esperanto.
Federico Fellini foi cineasta das obras-primas. Amarcord (1973) é, aparentemente, uma leve relembrança da infância do outro italiano famoso. Logo no início, ele nos apresenta a escola fascista e católica da cidadezinha da “Bota”. Fotos para a posteridade. Todos civilizados, amantes da Pátria e do bom costume. E, claro, com Deus acima de todos.
A caricatura dos mestres não é sem sentido. A maioria dos professores que tive em meu período primário no final dos anos 70 (em plena ditadura militar brasileira) nada mais eram do que cópias dos personagens fellinianos.
Autoritários, cegos ao aluno, repetindo conhecimentos sem sentido, obrigando-nos a obter uma mera informação de caráter mnemônico e ausente de conteúdo. Mestres que se protegiam na altura (apenas física) de suas cátedras e com a permissão de nos impor castigos físicos e psicológicos. A humilhação era uma constante. O desestímulo ao estudo era quase total. O aprendizado beirava à nulidade.
Fellini mostra o professor de grego, o de história, a opulenta de matemática ou ainda o padre e seu catecismo de forma hilária e abjeta. Contra o tédio e a falta absoluta de aprendizagem, restava a baderna, a balbúrdia e o menosprezo por uma educação cívica que só deseducava e pretendia criar cordeirinhos, como os balillas fascistas de Mussolini.
Seis anos após, o conjunto inglês de rock progressivo, Pink Floyd, produz uma ópera rock de sons, sentidos, imagens e mensagens contundentes: “The Wall”. A Inglaterra também praticava a pedagogia do opressor.
Na cena em que o idoso professor dá ordens violentas e desrespeitosas ao menino de cabelo alinhado e terninho (não é à toa que a rebeldia do rock explodiu nas ilhas britânicas na década de 60). O menino tem uma visão do sistema e a trilha sonora é a fantástica “Another Brick in the Wall” (assista ao clipe da música no final do post).
Todos os alunos são peças de uma gigantesca engrenagem. São levados por uma imensa esteira rolante, atônitos e aparentemente dopados. Ao final, eles caem numa grande trituradora e transmutam-se em carne moída. Eram apenas um tijolo na parede.
O menino desperta e grita: “– Professores, deixem nossas crianças em paz!”
Estoura uma rebelião na escola. As cadeiras são quebradas, o professor fascista é massacrado. A instituição é incendiada.
Balbo é uma palavra latina que significa pejorativamente gago. Balbúrdia é uma assembleia de gagos, uma barulheira ensurdecedora e ininteligível. Os alunos descritos pelos roqueiros do Pink Floyd só fazem balbúrdia. O professor sádico que apanhava da esposa e despejava seu ódio nas crianças — numa clara vingança contra sua impotência e fragilidade –, fora escorraçado pelos baderneiros.
Mas de que lado está a verdade: de quem tudo arrasta ou das margens que nos oprimem?
A luta contra a tirania, seja ela exercida pelas instâncias da microfísica do poder ou pelo Estado, é sempre um ato justo. Seja ela exercida pelo professor, padre, pai, pátria, patrão ou presidente, não deve ser aceita. A baderna é parte do aprendizado.
A balbúrdia acontece nas ruas, nas atividades extracurriculares, na vida prática. E é nesta esfera da pulsação do dia a dia que o poder sem legitimidade, que se impõe pela força e pela carência de ideias, patina. Ante o medo e a inconsistência de princípios, ele exerce a sua própria balbúrdia: a da incapacidade e da intolerância.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.