
Foto de divulgação do filme realizado em 1981, livremente baseado em fatos reais que ecoam no presente após a invasão da Ucrânia pela Rússia.
A primeira impressão que temos do filme é ilusória; afinal, a presença de dois canastrões como Sylvester Stallone (no auge do saga Rocky) e Pelé não desmerece a história. “Fuga para a vitória” (Escape to Victory, 1981) teve a direção do renomado John Huston (o mesmo de “Paixões em fúria”, “Freud: além da alma”, “Uma aventura na África”, “O pecado de todos nós”, entre outros clássicos) e estavam no elenco os respeitáveis Michael Caine como líder da resistência e Max Von Sydow como o major alemão que tem a ideia da partida de futebol.
O roteiro era ambientado na França ocupada pelos nazistas. O major Steiner (Sydow), ex-jogador da seleção alemã, decide realizar um jogo de futebol dos soldados nazistas contra os prisioneiros de guerra. John Colby (Caine) é um capitão inglês que organiza o time dos aliados e, mais do que isso, pretendia utilizar o match para realizar uma fuga dos atletas-prisioneiros. Colby utilizaria o intervalo da partida para dirigir-se aos subterrâneos do estádio e ganhar a liberdade. Tudo simples e previsível.
Colby não contava com a honra ferida dos prisioneiros-jogadores. Depois de muita pancadaria por parte dos nazistas de uniforme negro e uma derrota parcial – no intervalo –, o goleiro dos aliados (Stallone) propõe que eles terminassem a partida e deixassem a fuga de lado.
O motivo da desistência? Derrotar os alemães no gramado. Pelé, interpretando um jogador “africano”, topa. Os outros imediatamente abraçam a ideia. Não seriam humilhados pelos nazistas. Colby se desespera. A fuga iria fracassar.
O segundo tempo é um espetáculo dos aliados. Talvez um dos melhores filmes de futebol da história do cinema. Osvaldo Ardilles (jogador argentino campeão em 1978) faz um maravilhoso chapéu de calcanhar, Stallone defende bolas difíceis e ao final Pelé faz um gol de bicicleta (estilo Leônidas da Silva) decretando a derrota humilhante dos alemães, mesmo com o árbitro da partida fraudando lances em favor dos nazistas o tempo todo.
O inesperado acontece: a festa pela vitória é tão grande que os milhares de parisienses que assistiam a partida invadem o gramado e carregam os ídolos para as ruas da Cidade da Luz. Incapazes no intuito de conter a multidão, os soldados nazistas veem os prisioneiros fugirem.

Jornal ucraniano de 1942 anuncia o “Jogo da Morte”
Uma das questões cruciais para o historiador é a da verdade e verossimilhança. O cinema eventualmente se apropria de acontecimentos históricos e dá sua versão. E, num certo sentido, é o mesmo que fazem os historiadores, a partir de fatos eles reconstituem o passado, sempre de forma fragmentada e incompleta.
Por isso é tão rica, pois tão densa e contraditória como o homem é a História. Verdade, mesmo, só nos documentários e nestes a visão do autor sempre transparece; nunca é isenta, como nenhuma ciência o é, apesar de certos “autos de fé” acadêmicos. A História deve buscar a verossimilhança, a coerência entre fatos e argumentos. Seria possível uma partida dessa durante o pesadelo nazista? Sim. E ela existiu verdadeiramente.
Em setembro de 1941, a Ucrânia soviética foi ocupada pelos nazistas. Os jogadores do Dínamo de Kiev e do Lokomotiv tornaram-se prisioneiros do regime alemão. Na Padaria de nº 3, Joseph Kordik (um ex-jogador de futebol alemão) propõe aos trabalhadores (a maioria deles atletas dos dois times) que montassem uma equipe para participar de uma liga de futebol organizada pelos nazistas e ucranianos.
Assim nascia o glorioso F. C. Start. Entre junho e agosto de 1942, o time venceu sete jogos por goleada. No dia 6 de agosto daquele ano, eles enfrentaram o Flakelf (time da Luftwaffe alemã e com vários membros da Wehrmacht no elenco). Ao final, nova goleada: 5 a 1 para os ucranianos.
Três dias depois (uma coincidência histórica: anos depois as datas das bombas atômicas foram as mesmas das partidas de futebol, 6 e 9 de agosto), os nazistas exigiram uma revanche. Depois de muita pancadaria, uma roubalheira sem fim para os nazistas (o árbitro era um oficial da SS), o primeiro tempo termina 3 a 1 para os vermelhos de Kiev (no cartaz de Fuga para a Vitória, os jogadores estão com a mesma camisa vermelha do Start, mas no filme eles utilizam uma camisa branca com duas listras verticais finas vermelha e outra azul).

O glorioso F. C. Start original: histórico de goleadas e final trágico para os atletas. (Foto: Wikimedia Commons)
O verdadeiro time ucraniano do Start
No intervalo, os oficiais nazistas entram no vestiário e fazem ameaças: ou a derrota ou a morte. Os prisioneiros sobem o gramado, fazem mais dois gols e vencem os nazistas por 5 a 3. Sete dias depois, o Start vence sua última partida. No mês seguinte, quase todos os atletas foram torturados e faleceram em campos de concentração: um final trágico.
Em 1946, a União Soviética restabeleceu o campeonato de futebol e o glorioso Dínamo de Kiev (de onde vieram a maioria dos jogadores do Start) venceu treze vezes o torneio, tornando-se – eternamente – o maior campeão daquele país que não existe mais.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem.