
Liderados por Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro, o exército guerrilheiro foi conquistando terreno, desde o retorno do exílio forçado em 1956 no barco Grand Mother, até a derrubada definitiva de Batista. Foto: Divulgação
“É meu dever evitar, mediante a independência de Cuba,
que os Estados Unidos caiam com maior força sobre
as outras terras da nossa América. Conheço o monstro
porque vivi em suas entranhas e minha única arma é a
funda de Davi.” (José Martí)
Na segunda quinzena de setembro, o presidente Lula esteve em visita oficial a Cuba. Realizou-se na ilha a Conferência do G77 + China. Criado em 1964 por um grupo de 77 países do Hemisfério Sul, denominados à época pejorativamente de países do “Terceiro Mundo”, em alusão ao Terceiro Estado da Revolução Francesa (1789). O clero seria os Estados Unidos e o mundo industrial; a nobreza, por sua vez, a União Soviética e o bloco socialista.
Porém, muitas lideranças políticas do período adotaram a alcunha e estabeleceram importantes alianças estratégicas. O Terceiro Mundo criou vida própria. Jawarharlal Nehru na Índia, Marechal Tito na Iugoslávia, Gamal Abdel Nasser no Egito, Ho Chi Mihn no Vietnã e Fidel Castro em Cuba, entre outros, lideraram uma identidade ‘nem socialista, nem capitalista’, um orgulho nacional e, ao mesmo tempo, universal em vistas à construção de um modelo diferente para os países do Eixo Sul.
O G77 é formado hoje por mais de 140 países e tem a liderança histórica da Palestina (desde 2020). Lembrando que, a partir de 2003, o Brasil alavancou suas exportações (crescimento de 2,5 vezes até 2016), estabelecendo acordos comerciais, principalmente com o Hemisfério Sul.
Muitos se incomodaram com a visita à “decadente ilha” para estabelecer tratados e acordos com “países miseráveis”. Fala da oposição bolsonarista e da imprensa conservadora. Entretanto, a crítica mais contundente ocorreu em virtude da visita fora do protocolo de Lula a Raul Modesto Castro, o irmão caçula e comunista de Fidel Castro, líder político de Cuba entre 2006 e 2019.
Bastante debilitado, o líder revolucionário de 92 anos foi tratado como um reles ditador latino-americano. Quando somos incapazes de sonhar com a justiça social e adeptos da servidão humana voluntária, menosprezamos os que voam alto. Somos cínicos. Somente para esconder nossa vileza.
Tudo que é sólido desmancha no ar
As ideias socialistas construídas pelo pensamento de Marx e Engels no século XIX e repensadas até a atualidade por diversos autores, também refletiram no continente latino-americano. A grande dificuldade numa emancipação política, econômica e social desse continente sempre foi a existência do vizinho rico mais ao norte: os Estados Unidos.
Com a vitória da Revolução Cubana em 1º de Janeiro de 1959, o socialismo passou a ser a maior bandeira de modificações econômicas e transformações políticas para a região. “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamas.” Nenhuma revolução se faz com luvas de pelica. São grandes saltos históricos que deixam poeira e sangue para trás. Pátria ou Morte, como diz o lema da revolução.
A expansão capitalista teve um alto custo social. Nos finais do século XVIII e início do XIX, germinaram ideias de transformação social e econômica do mundo. A mais importante e que viria a influenciar a História da humanidade no século seguinte foi o denominado ‘socialismo científico’, fruto do pensamento filosófico de Karl Marx, com a colaboração essencial de Frederich Engels.
Marx considerava que a História sempre esteve ligada a uma luta de classes e que o processo de superação das contradições era dialético (afirmação e contradição se confrontam). Marx elegeu o sujeito da transformação social que construiria a sociedade socialista: o proletariado urbano (sendo, portanto, um pensamento materialista e não apenas ideal).
O proletariado teria esse papel por ser a maioria explorada na sociedade de classes. Dotada desse espírito histórico, cabia a classe trabalhadora a conscientização do processo de exploração capitalista por meio da formação política permanente e da práxis revolucionária, ou seja, derrubar mesmo que a força a classe burguesa.
Em seu livro mais importante “O Capital”, Marx teoriza sobre a origem da exploração: a mais-valia, ou o trabalho não pago pela burguesia, a classe social que mesmo sendo minoria, acumulava o capital por ser a proprietária privada dos meios-de-produção.
Outra característica da sociedade burguesa era a existência de um exército industrial de reserva, na prática uma grande massa de desempregados necessárias ao aviltamento salarial e precarização do trabalho. A organização da classe operária em sindicatos, partidos políticos e exércitos revolucionários eram essenciais para a derrubada do Estado burguês e a instauração do Estado proletário.
Grand Mother
A revolução sempre gozou de legitimidade, enquanto via de transformação política e social na América Latina. As ideias socialistas avançaram pelo continente desde o final do século XIX, mas foi somente após a Revolução Russa (1917) que adquiriram uma força incontestável. O ponto nevrálgico para uma revolução no continente, por sua vez, foi o caso cubano em 1959.
Cuba era um país latino-americano tradicional: subdesenvolvido e dependente economicamente dos Estados Unidos,com uma concentração fundiária vergonhosa e que apresentava indicadores sociais lastimáveis (com elevadas taxas de analfabetismo, mortalidade infantil e uma brutal desigualdade social).
Na década de 1950, o governo estava nas mãos de um ditador testa-de-ferro norte-americano, Fulgêncio Batista. Um ditador corrupto e sanguinário que transformara a ilha num centro de tráfico, prostituição e jogos de azar.
Liderados por Fidel Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Raul Castro, o exército guerrilheiro 26 de julho foi conquistando terreno, desde o retorno do exílio forçado em 1956 no barco Grand Mother, até a derrubada definitiva de Batista em 1º de janeiro de 1959.
Impregnava-se nas mentes latino-americanas o grande norteador das tentativas revolucionárias que dominaram o continente a partir da década de 1960. Um país pequeno e próximo aos Estados Unidos derrotara o capitalismo. A inspiração pela via cubana era o fato de ter ocorrido nas ‘barbas do inimigo imperialista ianque’.
Aos poucos o isolamento cubano, decorrente do embargo norte- americano (1960),em represália ao processo de nacionalização e estatização de sua economia, foi empurrando o país para o lado soviético, pois por causa dele, qualquer nação aliada dos Estados Unidos estava proibida de comercializar com a ilha cubana. A tentativa de invasão da baía dos Porcos (1961) por soldados oposicionistas cubanos com apoio e financiamento dos Estados Unidos foi o estopim para a escolha pela via socialista.
Dois anos depois da invasão, Fidel decidira junto ao líder soviético, Nikita Krucheva, a instalação de mísseis soviéticos direcionados aos Estados Unidos. Estourava a ‘Crise dos mísseis’, que quase colocou o mundo em sua 3ª guerra mundial.
A sovietização da ilha foi acelerada, afastando o desiludido Che Guevara do país. O farol cubano começava a desagradar uma parte da centro-esquerda. O médico e economista argentino Ernesto Che Guevara, o revolucionário mais importante da América Latina, depois de passar pelo Congo treinando os soldados de Kabila, volta a América Latina fazer a revolução em todo o continente e termina assassinado pelo exército boliviano em 1968.
Che Guevara desenvolveu uma teoria para a introdução do socialismo na região conhecida como foquismo. Para Marx, a revolução ocorreria numa nação industrializada do mundo rico. Então como fazer o socialismo numa sociedade pobre, periférica e quase agrária?
O foquismo pode ser resumida em três preceitos:
I. as forças populares podem, por meio de uma guerra de guerrilhas, derrotar o exército regular;
II. nem sempre é necessário esperar que estejam reunidas todas as condiçõesobjetivas para fazer a revolução: o foco insurrecional pode fazê-las despertar (sendo importante o apoio popular). Daí o foco na Sierra Maestra;
III. o terreno da ação revolucionária na América Latina subdesenvolvida está no campo.
Por toda a América Latina nasceram movimentos foquistas para transformar a ‘cordilheira dos Andes na Sierra Maestra do continente ’. No Brasil, no final da década de1960, a resistência à ditadura militar fragmentou-se e um lado passou a defender a necessidade da luta armada para derrubá-la.
O foquismo guevarista serviu como indicador para a guerrilha urbana no Brasil e, posteriormente, também para a guerrilha rural do Araguaia. Porém, um de seus defeitos foi o de não respeitar um dos princípios foquistas: o apoio popular, pois a maior parte da população brasileira ou desconhecia os ideais revolucionários, ou mesmo se opunha a eles.
A história me absolverá
A experiência cubana contou com a simpatia de boa parte dos intelectuais e políticos de esquerda da América Latina e do mundo. Os críticos alegavam existir uma série de violações aos direitos humanos, a falta de liberdade de imprensa e a ausência de democracia.
Havia conquistas sociais nas áreas da saúde, educação, trabalho, moradia, esportes. Os subsídios indiretos soviéticos (Moscou comprava o açúcar cubano acima do preço de custo e vendia seu petróleo abaixo do custo de produção), permitiam um crescimento econômico com ampla distribuição de renda, mesmo com o embargo econômico.
Com o fim da aliança comunista no leste europeu e o processo de democratização (glasnost) e das reformas econômicas (perestroika), entre 1984 e 1991, Cuba perdia parte considerável do importante mercado do mundo socialista, desnudando a fragilidade de sua economia.
O setor mais atingido da economia cubana foi o energético. Por ser estratégico, debilitou a produção do país como um todo. Racionamento elétrico (o ‘apagón’), a produção agropecuária que não conseguia chegar às cidades e a falta de remédios foram alguns exemplos da extensão da crise.
Milhares de cubanos atiravam-se nas águas do Atlântico (ficaram conhecidos como balseros) em direção aos Estados Unidos para fugir da miséria que assustava a população. Em 1994 milhares de jovens saíram as ruas protestar contra o regime. A primeira vez após 35 anos da Revolução. Ficou conhecido como “Melaconazo”.
As dificuldades econômicas enfrentadas por Cuba levaram Fidel a iniciar um lento processo de abertura comercial e econômica, mas a exemplo da China, sem a democratização política. Depois de 4 anos de declínio econômico (o PNB cubano decaiu 15% nesse período), as reformas revitalizaram a economia ao permitir a entrada de multinacionais, principalmente no setor de turismo.
Passou também a aceitar a presença de iniciativas privadas, como os paladares (restaurantes caseiros por quilo), os táxis particulares e o comércio do rum e do tabaco feito por cubanos para os turistas que visitam ao país. Todas estas atividades eram privilégios do Estado.
O jornalista Fernando Morais ficou famoso ao publicar, em 1975, o livro “A ilha”, sobre sua experiência de mais de três meses na Cuba socialista. Com um olhar simpático à ilha de Fidel, Morais descrevia a vida no país socialista a menos de 100 milhas dos Estados Unidos.
Privilegiando o setor social, Cuba exibia índices invejáveis para o continente assolado pela fome, miséria, atraso econômico e concentração de renda. O analfabetismo praticamente desaparecera, a mortalidade infantil era a mais baixa (semelhantea japonesa) e o número de médicos por habitante era o mais elevado da América Latina.
A diferença de renda entre os mais ricos e os mais pobres no país também se aproximava dos índices dos países mais desenvolvidos socialmente. A maior parte das famílias possuia uma habitação para morar (o déficit habitacional no Brasil de hoje é de 20 milhões de famílias, ou 75 milhões de pessoas).
Em 1996, Morais retornou à ilha após o fim do socialismo no leste europeu e o lento processo de abertura econômica introduzida por Fidel Castro. Seu olhar tornou-se um pouco mais crítico. Descreve a preservação das conquistas sociais, mais discorda da persistente falta de democracia política no país e o desrespeito às minorias sociais (o homossexualismo ainda era considerado como crime no país).
Meses depois da visita, o Congresso norte-americano de maioria republicana finca mais uma estaca no embargo econômica: a aprovação da Lei Helms-Burton. Segundo ela, a nação estrangeira que investisse em Cuba deixaria de receber investimentos norte-americanos em seu país.
Imediatamente, Espanha (que construía 8 resorts na ilha caribenha), Canadá e México paralisaram todos os negócios com Cuba. O desastre não foi pior por conta de investimentos chineses e nos anos 2000 de países latinos com governo de esquerda como a Venezuela, o Brasil e o Equador.
Após 49 anos no poder, Fidel Castro se afasta do poder em Cuba em 2008. Em seu lugar assume o irmão mais novo, Raul Castro. Os conservadores criticavam a “monarquia cubana”. Equívoco histórico crasso. Raul Castro sempre foi filiado ao Partido Comunista Cubano. As bases teóricas marxistas-leninistas da Revolução adotadas a partir de 1961, vieram de Raul. Fidel era o maior líder popular, o mais carismático, mas que aderiu ao pensamento socialista tardiamente (entrou no Partido Comunista em 1960).
Além disso, devemos lembrar que Raul Castro, Che Guevara, Camilo Cienfuegos e Fidel Castro eram comandantes revolucionários. Dessa forma, fica cristalino que Raul era o sucessor natural em termos políticos.
No governo Raul a aproximação com a China se consolidou, incluindo a perspectiva futura de transformar Cuba numa espécie de Zona Econômica Especial (como ficaram conhecidas as zonas de livre comércio que alavancaram o desenvolvimento chinês a partir de 1979).
Porém, foi um processo lento demais, afinal a sombra de Fidel Castro ainda pairava sobre o país. Foi só a partir de 2016, com o falecimento de Fidel que Raul Castro pode governar sem interferências.
Duas visitas marcaram os tempos de transformações pelas quais passaria Cuba. A primeira foi a visita do Papa Francisco. Cuba era um país laico e oficialmente ateu desde 1959. A igreja católica, predominante antes da Revolução de 1959, quase desapareceu. A presença do Papa trouxe de volta a liberdade de culto ao país.
Naquele mesmo ano, depois de mais de 60 anos, um presidente norte-americano faz uma viagem oficial a ilha socialista. Barack Obama, sua esposa Michele, as duas filhas do casal passaram 3 dias em Cuba.
Obama participou de diversas reuniões protocolares, incluindo uma que previa o fim do embargo econômico em poucos anos. O que chamou a atenção foram os vários passeios pelas ruas e casas e monumentos cubanos, não só de Obama, mas de toda a sua família.
Em 2019 Raul Castro, quase nonagenário se afasta do poder e entrega a liderança política ao engenheiro eletrônico e político comunista Miguel Diaz-Canel. Canel nasceu em 1960, portanto é o primeiro governante “ filho da Revolução”. Vem enfrentando uma sucessão de crises que empobreceram absurdamente o país.
A primeira delas foi causada pelos Estados Unidos. Menos depois de dois anos da visita de Obama, Donald Trump é eleito presidente do vizinho hegemônico. Trump adota uma série de medidas que retrocedem aos piores momentos do embargo econômico.
Para piorar a questão do isolamento, o Brasil de Jair Bolsonaro quebra uma tradição de investimentos em Cuba e nosso país passa a seguir a cartilha estadunidense. A Covid foi enfrentada de forma exemplar no país. Em 3 anos de doença, apenas 1500 pessoas perderam a vida na pandemia. Canel investiu no isolamento total do país e na elaboração de uma vacina própria que, por falta de recursos para a fabricação, não foi suficiente para aplicação em massa.
O fechamento das fronteiras teve um reflexo brutal sobre a principal atividade econômica do país: o turismo de estrangeiros. O setor quase parou e os dólares vindos do exterior desapareceram, resultado: pouca moeda e comercialização das existentes no mercado negro, produzindo uma inflação de 45% ao ano (detalhe que a variação de preços entre 1960 e 2015 foi de 20%).
Os negócios privados, responsáveis por 20% do mercado cubano e dependentes dos turistas estrangeiros, ficaram à míngua. Desde 2021, o protesto de jovens pelas redes sociais e pela música tem exigido o fim do regime.
O rap “ Pátria ou Vida”, vencedor do Grammy latino, virou um hino revolucionário e democrático. No ano passado ocorreu mais um capítulo da crise cubana: a invasão da Ucrânia. O país de Zelensky era o principal fornecedor de gás para Cuba, sua principal fonte de energia. Cuba paga muito mais hoje de outros fornecedores. Canel enfrenta a maior crise da história cubana, a ponto de haver dúvidas se a Revolução comemorará seus 65 anos em 1º de janeiro de 2024.
Foi nesse contexto atual que ocorreu a conferência do G 77+ China em Cuba. O Brasil defende uma ajuda substancial, social e humanitária a Cuba, além do fim definitivo do embargo econômico. A absurda crítica a visita não protocolar de Lula a residência de Raul Castro é abjeta. Raul foi um dos mais importantes líderes revolucionários da história latino-americana, homem de armas, teoria e prática política. Protagonista da mais importante experiência social e política da América, o socialismo cubano.
Claro que há críticas e defeitos nesses 65 anos de história, mas os avanços no campo social, humanitário, nas áreas da saúde, educação e práticas esportivas é venerável. Não podemos jogar o bebê e a água fora pela janela.
Por último cabe lembrar que Raul está bastante doente e nos seus longevos 92 anos. A visita de Lula, além de simbólica é humanitária, merece aplausos e não pedras. Os homens costumam esquecer a História. Lula não a esqueceu.
*Martinho Milani é professor de história, filosofia e geografia, doutor em história econômica e mestre em história da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem