
O mundo do esporte reconhece a importância de Hortência, que foi parar no Hall da Fama nos Estados Unidos: maior jogadora de basquete que já existiu. Foto: Divulgação
As categorias de base do basquetebol eram divididas por idade. Com 16 anos eu jogava na categoria infanto-juvenil pela Associação Desportiva Classista Minercal. Naquele ano, a empresa decidiu investir pesado no basquete feminino. Trouxe meia dúzia de excelentes jogadoras e ela, a rainha das quadras: Hortência Marcari. Dona de vários títulos e muitas cestas, a moça de Potirendaba passou oito anos em Sorocaba. Ganhou tudo o que se possa sonhar no esporte coletivo.
O técnico da equipe fazia alguns treinos pesados para as mulheres da Minercal. A estratégia era botar elas para treinarem contra os homens. Não os adultos, nós do infanto-juvenil. Deraldo, nosso técnico, avisou: “Como você é o melhor marcador, pega forte e tem 1,88m, vai marcar a Hortência”. Ali eu tremi. Hortência e a piracicabana Paula eram duas lendas do basquete feminino, mesmo antes de conquistaram todos os títulos possíveis nos dez anos seguintes. A gente só queria estender um tapete vermelho no chão para que elas desfilassem. Sentaríamos na arquibancada e ficaríamos aplaudindo as jogadas. Para nós, jovens aspirantes a jogadores, Hortência era uma miragem, algo quase sobrenatural.
Entrei na quadra do Ginásio de Esportes Gualberto Moreira, localizado no bairro dos espanhóis sorocabanos, coincidentemente de nome Vila Hortência. Procurei a ala-armadora. Cumprimentei envergonhado e começaram os treinos. Mais leve e dez centímetros mais baixa do que eu, ela corria de lado a lado, com uma velocidade fora do comum. Voava com ou sem a bola. Eu tentando acompanhá-la, suando feito doido. Às vezes a jogada era do outro lado. Eu ficava só na incumbência em impedi-la de passar. Era o instante que bastava pra perceber que ela era de carne e osso.
Usava uma botinha Adidas. As meias longas chegavam perto dos joelhos. Magra e longelínea, ela tinha os braços grandes. No rosto, a bela cabeleira loiro-escuro, amarrada no inconfundível rabo-de-cavalo. E os olhos – que jamais vi igual -, eram a marca dos fenômenos do esporte, como ela. Não olham para você, não olham para o jogo, parecem distantes, fora da própria pessoa. Olham para o infinito, para o indescritível. Vemos isso na Hortência, na Paula, num Jordan, num Magic Johnson, Larry Bird, na dupla Oscar e Marcel. Um olhar sem ver. Como o de um animal caçador as beiras de destroçar sua presa.
Hall of Fame
O mundo do basquete reconhece a importância de Hortência. A maior jogadora que já existiu foi para o Hall da Fama nos Estados Unidos. O discurso da homenageada é de um primor e extremamente poético. Leia trecho extraído da página oficial da ex-jogadora:
“Meu nome é Hortência. É. Eu tenho nome de flor. Nasci no dia 23 de setembro, dia que no Hemisfério Sul se comemora a entrada da Primavera, a estação das flores. Nasci numa cidade do interior do país que se chama Potirendaba, que na língua dos índios quer dizer ‘Cesta de Flores’. E passei a vida buscando a cesta. Uma menina pobre, com nome de flor, nascida na entrada da Primavera, numa cidade chamada Cesta de Flores”.
A precariedade estatística e (falta) de memória desportiva do país impressionam. Esse articulista tem sofrido toda vez que escreve sobre esporte. O descaso, a falta de dados e arquivos sem informações são a regra. O basquete feminino se mostrou vergonhoso. A única estatística completa é a participação de Hortência na seleção brasileira. Foram 127 jogos e 3.160 pontos no total. A maior cestinha da história do basquete brasileiro. E só. Nada sobre atuação em clubes. Por aproximação cheguei aos seguintes dados:
Critérios Técnicos para Aproximação:
1. Jogos Regionais — O nível de disparidade entre as equipes/cidades é grande. Avaliei que 35 pontos por partida seria normal. Hortência disputou 11 torneios com média de quatro ou cinco jogos;
2. Jogos Abertos — Metade do torneio com disparidade, fases finais complicadas. Calculei 32 pontos por jogo. Mesmo número de torneios e jogos dos Regionais;
3. Amistosos — Cerca de 30 jogos. Caráter festivo, mais livre. Média de 35 pontos;
4. Paulista — O mais difícil dos torneios regionais. Ela disputou 20 edições. Venceu oito e foi vice em cinco. Em média eram dez equipes. 24 jogos por edição, 25 pontos por jogo;
5. Taça Brasil — Entre 1984 e 1994 foram 11 torneios. Em geral com 18 jogos. Alguns times bem fracos. Média de 27 pontos;
6. Sul-Americano de clubes — Participou de dez edições. Cinco jogos em cada uma. Média de 28 pontos;
7. Mundial de Clubes — Três torneios. Três títulos. 18 jogos. Média 26 pontos.
Contagem:
Jogos Regionais 45 jogos — 1.525 pontos
Jogos Abertos: 45 jogos — 1.440 pontos
Seleção Brasileira: 127 partidas — 3.160 pontos;
Campeonatos Paulista: 480 jogos — 12 mil pontos;
Sul-americanos e Mundiais Interclubes: 68 jogos — 1.868 pontos;
Campeonatos Brasileiros: 198 jogos — 5.346 pontos;
Amistosos: 30 jogos — 1.050 pontos.
Número de pontos na carreira (estimado): 26.389
Partidas (estimado): 993
Média de Pontos por partida: 26,57
Muito? Lembrem-se que nos Jogos Regionais de Ourinhos, ela fez 124 pontos contra a pobre Itapetininga. Ah, isso é um torneiozinho. Hortência anotou 55 pontos na final do 1° Campeonato Mundial Interclubes. Quer mais? Hortência quebrou tabus ao posar nua para a revista Playboy.
124 Pontos num jogo. Lenda?
Jogos Regionais realizados na cidade de Ourinhos, em 1987. O basquete de Hortência & Sorocaba iria enfrentar a seleção de Tietê. Valia vaga nas semifinais. O ginásio da cidade estava abarrotado. As ruas no entorno também. Todos saíram de casa para ver Hortência. Na partida anterior, o time de vôlei da cidade não teve adversário. O famoso WO. Espertamente, os dirigentes de Tietê pressionaram e o árbitro autorizou o aquecimento antecipado das atletas de Tietê. O ônibus de Sorocaba nada sabia. Tentava se desvencilhar dos milhares de torcedores da seleção sorocabana pelas vizinhança do ginásio. Quando as atletas entraram em quadra era 20h45. Um quarto de hora para o início da partida…não fosse a antecipação. Poucos minutos antes, com a invenção do novo horário, Tietê derrotara Sorocaba por WO. A revolta estourou entre as jogadoras e nas arquibancadas. “Como assim não terá jogo da Hortência?” Um diretor esportivo teve a ideia salvadora: Sorocaba jogaria contra Ourinhos. Um time de marmanjos. Tomaram um pau das mulheres. Vanira conta que, no dia seguinte, nenhuma jogadora queria enfrentar Itapetininga pelo 5° lugar no torneio, mas Hortência insistiu na participação e Itapetininga pagou a conta. Placar final: Sorocaba 251 x 36 Itapetininga. Hortência jogou 30 minutos e fez assustadores 124 pontos. Tivesse disputado o jogo todo e teria passado dos 150 pontos. É a segunda maior pontuação da história. Perde para os 136 pontos da israelense Anat Dargo na partida da equipe veterana Dargo contra um time amador. O jogo foi 148 a 112. Valia pela 3ª Divisão veterana e amadora de Israel. Esse “recorde” que está no Guiness.
Títulos foram dezenas:
* Campeã paulista (1980 e 1981 por Catanduva; 1982 e 1983 pela Prudentópolis; 1987, 1988, 1989, 1990 pela Minercal de Sorocaba; 1991 na Constecca de Sorocaba e 1993 na Ponte Preta de Campinas);
* Campeã Brasileira (1984 – Prudentina; 1987 e 1989 – Minercal; 1991 – Constecca; 1992, 1994 e 1995 – Ponte Preta);
* Campeã Sul-Americana (1983 e 1984 pela Prudentina; 1993 e 1996 pela Ponte Preta);
* Tricampeã Mundial de Clubes (1991 no primeiro mundial da categoria jogando pela Constecca/Sedox de Sorocaba e em 1993 e 1994 pela Ponte Preta de Campinas).
Fora os seis Jogos Regionais e quatro Jogos Abertos do Interior. Na grande maioria das finais, Hortência enfrentava o time da fenomenal Paula. As duas arrastavam multidões pelo Brasil. Eram duas estrelas com justiça. Numa dessas partidas, com cinco mil pessoas lotando o ginásio, nosso timinho infanto-juvenil fez a abertura. A gente se sentia famoso, mas mesmo vencendo com facilidade, as vaias começaram no fim do segundo tempo.
Ninguém pagava ingresso pra ver dez adolescentes desengonçados. O povo estava ali pra ver a Rainha do Basquete. Eleita para o Hall da Fama Feminino em 2002, para o Hall da Fama Geral, em 2007, ao lado de Michael Jordan. A “White Jordan”, como apelidaram os reis do basquete. Eleita melhor jogadora dos campeonatos mundiais de seleções pela FIBA, em 2017. Hortência valia mil ingressos com seu jogo de velocidade, fintas em um átimo, passagens por trás do garrafão e tiros 90% das vezes certeiros.
Nos clubes, Hortência e Paula só estiveram juntas uma vez: no título mundial da Ponte Preta em 1993. Mas na seleção brasileira formaram uma dupla que colecionou títulos e glórias. Foram três títulos sul-americanos, Em Pan-Americanos foi um bronze, uma prata e o histórico ouro em Cuba (1991), massacrando as favoritas norte-americanas e recebendo as medalhas e os galanteios de Fidel Castro. Ganharam a medalha de prata na Olimpíada de Atlanta em 1996. E o maior título de todos: campeãs mundiais de seleções em 1994. Para se ter uma ideia do tamanho desse título, em 20 campeonatos até hoje, os Estados Unidos ganharam 12, a extinta União Soviética venceu seis e a Austrália, em 2006.
Hortência parou de jogar em 1995. Falava alto o sonho de ser mãe. Em 1996, aceitou uma breve volta às quadras, com o filho João Victor no colo. Ganhou a prata olímpica. Exatas duas décadas jogando e parou no auge. Virou empresária do esporte. Ganhou respeito fora das quadras. A menina das cestas de flores enjardinou o mundo.
Todo atleta fenomenal tem uma marca. A de Hortência não era o número 4 da camisa. O que a diferencia e a resume como atleta era o lance livre. Hortência posicionava-se com os dois pés na linha de lance livre. Batia a bola na quadra com força por algumas vezes e segurava a pelota. Olhava para o aro fixamente. Dava um imenso suspiro, do tamanho que distancia nós mortais, deles, os deuses. Abria os olhos e lançava a bola, girando à perfeição.
Cesta! Cesta dela, a Rainha do basquete. A maior jogadora de todos os tempos.
*Martinho Milani é professor de história, filosofia e geografia, doutor em história econômica e mestre em história da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem