
‘Pode ser coincidência, mas também pode ter relação com alguma quadrilha’, afirma a advogada Emanuela Barros. Foto: Arquivo Pessoal
A contratação no Amazonas de duas indígenas para trabalhar como babás em Sorocaba em épocas diferentes, mas pela mesma família, chamou a atenção da advogada Emanuela Barros. Ela, então, pediu à Justiça Federal a abertura de investigação para apurar possível atuação de uma quadrilha especializada em tráfico humano conectando Sorocaba a Manaus, capital do Amazonas.
Emanuela representa uma das babás em processos contra os antigos empregadores por trabalho análogo à escravidão e assédio sexual. A suspeita de tráfico humano, segundo a advogada, surgiu da complicada logística para a contratação das indígenas.
“Eu não acho normal isso. É muita coincidência que duas mulheres indígenas do Alto Rio Negro tenham vindo a Sorocaba para trabalhar em situação análoga à escravidão. Pode ser coincidência, mas também pode ter relação com alguma quadrilha. Por isso, estamos pleiteando uma investigação”, explica.
De acordo com depoimento da babá à Polícia Federal, ela ficou sabendo do emprego por meio das redes sociais e decidiu se candidatar porque queria deixar sua aldeia para estudar na cidade de São Gabriel da Cachoeira. Só foi informada que seria em Sorocaba quando chegou ao endereço do anúncio e recebeu passagens para a viagem de uma mulher que intermediou a contratação.
A viagem
Maria, nome fictício da cliente de Emanuela, que está sob proteção judicial em Sorocaba, começou a trabalhar com o casal em setembro de 2021. Para chegar a Sorocaba, ela tomou uma embarcação em sua aldeia no Alto Rio Negro até São Gabriel da Cachoeira, considerada a cidade com maior população indígena do Brasil, onde vivem cerca de 28 mil indígenas de 23 etnias que falam quatro idiomas – nheengatu, tukano, baniwa e yanomami.
Em São Gabriel, Maria pegou uma embarcação que desce o Rio Negro até Manaus em aproximadamente 48 horas de viagem. De Manaus chegou a Campinas de avião, onde foi recebida pelo casal sorocabano que pagou suas passagens.
Em fevereiro deste ano, depois de 18 meses de trabalho acumulando os serviços de babá e doméstica, em jornada que passava de 12 horas diárias, Maria pediu demissão e foi morar com uma vizinha de apartamento que a colocou em contato com a advogada Emanuela.
A denúncia
Em depoimento à Polícia Federal, em março passado, Maria contou que ao chegar a Sorocaba encontrou outra indígena do Amazonas trabalhando com o casal e, por algum tempo, compartilharam os serviços. Disse ainda ter relatado para a colega que estava sendo assediada pelo patrão e ouviu que a colega sofrera o mesmo.
No primeiro mês no emprego, Maria relatou que recebeu R$ 700 em duas parcelas. Um ano depois, o salário subiu para R$ 800. Não tinha folga em fins de semana e trabalhava das 7h às 23h. Quando começou a estudar à noite, permitiram que interrompesse o trabalho, desde o retomasse na volta do curso.
A indígena disse que contou à esposa do patrão sobre os assédios, mas não adiantou e ele chegou a instalar uma câmera no seu banheiro. Quando interrogados pela PF, marido e mulher confirmaram a acusação da babá, mas mesmo assim o Ministério Público Federal chegou a pedir o arquivamento da denúncia por entender que o assunto tinha se esgotado na esfera do Ministério Público do Trabalho, quando o casal aceitou pagar uma indenização de R$ 20 mil a Maria.
A decisão
O juiz Pedro Henrique Meira Figueiredo, substituto da 2ª Vara Federal de Sorocaba, recusou o arquivamento e devolveu o inquérito para o MPF. “Os fatos apresentados são de fácil constatação e, uma vez ouvida todas as testemunhas e as vítimas, verificou-se a prática do crime aqui apresentado. Sendo, portanto, totalmente descabido o pedido de arquivamento realizado pelo Ministério Público”, julgou Figueiredo em 22 de agosto passado.
“A própria força-tarefa realizada pelo Ministério Público do Trabalho constatou que havia sim submissão da trabalhadora doméstica à condição análoga à escravidão, tendo como fator determinante para esse enquadramento as condições degradantes do trabalho, jornadas de trabalho excessivas, não pagamento do salário mínimo legal à trabalhadora e, ao contrário do afirmado pelo MPF, a vítima dormia no chão, por isso não gozava das mesmas condições de seus empregadores e ainda sofreu assédio sexual tendo o acusado confessado tal prática, degradando por completo o ambiente de trabalho”, sentenciou Figueiredo.
De acordo com a advogada Emanuela, atualmente Maria está aguardando o andamento dos processos enquanto frequenta um curso profissionalizante sob medida protetiva, uma vez que corre risco de ser coagida pelo casal que está denunciando.
“A medida protetiva determina o afastamento do agressor, proíbe que frequente os mesmos lugares e que mantenha contato presencial ou virtual para garantir a sua segurança”, conclui Emanuela.
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