Busca

A grande loucura é não viver

A história é feita de grandes sonhos. O comodismo e a falta de ousadia transformam a vida em algo monótono e sem sabor

Martinho Milani* - História Adversa (Portal Porque)

‘Sancho Pança pede a Dom Quixote que lhe dê a ilha prometida’ (1863); iIustração de Gustave Doré para “Don Quixote“ de Miguel de Cervantes. Foto: Wikimedia Commons

Se eles têm três carros, eu posso voar
Se eles rezam muito, eu já estou no céu
Mais louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
Eu juro que é melhor
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu
Sim, sou muito louco, não vou me curar
Já não sou o único que encontrou a paz…

Arnaldo Baptista e Rita Lee escreveram a música “Balada do louco” em 1972. No capitalismo, a felicidade está no consumo. Nas antigas igrejas, o paraíso viria após a morte. Mas a cura está na loucura. Ser insano num mundo egoísta, onde charlatões infestam as redes sociais com a Lei da Atração. Como se esta fosse a quarta Lei de Newton. Imagine-se próspero e sua carteira se encherá de dólares. Projete sua felicidade e logo estará a saltitar como um filhote de cachorro. Como na música: mais louco é quem me diz.

Não há romance mais famoso do que “Dom Quixote de la Mancha”. Publicado quase cem anos depois da alegoria satírica de Erasmo de Roterdã, “Elogio da loucura”, a obra de um aparente devaneio é, em verdade, um tratado do Humanismo, de ontem e atual.

Nascido no dia de São Miguel Arcanjo, filho de um médico e uma proprietária de uma fazenda, o menino recebe o nome do santo. Aos 24 anos tem de fugir de Alcalá, sua cidade natal, próxima a Madrid. Publica quatro poemas. Se alista no exército da Invencível Armada de Espanha. Depois de algumas batalhas é ferido e aprisionado em Argel, onde passa cinco anos.

Judeu de nascença, criado num país ultracatólico, no cárcere ele tem a oportunidade de estudar a cultura muçulmana. Em 1581, tem sua primeira filha com a amante Ana e se casa com Catilina, acompanhando a esposa até as terras da família dela em La Mancha. Passa a viver de trabalhos burocráticos nas cortes castelhana e depois lusa (tempos da União Ibérica). Lança sua primeira novela em 1585. Até 1597 escreve pequenas peças de baixo valor literário.

Endividado, é preso novamente entre 1597 e 1599. Na cadeia, tem a inspiração para um romance. Aos 58 anos de idade, Miguel publica seu primeiro livro por uma editora. “A história do engenhoso fidalgo Dom Quixote de La Mancha”. Uma revolução literária até hoje, um romance que constrói a língua castelhana. Um dos mais belos painéis da alma humana.

Cervantes era um “marqueteiro”. Prometeu, desde o primeiro dia, uma segunda parte. Dialogando com leitores e com o mundo em que vivia, o livro “O engenhoso cavaleiro Dom Quixote ” sai dez anos depois e retoma a narrativa a partir da informação dada para Quixote por Sancho Pança de que eles tinham se tornados famosos e que havia um romance narrando as aventuras dos dois.

O mote era verdadeiro, porque um autor desconhecido lançara anos antes uma falsa segunda parte do maior livro de todos os tempos (segundo eleição da Academia Sueca de Literatura, que escolhe o Nobel). Cervantes, entre os 58 e 68 anos, escreveu “Novelas exemplares”, livros de contos, poemas, dois romances publicados postumamente e a segunda parte de “Dom Quixote”.

Cervantes é Quixote. Sua morte acontece no mesmo dia 8 da passagem de Shakespeare (23 de abril de 1616), e pouco após o lançamento da segunda parte de “Quixote”, com o autor e o personagem, cansados das aventuras e dos sonhos realizados, se despedindo da vida. Cervantes nunca esqueceu os tempos de soldado. Miguel era leitor voraz de histórias de cavalaria. Quixote não permitiu que a idade o ferisse de morte. Talvez confirmando as palavras de Sancho Pança perante a morte iminente do Cavaleiro da Triste Figura:

— Ai! – respondeu Sancho Pança, chorando – não morra Vossa Mercê, senhor meu amo, mas tome o meu conselho e viva muitos anos, porque a maior loucura que pode fazer um homem nesta vida é deixar-se morrer sem mais nem mais, sem ninguém nos matar, nem darem cabo de nós outras mãos que não sejam as da melancolia.

A “Loucura” de Erasmo de Roterdã é uma pessoa que dialoga de forma crítica e satírica com a sociedade católica em crise do século XVI. Tempos da famosa “nau dos insanos”, descrita por Michel Foucault em “História da loucura”.

Para o filósofo francês, não só os loucos eram levados aos barcos que sangravam os rios europeus. Quem eram os loucos do passado? Quem definia o que era insanidade? O homem e a mulher eram agora a medida de todas as coisas. O mundo se enche de capitalismo, se urbaniza. Os laços medievais vão sendo desfeitos pouco a pouco. Adaptar-se em fases históricas de transição é sempre difícil. Todas as coisas estão fora do lugar. A sanidade pode ser um veneno.

Alfonso Quijano é um fidalgo de meia-idade, dono de uma propriedade mediana de terras. Certo dia acorda acreditando ser um nobre cavaleiro medieval e sai em busca de aventuras. Ele agora é Dom Quixote de la Mancha, montado em seu garboso cavalo Rocinante (um pangaré velho e alquebrado como o dono). Seguindo a trajetória clássica do herói, Dom Quixote tem uma missão: resgatar a pura e bela Dulcineia de Toloso. Todo herói tem um amigo para atravessar a longa jornada. Na linguística, é sempre um pícaro ou um “torto”. O atarracado e gorducho Sancho Pança, que tem seu burrico malhado transformado em garboso cavalo por Quixote.

As aventuras permitiram a Cervantes passear por todos os gêneros literários que existiam na época, fazendo que as 1.200 páginas dos dois volumes se tornem um aprendizado de literatura, estilo e de formação da língua castelhana.

Quixote confunde os moinhos de vento com gigantes. Sua luta de lança e espada, porém, não é imaginária, de tal forma que nosso herói sai machucado. Noutra passagem, Quixote e Sancho atacam dois malignos feiticeiros que sequestraram Dulcineia. Nada mais eram que dois padres que carregavam um andor com Nossa Senhora. Outra passagem famosa é a prisão do cavaleiro andante e seu fiel escudeiro. Os dois conseguem fugir e abrem as celas para os outros presos. A consequência: Quixote e Sancho são humilhados, roubados e espancados. Numa propriedade privada, Quixote identifica dois exércitos atacando a intrépida trupe ao mesmo tempo. Cada batalhão vindo de um lado. Após a batalha campal, os dois ficam feridos e cansados, afinal Quixote decidira lutar ao lado dos mais fracos. Sancho começa a acreditar nas sandices de Quixote e não percebe que eram duas manadas de ovelhas que os atacaram. As confusões mentais causam dores e ferimentos.

Na segunda parte temos a preocupação da irmã de Quixote, Dona Antônia, e o padre da aldeia. Os dois chegam a uma conclusão: a leitura sistemática de romances de cavalaria eram as responsáveis pela insanidade de Quixote.

A solução encontrada pelos dois é absurda: incendeiam a biblioteca. Quixote irá enfrentar o Cavaleiro dos Dois Espelhos, muito hábil nas lutas, Quixote sai bastante machucado. Numa última aventura, eles são levados ao castelo do Duque e da Duquesa. O casal se aproveita da inocência de Quixote e Sancho para fazer diversas pilhérias com a dupla. Incluindo a promessa de doar uma ilha para Sancho Pança que se tornaria seu governador. O gorducho volta a ser o pragmático do início da história quando decidira seguir Quixote, pois este lhe oferecera terras como pagamento. Sancho queria carros, Quixote sabia voar. A última batalha se dá contra outra Cavaleiro, o da Lua Branca. A resistência e força dos dois cavaleiros é simples de entender. Os dois eram, em verdade, seu amigo Sansão Carrasco. A luta nada mais era do que uma tentativa do amigo em trazer consciência à mente de Quixote.

Extenuado, o “herói da triste figura” se retira das batalhas e volta para sua terra. Aos poucos, recupera a razão e pede perdão a Sansão, sua irmã, o padre e em especial ao fiel escudeiro Sancho Pança pelos seus atos tresloucados. Reconhece que Dulcineia é apenas fruto de seus devaneios. Em paz com o mundo dos sãos, suspira e morre.

Qual o sentido da longa jornada do cavaleiro errante? Machado de Assis, no conto “O alienista”, já vislumbrava que o conceito de loucura é relativo. Sabia também que todos nós temos um pouco de insano em nossa jornada. Quantas decisões do passado nos trazem à mente a pergunta: por que raios fiz isto? Pior, se pudéssemos, a repetiríamos.

A história é feita de grandes sonhos. O comodismo e a falta de ousadia transformam a vida em algo monótono e sem sabor. Artistas, gênios, poetas, sonhadores têm algo em comum com os malucos. Enxergam o mundo com uma profusão de cores inexistentes. Preferem pisar em nuvens e deslizar em placas de gelo. E Quixote nos ensina que não há idade certa para sair em devaneios pelas ruas. O mundo nunca gostará dos loucos. Por isso Cervantes narra a redenção final de Quixote. Mesmo sendo imaginários os inimigos, eles nos machucam e deixam marcas. Somos pérfidos com o outro. O próprio Quixote nos alerta:

“…As repreensões santas e bem intencionadas requerem outras circunstâncias e pedem outros assuntos; pelo menos, o repreender-me em público e tão asperamente, excedeu todos os limites da censura cordata; porque às primeiras cabe melhor a brandura do que a aspereza; não me parece bem que, sem ter conhecimento do pecado que se repreende, se chame ao pecador, sem mais nem mais, mentecapto e tonto.”

Dom Quixote nos mostra o quanto somos humanos, demasiadamente humanos.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem

mais
sobre
“Dom Quixote de la Mancha” Arnaldo Baptista e Rita Lee Cervantes Erasmo de Roterdã
LEIA
+