
Anúncio da retirada dos livros didáticos das escolas paulistas ocorreu poucas semanas depois dos 90 anos da grande queima de livros na Alemanha nazista. Foto: Wikimedia Commons
Não poderia ter sido mais desastrosa a decisão do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) – felizmente, revogada após forte reação social – de banir os livros impressos das escolas da rede oficial de ensino do Estado de São Paulo, substituindo-os por cartilhas e outros conteúdos virtuais.
Em que pesem as muitas utilidades dos conteúdos informatizados para atividades específicas, existem sérias restrições – que perpassam, neste momento, debates em todo o mundo – ao uso exclusivo do digital, em detrimento de livros e cartilhas impressas.
Na verdade, a decisão do governo paulista, que o secretário da Educação, Renato Feder, afirma ter baseado em recomendações de especialistas, trafega na contramão das conclusões a que já chegaram países mais desenvolvidos e tecnologizados que o Brasil.
Pelos mesmos dias em que o governo Tarcísio anunciou a rejeição ao material fornecido pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) – amplamente reconhecido por sua seriedade e qualidade –, vieram a lume estudos internacionais sobre as desvantagens do ensino baseado unicamente no digital.
Quase que simultaneamente à decisão do governo paulista, a Suécia – primeiro país do mundo a investir pesado na informatização do ensino –, anunciou a decisão de retornar aos livros didáticos no papel, após uma constatação empírica de que as gerações formadas pelas telas aprendem menos do que as que leem livros impressos.
Também a Unesco, organização das Nações Unidas para a Educação, desaconselhou o uso excessivo de conteúdos digitais. Relatório recente da Unesco, intitulado “Tecnologia na educação: uma ferramenta a serviço de quem?”, ressaltou os possíveis impactos negativos do uso indiscriminado de ferramentas tecnológicas em sala de aula.
Para completar o desastre, a decisão do governo Tarcísio ocorreu pouco mais de dois meses depois do 90o aniversário de um dos episódios mais grotescos da história cultural do século 20 – a grande queima de livros promovida pelos nazistas, em praças públicas de diversas cidades alemãs, em 10 de maio de 1933, quando foram reduzidas a cinzas montanhas de livros de autores inconvenientes ao regime.
Guardadas as proporções entre esses episódios, é impossível não associá-los mentalmente, tendo como pano de fundo a aversão atávica do bolsonarismo – que elegeu Tarcísio – aos livros, às artes, às universidades, aos professores, aos artistas e aos intelectuais de maneira geral. Afinal, quem não se lembra da queixa de Bolsonaro, em janeiro de 2020, de que os livros didáticos “têm muita coisa escrita”?
Não houvesse razões pedagógicas para desaconselhar a digitalização total do ensino, bastaria lembrar que grande parte – talvez a maior parte – dos alunos da escola pública não dispõe de celulares, computadores ou conexões de internet, como ficou evidente durante o período em que as escolas ficaram fechadas, devido à pandemia.
Custa a acreditar que a decisão foi baseada em recomendações de especialistas, como afirma o secretário Feder. Qualquer pessoa que tenha, alguma vez, convivido com crianças deveria saber que o livro infantil, para os pequenos leitores, não é apenas um repositório de informações: é um brinquedo, um contato físico com a arte da ilustração, com a cor, com a forma lúdica de descobrir o prazer da leitura por meio de recortes, montagens, dobraduras e desenhos.
Roubar essa descoberta das crianças, com perdão da expressão, é de uma estupidez digna de quem não entende nem de livros, nem de crianças, nem de educação.
O que fica do episódio, sob o ponto de vista do ensino, é que houve, no mínimo, pressa e desinformação, além de uma inconcebível falta de sensibilidade social. Já sob o ponto de vista político, o que se pode inferir é que Tarcísio precisará decidir se quer governar pela cartilha do bolsonarismo inimigo da Cultura ou buscar uma fórmula menos incivilizada de se relacionar com o povo paulista.
*José Carlos Fineis é editor-chefe do Portal Porque