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Santiago Ribeiro eterniza universo de João de Camargo com maquetes e colagens

“A Capela inspira a fé, o respeito e a compreensão. Eu espero, nas maquetes, exprimir com fidelidade a beleza estética e religiosa de que ela é dotada e assim tocar as pessoas”, diz o artista

Davi Deamatis (Portal Porque)

Santiago ao lado de uma das maquetes da igreja de João de Camargo: exposição revisita história de líder religioso. Foto: Fernando Rezende

O artista plástico Santiago Ribeiro expõe trinta colagens e cinco maquetes da Capela Senhor do Bonfim, de João de Camargo Barros (1858-1942), a partir desta quarta-feira, 19, às 20h, na Fundec, localizada na rua Brigadeiro Tobias, 73, Centro. A exposição “Nhô João de Camargo, o Santo da Água Vermelha” permanecerá aberta ao público até o dia 4 de agosto.

As representações em miniatura da capela e as colagens integram o projeto “Cenário da Memória”, em que Santiago trabalha desde 2016 e, por meio dele, retrata o patrimônio arquitetônico e histórico de Sorocaba.

Desta vez, o artista conta a história da capela, tombada em 1995 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico, Turístico e Paisagístico de Sorocaba, e a história de seu fundador.

João de Camargo, o Nhô João, negro, pobre, ex-escravo, ex-alcoólatra e analfabeto, curandeiro de fama internacional, fez-se reconhecer entre seus fiéis como o Médico dos Pobres, Pai João, Santo Negro, Papa Negro e Preto-Velho.

Homem de espírito ecumênico, Nhô João fundou uma religião sincrética, na qual convivem harmonicamente manifestações de fé de cultos de matrizes preponderantemente africanas, católicas, espíritas e evangélicas.

O artista

Fazer esculturas usando papel, papelão, jornal, cortiça e isopor é uma habilidade inata de Santiago. Autodidata, sem que ninguém o orientasse ou lhe ofertasse um modelo de trabalho, ele veio desenvolvendo sua arte desde a infância.

Na década de 80, Santiago residia na Avenida Afonso Vergueiro. Logo, era um privilegiado espectador dos desfiles de Carnaval, que então ocorriam nessa avenida.

Aconteceu de ele querer registrar a cena de um desses desfiles. Para isso, apanhou um papel laminado mantido na cozinha por sua mãe, Zilda Ribeiro dos Santos, e uma caixa de sapato. Com esses materiais, construiu um carro alegórico e o colocou para desfilar no sambódromo da avenida de papel que acabara de criar.

E transformou uma peça de brinquedo da Playmobil em passista. De sua irmã, Patrícia Casalli, pegou uma boneca e nela botou uma fantasia para lhe confiar o papel de destaque no desfile imaginado.

Além dessa aptidão, Santiago demonstrava, ainda, inclinação para pintura e colagens. Nas séries do ensino fundamental, na Escola Municipal Matheus Maylasky, gostou das aulas de Educação Artística, porque nelas mexia com tintas, misturava cores em busca de diferentes tonalidades. E de geometria, por estudar formas.

E o que Santiago fazia por lazer converteu-se, há mais de vinte anos, em atividade profissional.

O projeto Memória

Na primeira etapa do projeto, em 2016, as obras de Santiago mostram relevantes edificações da cidade, algumas já demolidas. Um exemplo: o casarão de Baltazar Fernandes — o fundador da cidade –, cujas paredes foram feitas com taipa de pilão (terra compactada em fôrmas de madeira) em 1654. A propriedade situava-se entre os Jardins Sandra e Emília, Zona Leste.

Em 2019, na segunda etapa, Santiago abordou a cidade no segmento industrial. E foi à raiz: entre outras peças, compôs em miniaturas as edificações mais importantes do complexo industrial da Real Fábrica de Ferro São João de Ipanema, a primeira siderúrgica do País, fundada por D. João VI em 1810, na Floresta Nacional de Ipanema.

As duas etapas do projeto foram empreendidas com recursos obtidos via Lei de Incentivo à Cultura de Sorocaba (Linc). Por essa razão, a Prefeitura recebeu essas obras e as incorporou ao seu patrimônio cultural.

“As exposições públicas já realizadas foram vistas por pelo menos três mil pessoas”, informa Rodrigo Cintra, produtor e assistente de Santiago.

Resistência Negra

Para a terceira etapa do projeto Cenário de Memória, Santiago quer “realçar um aspecto mais humano da cidade; por isso, aborda a Capela Senhor do Bonfim, fundada por João de Camargo. Eu quero falar da resistência negra, do sincretismo religioso levado adiante por Nhô João, homem escravizado, mas hábil e consciente de seu papel histórico na luta contra a exclusão do povo pobre, o racismo e a intolerância religiosa.”

Essa fase do projeto é desenvolvida com o apoio do Programa de Ação Cultural (ProAC) de São Paulo.

Da tragédia à “profetização”

Uma das cinco maquetes da Capela reproduz a Cruz do Menino Alfredinho, onde Nhô João passou por uma experiência mística. E isso o impulsionou a fundar a sua Igreja.

Alfredinho, um garoto de uns dez ou doze anos, filho do padeiro José Buava, ajudava o pai entregando os pães para a freguesia locomovendo-se numa carroça.

O historiador Carlos Carvalho Cavalheiro relata no livro “João de Camargo – O Homem da Água Vermelha” (Maringá, PR: A.R. Publisher Editora, 2020), que, durante uma dessas entregas, “o cavalo disparou. O menino Alfredinho caiu e ficou preso às rédeas, sendo arrastado por um longo caminho, parando próximo ao córrego Água Vermelha”. Alfredinho estava morto.

“Na cultura oral, popular, diz-se que o córrego passou a ser chamado de Água Vermelha porque o sangue do menino correu na direção daquelas águas, tingindo-as”, disse Santiago.

Cruzes mortuárias

Como era corriqueiro naquele período, especialmente em áreas rurais, instalavam-se cruzes em locais onde ocorriam tragédias como essa. Então, uma cruz foi colocada nesse ponto da estrada. E passou a ser nomeada de a Cruz do Alfredinho, ou a Capelinha do Alfredinho. Nhô João gostava de rezar diante dela.

No livro “João de Camargo de Sorocaba – O nascimento de uma religião” de Carlos de Campos e Adolfo Frioli (Editora Senac São Paulo,1999), esses autores descrevem:

“Certa noite, já no ano de 1906, João chegara para rezar junto à Cruz do Alfredinho. […] após ter acendido uma vela, ali ficara rezando e meditando, até que adormeceu de cansaço depois de beber uns goles da garrafa que trazia consigo.”

Os chamados

Horas depois, Nhô João acordou assustado em meio a trovões e relâmpagos que antecediam à tempestade. E ouviu uma voz feminina aconselhando-o, conforme registram Campos e Frioli (p. 165):

“Vamos, João, põe fora essa garrafa. Prepara-te para receber a incumbência de uma missão para a qual foste eleito pela bondade e misericórdia de Deus.”

Aturdido, João lançou fora a garrafa e correu para o córrego talvez com intenção de matar-se. A voz insistia em lhe falar, ainda de acordo com a citada obra de Campos e Frioli: “Que fazes, João? Isso é pecado! Pára e reflete. […] Ele ponderou sobre o que via e ouvia, persignou-se ante a Cruz do Menino Alfredinho e, arrependido, e pedindo perdão, caiu de joelhos, submetendo-se ao sobrenatural […].”

João continuou ouvindo a voz: “É dentre os humildes que Deus escolhe aqueles que devem mostrar ao mundo as suas forças. Não esmoreças. […] Precisas hoje mesmo começar tua sagrada missão. As luzes iluminarão tuas vistas e verás assim todos aqueles que irão amparar, guiar e proteger-te.”

Viu, também, a imagem de São Benedito. Campos e Frioli mencionam o biógrafo de João de Camargo, o professor, líder espírita e vereador em Sorocaba Genésio Machado, que em “João de Camargo e seus Milagres” ( p. 41) revela que daquele Santo João de Camargo teria recebido a seguinte “profetização”:

“Tu hás de ser /Aquele de nossa cor,/O escolhido para mostrar ao mundo/O poder de Deus”.

João cedeu à voz que o advertia e o impedia de fugir à sua missão.

A transformação

Campos e Frioli (p.15), no livro já citado, anotam: “Foi, assim, depois dessa visão: a experiência teria produzido nele uma tal transformação, que o impeliu à construção de uma Capela, onde se tornou um líder místico, carismático, com reconhecido poder de cura, exercendo, com seu sistema de interpretação de mundo, papéis históricos catalíticos, em proveito de seu povo negro e de seus seguidores.”

Familiares e seguidores auxiliaram Nhô João a construir a igreja num terreno doado por um primo. Seus dons de cura e aconselhamentos alcançaram grande repercussão. Famílias negras passaram a morar nas proximidades, e o comércio se instalou e desenvolveu-se em derredor.
Moradores de chácaras e sítios próximos da capela não gostaram daquela nova situação. E Nhô João foi acusado de curandeirismo e sofreu perseguições. Mas resistiu, fundou uma escola e uma banda — e sua religião sobrevive!

“A opção dele, no entanto, em permanecer resistindo, induz a acreditar na consciência que ele tinha da importância de tal luta”, diz o historiador Carlos Cavalheiro.

Maquetes, Cruz e Capela

À miniatura da Capela e Cruz de Alfredinho, Santiago deu a seguinte legenda em caráter de reverência e homenagem: “Uma Vela pro Alfredinho”. A maquete tem as seguintes medidas: 75cm x 55cm.

Esclarece o historiador Carlos Cavalheiro, citando o que anotou Antônio Francisco Gaspar, um dos biógrafos de Nhô João, no livro “Cruzes e Capelinhas” (edição do autor, 1952): “Algumas vezes essas cruzes convertiam-se em pequenas ermidas, capelinhas que adornavam a paisagem em ruas diversas, à beira das estradas e mesmo quase no centro da cidade.”

As maquetes foram confeccionadas com madeira, papelão, papel paraná, argamassa, terra, areia e papel ondulado. As demais têm as seguintes legendas e dimensões:
– A Capela do Senhor Jesus do Bonfim: 95cm x 55cm
– A Ermida da Água Vermelha: 1,00mt x 1,00mt
– A Vila do Papa Negro de Sorocaba: 1,45mt x 1,45mt
– Resistência Preta: 1,45mt x 1,45mt

Durante a fase de pesquisa, o autor contou com a ajuda do historiador José Rubens Incao, que fará uma palestra durante a mostra.

Criação e transcendência

O produtor Rodrigo Cintra observa: “Nas maquetes de Santiago, há uma magia: ele é detalhista, fiel ao objeto que retrata, mas dotado de uma licença poética na composição – na luz, por exemplo – que leva o observador a ver além da superfície do real. Desse modo, ele capta e revela a transcendência na Capela de Nhô João, e, assim, gera um encantamento que nos leva a ver o mundo de um jeito diferente, esperançoso.”

Outra particularidade do artista Santiago na concepção de sua obra, apontada por Rodrigo, refere-se a uma questão simbólica: “Ele coloca Santos e Orixás quase do mesmo tamanho da janela ou da porta da Capela. É como se essas entidades estivessem ali nos recepcionando, nos acolhendo e, ao mesmo tempo, olhando e abençoando o mundo. Na harmoniosa composição dessas imagens, Santiago reflete o sincretismo da religião de João de Camargo.”

165 anos

A exposição de Santiago ocorre no mês em que a capela celebra os 165 anos de nascimento de João de Camargo Barros, escravo da família Camargo Barros, em Sarapuí, da qual recebeu o sobrenome, como era a prática naquele período. Veio para Sorocaba após o fim da escravidão.
E aqui fez a sua história de líder religioso. Faleceu há 81 anos e ainda hoje é cultuado por milhares de devotos.

Diz o artista Santiago: “Fico feliz por realizar esta exposição no mês de aniversário de Nhô João e reverenciar sua obra. A Capela inspira a fé, o respeito e a compreensão. Eu espero, nas maquetes, exprimir com fidelidade a beleza estética e religiosa de que ela é dotada e assim tocar as pessoas”.

Na Itália

O comerciante italiano Matteo Trinchero, que negocia produtos lácteos na Europa, África e Oriente Médio, veio ao Brasil em janeiro, ocasião em que conheceu Santiago.

“Vi as maravilhosas maquetes que ele produziu espelhando a Ilha Santorini, na Grécia, Veneza, na Itália, paisagens nordestinas, e uma Favela Brasileira. Esta obra me atraiu porque sou fascinado pelos extremos de humanidades e desumanidades, uma vez que eles nos permitem encontrar os marginalizados de nossas sociedades. E a favela é, para mim, uma imagem de luta social.”

Pela identificação com o tema, Matteo comprou a maquete da favela, de 1m x 1m, que levou para a Itália e a mantém na decoração da sala de sua casa.

Brasilidade

Renan Barbedo tem em sua casa, no quarto e na sala, quadros e oratórios produzidos por Santiago. Ele vê no trabalho do artista “uma carga de brasilidade que enche nossos olhos. E aponta como exemplo desse enfoque a Favela Brasileira adquirida por Matteo: nesse trabalho, há um misto de pluralidade religiosa e de denúncia das mazelas sociais. Para mim, a arte é isso: a representação estética da realidade”.

Fabio Arthuso, terapeuta ocupacional, devoto de Santa Terezinha, pediu a Santiago que lhe fizesse uma imagem da Santa. O que ele fez por meio da técnica de colagens (que envolve papel, pano, foto, pintura entre outras texturas).

“A colagem é muito singela e permite abordar a simplicidade da Santa. Santiago conseguiu por meio de seu trabalho explorar a experiência estética e mística de Santa Terezinha, a exemplo do que ele faz com muita competência nas maquetes da Capela de João de Camargo”, disse Fabio.

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