
Dirigentes do futebol não gostaram do dedo na ferida; há muito, entidades do esporte vêm fazendo vista grossa ao fascismo nos estádios, que teve na Copa do Catar seu grande momento. Foto: reprodução
“Entravam nas vilas, burgos e aldeias não poupando nem crianças e homens velhos, mulheres grávidas e parturientes e lhes abriam o ventre e faziam em pedaços. (…) Os espanhóis nunca tiveram nenhuma guerra justa contra os índios. Todas foram diabólicas, e muitas injustas, mais do que as de qualquer tirano que exista no mundo.”
(Frei Bartolomeu de las Casas, “Paraíso Destruído”).
O teólogo, político e sacerdote espanhol do século XVI Bartolomeu de las Casas foi um defensor dos ameríndios, inimigo da escravidão e crítico das políticas imperialistas do país europeu. O revisionismo histórico espanhol considera Las Casas como o precursor da “leynda negra”, a visão de que a Espanha colonial era apenas genocida. Os povos da América são rancorosos. É a velha lógica: quem comete a violência nunca se lembra, quem sofre a agressão jamais se esquece.
Passamos para o século XX. A cidade basca de Guernica, com cerca de 5 mil habitantes, foi inteiramente destruída em 26 de abril de 1937 por um ataque genocida da Legião Condor. Um presente de Hitler para o ditador espanhol Francisco Franco. Um aperitivo para as atrocidades que viriam. Anos depois, numa exposição em Paris, o artista Pablo Picasso estava ao lado do monumental mural “Guernica”, obra produzida pelo catalão para nunca mais nos esquecermos da banalização do mal franquista e nazista. Diz a lenda que um capitão da SS, querendo demonstrar cultura, comentou ao artista:
— Foi você que fez?
— Não. Foi você! Respondeu o mestre cubista.
Comunistas e Democratas passaram seis anos lutando contra o nazi-fascismo na Segunda Guerra. Era necessário libertar o mundo da barbárie. O Eixo é definitivamente derrotado em setembro de 1945. Hitler, Mussolini e boa parte da cúpula de extrema-direita estão mortos. O Japão, ocupado, tem um governo-fantoche democrático. Mas Espanha e Portugal, de Salazar, permanecem fascistas. Franco só deixa o poder três décadas depois, porque morreu.
Em 1977 o país floresce em democracia, diversidade e liberdade. O pacto de Moncloa une todos os setores políticos, sindicatos e sociedade civil num importante acordo de Reconstrução da Espanha. Ficaram de fora só a Opus Dei, tendência ultraconservadora da igreja católica no país, e o partido Alianza, formado por antigos integrantes do governo franquista. O país cresce, enriquece, aceita a diversidade. A nova Espanha é um dos mais belos e livres destinos para a comunidade LGBTQ do mundo. É a terra de Almodóvar. Mas a direita não morrera. Em 1999, Juan Maria Aznar se elege presidente pelo Partido Popular (herdeiro do Alianza). Uma das forças do partido vem do combate ao ETA (organização separatista basca) e da política sutilmente xenófoba.
Em 2011 foi a vez de outro político conservador do Partido Popular assumir o poder. Mariano Rajoy governou até 2018. E o Partido Popular foi considerado moderado por muitos. Uma dissidência dele nasceu em 2013, o VOX. Com um discurso xenófobo, racista e islamofóbico, o partido é a terceira força da Espanha, com 3 senadores e 56 deputados (17% do Parlamento).
Foi nesse período de 20 anos que a multinacional Zara tornou-se um Império da moda. Seu proprietário é um dos homens mais ricos da Espanha. Se não bastassem as dezenas de denúncias de trabalho escravo na fabricação das roupas, a empresa é acusada de uma prática abjeta em suas lojas pelo mundo, incluindo as brasileiras. Ao entrar uma pessoa negra nos recintos, o sistema de som anunciava “Zara Zerou”. Era um código para que os funcionários fiquem atentos aos “possíveis criminosos”. Um país em transe.
Noventa minutos de horror
Em maio desse ano, o jogador brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, foi xingado, humilhado, sofreu racismo, violência moral sem fim. Ficou nervoso, caiu em lágrimas, desesperou-se com razão, foi às arquibancadas questionar os agressores, os racistas, os pérfidos torcedores. Um jogador adversário se revoltou, não contra as atrocidades cometidas por 10, 15 ou 20 mil racistas. Não, ele deu um “mata-leão” em Vinícius Júnior. Logo depois, o árbitro da partida tirou um cartão vermelho e expulsou o brasileiro de campo. Uma vergonha e violência atrás da outra. Como se as galés espanholas fossem navios tumbeiros redivivos.
O racismo contra Vini Jr é proporcional ao seu rendimento em campo. Quanto mais ele se aproxima de ser o melhor futebolista do mundo, mais crescem as agressões. A onda racista contra o craque brasileiro começou em setembro do ano passado. Numa partida contra o Sevilha, Vini Jr se destacou e, após fazer um gol, foi à torcida do Real Madrid comemorar com uma alegre dança. Nos programas esportivos espanhóis daquela noite ele foi massacrado. Um comentarista raivoso desferiu golpes fascistas contra o brasileiro: amoral, anti-ético, atitude anti-desportiva e o estopim… “Parece um macaco dançando.”
Dali em diante, a cada jogo, as agressões racistas contra Vinícius Júnior aumentavam. Aos poucos, o craque começou a demonstrar que se sentia abalado. Mesmo assim, resistia. Respondia aos racistas na rede, continuava com suas alegres comemorações. Até chegar a tragédia de Valência. As tristes coincidências: foi Valência a capital da resistência franquista na Guerra Civil Espanhola.
O caso ganhou dimensão maior ainda porque Vini Jr foi às redes sociais e bateu pesado no presidente da Liga Espanhola e nos dirigentes da UEFA (a federação que administra o bilionário futebol europeu).
O dedo na ferida irritou a cúpula do futebol mundial. As empresas que administram o futebol mundial vêm “higienizando” os estádios, os gramados, as torcidas. Não há espaço para contestação política no futebol fascista atual. Inventam uma Copa no Catar e o país sede explora milhares de imigrantes com trabalho análogo à condição de escravo, outros milhares morrem nas construções dos megalomaníacos e inúteis estádios e o que ouvimos foi um silêncio absoluto em relação aos problemas.
Os ingressos são cada vez mais caros. Para assistir um jogo na Copa de 2016, um brasileiro gastaria mais de um salário mínimo para ver a seleção da CBF apanhar de 7 a 1 da Alemanha no estádio Mineirão. Na Copa de 1950, também realizada no Brasil, milhares de torcedores apelidados de geraldinos (porque o lugar em que ficavam à beira do gramado, em pé, era denominado de geral), pagavam o equivalentes a atuais 10 reais para ver a seleção brasileira sapecar 6 a 1 na poderosa “fúria espanhola”. A Fifa proíbe comemorar gols nas arquibancadas (lances memoráveis eram assistirmos jogadores subirem o alambrado para comemorar com a torcida), tirar a camisa e atirá-la aos torcedores, dançar, homenagear qualquer coisa. Chato, muito chato. Anódino, pra dizer a verdade. Não é mais um espetáculo das massas. Cada vez mais, os estádios lembram as origens aristocráticas do esporte. Nessa atmosfera elitista e branca, o racismo tem um gramado fértil.
E o Brasil? Somos o país mais racista do mundo, palavras de Nelson Mandela em 1993, ao visitar o país. Um racismo dissimulado. Vini Jr era chamado de “Neguebinha” pelos adversários. Negueba apareceu no mesmo Flamengo em 2010. Foi comparado a Pelé. Nunca vingou, perambulou por times modestos e aos 31 anos joga num modesto time da Tailândia. Negueba é sinônimo de Coalhada, o personagem icônico criado por Chico Anisio. Grosso, alcoólatra e folclórico. Para os racistas brasileiros, como todo bom jogador negro, Neguebinha é uma farsa.
O racismo estrutural deixa negros e negras invisíveis no país. Só tivemos um presidente negro em toda a República e em 215 anos de história o STF só teve um ministro negro. Negros não dirigem empresas, clubes de futebol, estados, cidades. Quase não vemos médicos, juízes, dentistas e engenheiros negros. Mas quando o assunto é violência e arbitrariedade policial, os negros são as principais vítimas. Jovens negros são a maioria dos mortos em homicídios. Salários mais baixos? Negros e negras. É todo um ciclo perverso que se reproduz. A escravidão acabou há 135 anos, mas os grilhões visíveis e invisíveis continuam nas canelas e pescoços dos negros.
Não há um crime com o verbo “racismo” na lei brasileira. O eufemismo do legislador e a cegueira proposital dos que julgam inventaram uma versão cor de rosa da verdade: injúria racial. Injúria é um crime contra a honra, de caráter privado. Um mero xingamento é injúria. Proibir acesso a um clube, a uma repartição pública, a um emprego, a uma escola, não é xingamento, é racismo! O absurdo maior é que somente em janeiro de 2023 o crime foi equiparado ao racismo. Equiparado. É imensa a dificuldade em olhar para o espelho.
O técnico espanhol Pep Guardiola disse duvidar de que a Espanha consiga combater efetivamente o racismo como a Inglaterra. Foi execrado pelo próprio país. A qual fato ele se referiu? Numa final da Copa Europeia de Clubes em 1985 (hoje “Champions”), a Juventus da Itália derrotava o Liverpool inglês. Os torcedores ingleses denominados de Hooligans, inconformados com a derrota, começam a esmagar os italianos nos alambrados dos estádio Belga. Morreram 19 torcedores pisoteados e esmagados por assassinos travestidos de torcedores de futebol. Um massacre vergonhoso. A Inglaterra foi punida com exclusão de três Copas do Mundo e os clubes ingleses foram punidos com dez anos de não participação em qualquer torneio Internacional. Um prejuízo bilionário. A federação tomou medidas radicais. Proibiu os hooligans, prendia e excluía eternamente dos gramados os torcedores briguentos. Criou-se um RG para torcedor com apresentação obrigatória nos estádios. Torcedor brigava… Não frequentava mais estádios por 10 anos. Multas elevadas e, principalmente, o time do torcedor briguento, racista ou xenofóbo perdia os três pontos e a partida acabava imediatamente. Hoje os estádios ingleses são símbolos de respeito à diversidade e praticamente com violência zero.
Será que os dirigentes espanhóis e brasileiros estão dispostos a tanto? O jogo de Valência nem teria começado, seriam três pontos para o Real e todo mundo voltava para casa. O Corinthians perderia os três pontos para o São Paulo, pois, em uma partida realizada mês passado, a torcida Corintiana entoava cantos homofóbicos.
Nossa sociedade é racista, homofóbica, excludente e violenta. As arquibancadas, as escolas e a vida não poderiam ser diferentes. Vini Jr foi vítima do brutal racismo. É um jogador diferenciado, dentro e fora dos gramados. Há três anos ele investe num Instituto dedicado à educação e em especial para a educação antirracista voltada exclusivamente para as escolas públicas. O aprendizado vem por meio da gamificação. “A base vem com tudo” é um exemplo de iniciativa positiva pela mudança social e para o respeito à diversidade.
A história não pode ser rancorosa. Espanha e Brasil erraram e erram muito em relação ao racismo. A crítica a este comportamento não deve ser encarado como uma vingança, mas sim como um aviso de que ao enfrentarmos nossos demônios e reconhecer suas brutalidades só temos a crescer e aprender. Jamais também poderá ser afeita a generalizações. Há sempre muita gente crítica e capaz de lutar para o fim das intolerâncias, como Vini Jr. Que os estádios se encham de alegria e diversidade.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem