
A Inteligência Artificial coloca a Humanidade em xeque: simplesmente não há lugar para as pessoas no cenário que se desenha com a Revolução Binária. Imagem: MikeMacMarketing/Wikimedia Commons
Carl Fisher era um desses inventores e empreendedores norte-americanos do final do século XIX. Foi ele quem criou os faróis dos veículos. Anos depois, ele comprou terras baratíssimas na Flórida e construiu as primeiras casas para idosos na futura Miami. Certa vez, impressionado com os avanços tecnológicos, ele soltou a frase-profecia:
No futuro as fábricas terão apenas um homem e um cachorro. O cachorro pra impedir o homem de apertar alguma máquina. E o homem para alimentar o cachorro.
As profundas transformações produzidas no mundo digital desde 2004 parecem confirmar a frase de Fisher. Economistas, especialistas e mídias acríticas vêm endeusando a chegada da Indústria 4.0, ou simplesmente Quarta Revolução Industrial. Mas a indústria, como a conhecemos entre o final do século XVIII e segunda metade do século XX, não existe mais.
Não só a indústria: os operários, os assalariados, os proletários e muitas outras profissões estão virando pó. Aceleradamente. Talvez só sobre o cachorro na porta das fábricas.
O mundo se desmancha à velocidade da luz. O correto seria denominarmos de Revolução dos Algoritmos. Prefiro “Revolução Binária”, em que tudo será fluido. Desde as zilhões de combinações de zero/uns, passando pelos meios de produção e atingindo a sexualidade. Há espaço nesse novo mundo que está nascendo para o conhecimento do passado?
“The Feeling of Power” (O Sentimento do Poder, em tradução livre) é um conto escrito pelo autor de ficção científica americano Isaac Asimov. A história foi publicada originalmente em 1958 na revista If: Worlds of Science Fiction. Nela, a sociedade do futuro é altamente dependente de computadores e tecnologia avançada para realizar cálculos e executar tarefas simples do dia a dia. No entanto, com o tempo, as pessoas se esquecem de como realizar cálculos matemáticos básicos e tornam-se cada vez mais dependentes dos computadores. A humanidade estava conectada em rede, mas não sabia mais quanto era dois mais dois.
O personagem principal, Myron Aub, é um varredor de rua que descobre ter habilidades matemáticas perdidas para a sociedade em geral. Ele passa a estudar matemática básica e, com suas habilidades, desenvolve uma teoria que permite realizar cálculos complexos sem a necessidade de computadores.
Quando uma pane generalizada nos computadores ocorre, a sociedade entra em caos. Mas Myron consegue convencer seus superiores a usar sua teoria matemática para resolver os problemas, e sua ideia acaba levando a uma revolução tecnológica que coloca as pessoas no controle de sua própria tecnologia.
“The Feeling of Power” é uma história que destaca a importância do conhecimento básico e do pensamento crítico, mesmo em uma sociedade altamente tecnológica. A história também questiona a dependência excessiva de tecnologia e a necessidade de manter habilidades básicas, como a matemática, em uma sociedade em constante evolução tecnológica. Um pesado alerta escrito há 65 anos, antes da existência do primeiro computador da IBM.
No século XVIII, a paisagem rural e bucólica europeia, com o desfile diário das classes ociosas — o clero e a nobreza –, era sustentada pelas imensas plantações e as atividades pastoris. O trabalho era pago com a corveia.
Em pouco menos de 100 anos aquilo se transformou totalmente. As cidades, sujas e fétidas, ficaram abarrotadas de gente; o campo foi esvaziado. A humanidade queria liberdade, igualdade e tratamento digno. Os reis eram defenestrados do poder ou cortados no seu sangue divino. A burguesia liberal tomava o Estado para lhe servir. Os servos viraram operários. As crianças ganharam longas jornadas de trabalho. Em cada casebre queimava uma maquina a vapor. A fábrica incendiava o corpo dos trabalhadores, queimava as paredes da casa, a fumaça manchava o céu, contaminava as águas.
A casa virou galpão, as máquinas se multiplicaram, os inventos e a tecnologia caminhavam em botas de sete léguas. Europa, Japão e Estados Unidos queimavam o petróleo, o aço, os pássaros, as florestas e os céus. O galpão virou gigantesca indústria. As vielas viraram edifícios, as ruas “highways”, as distâncias encurtaram. Primeiro foi o trem, depois o transatlântico, depois os carros e os aviões. A velha carta deu lugar ao telefone. O meio ambiente foi afetado, os rios viraram esgotos. Novas profissões nasceram, muitas desapareceram.
Foi uma revolução econômica, política, social, ambiental, cultural e urbana. A indústria colocou abaixo o Velho Mundo. Nada será como antes. Foi sim uma Revolução. Não somente política como 1789. A Revolução Industrial queimou o mundo em suas caldeiras de aço. Às vésperas da 2° Guerra, mais da metade dos trabalhadores nos países industrializados era constituída de proletários.
Existem duas formas de encararmos a Revolução Binária que vivemos. Pela cegueira do otimismo ou o ceticismo da razão. Mas, como a razão ainda está em transe, como a revolução ainda está em curso, nos resta olhar para o presente com a trilogia de sci-fi.
Na mitologia grega, Cassandra é filha de Príamo de Troia e Hécuba. A profetisa ganhou seus dons de Apolo, mas, incrédula com a adivinhação do futuro, rejeitou a benesse. Apolo a castigou, Cassandra continuaria a prever o futuro, porém as pessoas não acreditariam em suas predições. E quais são as três obras ou profecias de Cassandra?
A primeira é o filme “Blade runner” de 1984 com sua mistura de futuro sombrio e seres que aliam engenharia genética e robótica (na próxima semana teremos um artigo específico sobre o filme aqui no História Adversa).
O outro definidor dos tempos atuais é o livro de William Gibson, “Neuromancer”, de 1985. Por último, temos o livro e a animação “Ghost in the Shell” (“GitS”, 1995). A história segue a major Motoko Kusanagi e os membros da Seção 9 na caçada pelo hacker conhecido apenas como Puppet Master. A narrativa é repleta de temas filosóficos, por exemplo, o que significa ser humano, o que nos faz humanos, inteligências artificiais sencientes e muitas outras. “GitS” é pesado em questionar a natureza humana e a interface homem-máquina, mas não fornece respostas.
Se em “Blade Runner” temos o amor entre um humano e uma replicante, em Neuromancer, as IAs (inteligência artificial) são o passo à frente, a próxima evolução. Em “Ghost in the Shell”, temos a fusão de um humano com uma IA. Em Neuromancer, a junção acontece entre duas IAs, criando um ser totalmente novo. No livro, existe a polícia da Turing, que tem a função de policiar as IAs e exterminá-las se for o caso de sua evolução. Como Gibson descreve, elas nascem com um revólver apontado para suas cabeças, para no nanosegundo em que pensarem em evoluir, serem executadas.
As reflexões estão ali. Um mundo onde a maioria é sobrevivente. A natureza está destruída pelo caos ambiental causado pelo homem. O mundo é dominado pelas máquinas digitais, pela rede, pela nuvem. As grandes corporações controlam a tecnologia, a era digital, a Inteligência Artificial e a robótica. A humanidade não é mais necessária nesse jogo. Sobra-nos a atitude cyber-punk (criada em Neuromancer), hackear os sistemas. Ser apenas um vírus. A desobediência civil é saber que dois mais dois são cinco.
Não há mais fábricas esfumaçando pelos céus. Não há mais o aço, as ondas são invisíveis. Os galpões são as redes ou a Internet das Coisas e a Internet dos serviços. Marx e Engels disseram que o capitalismo dessacralizara o poeta. O ChatGPT faz poesia em segundos, melhor do que a maioria das letras atuais. A inteligência artificial é mais rápida, mais exata do que nós. Além disso, é incansável e eficiente ao extremo. Um robô é eterno e não perde seu tempo com futebol, amores ou sexo. Se em “Germinal”, Emile Zola nos deu um painel terrível do trabalhador braçal das minas, o minerador atual prospecta do seu quarto com ar-condicionado, roubando energia elétrica dos países pobres para conseguir as moedas virtuais ou criptomoedas.
A indústria 4.0 não é revolução industrial, por dispensar quase totalmente os trabalhadores. Não existem mais sindicatos nesse cenário; voltamos a ficar sós e desprotegidos e agora sofrendo a concorrência de alguém muito melhor do que nós: a Inteligência Artificial. Bem-vindos ao deserto do real.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem