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Bolsonaro compactuou com fraude em registro de vacinação, sustentam PF e Moraes

Registros foram feitos no final de dezembro, para permitir que presidente viajasse aos EUA, que exigem comprovante de vacinação

Fábio Serapião, Constança Rezende, Géssica Brandino (Folhapress)

Em entrevista nesta quarta-feira, ex-presidente negou que tenha fraudado cartão de vacinação para poder viajar ao exterior. Foto: reprodução/Jovem Pan

A Polícia Federal e o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), afirmam que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) sabia do esquema de fraude em cartões de vacinação da covid-19.

Em representação encaminhada a Moraes, a PF aponta o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, como principal articulador do esquema.

Segundo a PF, Bolsonaro tinha ciência da inserção fraudulenta dos dados no sistema do Ministério da Saúde.

“Jair Bolsonaro, Mauro Cid e, possivelmente, Marcelo Câmara tinham plena ciência da inserção fraudulenta dos dados de vacinação, se quedando inertes em relação a tais fatos até o presente momento”, diz a PF.

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A polícia cita como indícios do conhecimento de Bolsonaro o fato de o certificado de vacinação do ex-presidente ter sido emitido nos dias 22 e 27 de dezembro do Palácio do Planalto.

Em decisão que autorizou a busca e apreensão nesta quarta-feira (3) na casa do ex-presidente e da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, além da prisão contra alguns de seus mais próximos ex-assessores, Moraes disse não ser crível que Mauro Cid tenha articulado o esquema à revelia e anuência de Bolsonaro.

O ministro afirma que, no atual estágio das investigações, não daria para acreditar nessa posição, defendida pela PGR (Procuradoria-Geral da República), mesmo tendo reconhecido a existência de comprovação da materialidade da inserção de dados falsos de Bolsonaro e sua filha no sistema do Ministério da Saúde (ConecteSus).

Ele também citou como argumento “o notório posicionamento público de Jair Messias Bolsonaro contra a vacinação, objeto da CPI da Pandemia e de investigações nesta Suprema Corte”.

“É plausível, lógica e robusta a linha investigativa sobre a possibilidade de o ex-presidente da República, de maneira velada e mediante inserção de dados falsos nos sistemas do SUS, buscar para si e para terceiros eventuais vantagens advindas da efetiva imunização, especialmente considerado o fato de não ter conseguido a reeleição nas Eleições Gerais de 2022”, disse Moraes.

Na representação, a PF detalha minuto a minuto como foram as alterações no sistema e a emissão do cartão de vacinação de Bolsonaro.

Segundo a PF, as informações coletadas mostram como ele se uniu ao secretário de Governo de Duque de Caxias, João Brecha, que foi preso, e aos assessores Mauro Cid e Marcelo Câmara para inserir dados falsos de vacinação contra a covid-19 no sistema.

A ação, diz a PF, configura que Bolsonaro tenha cometido o crime de inserção de dados falsos em sistema de informação.

“Tais condutas, contextualizadas com os elementos informativos apresentados, indicam que as inserções falsas podem ter sido realizadas com o objetivo de gerar vantagem indevida para o ex-presidente da República, Jair Bolsonaro relacionada a fatos e situações que necessitem de comprovante de vacinação contra a Covid-19”, diz a PF.

A Polícia Federal também cita no pedido de busca contra Bolsonaro que o acesso ao aplicativo do ConecteSUS e a emissão do certificado de vacinação se deram por meio do celular de Mauro Cid, então chefe da Ajudância de Ordens do ex-presidente.

Para acessar o documento, diz a PF, foi utilizado o sistema Gov.br, do governo federal, por meio de e-mails de assessores de Bolsonaro.

“Portanto, não se evidenciou qualquer fato suspeito relacionado à utilização indevida do usuário do ex-presidente da República, por terceiros não autorizados, para acessar o aplicativo ConecteSUS”, afirma a PF na representação.

Bolsonaro foi alvo nesta quarta de operação de busca e apreensão da PF e intimado para depor, mas já avisou que não pretende comparecer. Ele vai reunir advogados e assessores para discutir os próximos passos de sua defesa.

A Procuradoria-Geral da República foi contra as buscas solicitadas pela PF. Segundo a PGR, Mauro Cid “teria arquitetado e capitaneado toda a ação criminosa” à revelia do ex-presidente.

“Não há lastro indiciário mínimo para sustentar o envolvimento do ex-presidente da República Jair Bolsonaro com os atos executórios de inserção de dados falsos referentes à vacinação nos sistemas do Ministério da Saúde e com o possível uso de documentos ideologicamente falsos”, diz manifestação assinada pela Lindôra Araújo, da PGR.

Moraes discorda da PGR sobre a tese de que Cid atuou sozinho, mas concedeu a busca somente contra Bolsonaro, e não contra Michelle, também investigada no caso.

“Não há qualquer indicação nos autos que conceda credibilidade à versão de que o ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro pudesse ter comandado relevante operação criminosa, destinada diretamente ao então mandatário e sua filha L. F. B., sem, no mínimo, conhecimento e aquiescência daquele, circunstância que somente poderá ser apurada mediante a realização da medida de busca e apreensão requerida pela autoridade policial”, afirmou o ministro.

A operação chegou perto do núcleo duro do ex-presidente, com a prisão de três de seus principais auxiliares, o tenente-coronel Mauro Cid, Max Guilherme e Sérgio Cordeiro.

Max e Cordeiro são dois dos oito cargos de assessor a que Bolsonaro tem direito como ex-presidente da República. Este último foi, inclusive, quem cedeu a casa para o ex-mandatário realizar lives durante a campanha eleitoral, quando foi proibido de fazê-las no Palácio da Alvorada.

Eles também acompanharam Bolsonaro na sua temporada nos Estados Unidos, após perder a eleição. Max ainda esteve ao lado do ex-presidente em suas primeiras viagens pelo Brasil e nos passeios que tem dado por Brasília, como ao colégio militar.

Os investigadores mapearam duas tentativas de fraude. Na última, os dados teriam sido inseridos para constar que o então presidente e os demais beneficiários teriam sido vacinados e assim pudessem emitir certificado de vacinação para viajar aos Estados Unidos.

A inserção, segundo apuração da reportagem, ocorreu em 21 de dezembro, antes da viagem de Bolsonaro aos EUA. Os dados indicam que Bolsonaro teria recebido duas doses da vacina Pfizer. O presidente negou fraude e disse que nunca se vacinou.

“A apuração indica que o objetivo do grupo seria manter coeso o elemento identitário em relação a suas pautas ideológicas, no caso, sustentar o discurso voltado aos ataques à vacinação contra a Covid-19”, afirma a PF.

Os Estados Unidos exigem a apresentação de comprovante de vacina contra a Covid-19 para viajantes — uma obrigatoriedade que será encerrada no próximo dia 11.

Segundo o governo americano, há exceções, como pessoas em viagens diplomáticas ou oficiais de governos estrangeiros. De acordo com a Embaixada dos EUA, fraudar documentos para tentar entrar no país é crime que pode ser punido com multa ou prisão.

A investigação da PF aponta que a chefe da central de vacinação de Duque de Caxias (RJ), Cláudia Helena Acosta Rodrigues da Silva, foi quem retirou do sistema do Ministério da Saúde informações que haviam sido adicionadas do ex-presidente, de sua filha Laura, do tenente-coronel Mauro Cid e de dois familiares do ex-ajudante de ordens da Presidência.

Cláudia Helena teria excluído as informações do sistema no dia 27 de dezembro, poucos dias depois de terem sido inseridos. Segundo informações da PF, os dados foram inseridos para que fossem validados e pudessem ser usados para viagens ao exterior. No entanto, foram excluídos em seguida para que o registro não ficasse visível no sistema.

Procurada, a defesa de Cláudia Helena disse que não vai se manifestar sobre o caso.

Seis crimes

A suspeita de adulteração do cartão de vacinação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de sua filha mais nova, Laura, pode, se confirmada, levar o ex-presidente a responder por seis crimes previstos no Código Penal.

A Polícia Federal afirmou que os fatos investigados pela operação realizada nesta quarta-feira (3), na qual Bolsonaro foi um dos alvos, configuram, em tese, a prática de infração de medida sanitária preventiva, associação criminosa, inserção de dados falsos em sistemas de informação e corrupção de menores.

Criminalistas ouvidos pela reportagem consideram, porém, que parte dos delitos citados é de difícil enquadramento. Eles também apontam a hipótese de prática de falsidade ideológica e de uso de documento falso. Se comprovada a utilização do certificado fraudado durante a viagem aos EUA, o ex-presidente também pode responder perante a autoridades daquele país.

Já a chance de prisão do ex-mandatário neste momento em decorrência dessa operação é vista como improvável. Os especialistas afirmam que isso pode mudar se houver risco às investigações.

De acordo com a Polícia Federal, os alvos da operação teriam realizado as inserções falsas entre novembro de 2021 e dezembro de 2022 para que os beneficiários pudessem emitir certificado de vacinação para viajar aos Estados Unidos.

“Quando ele apresenta o certificado de vacinação ao governo americano, ele está cometendo um crime contra o governo americano”, afirma o advogado Davi Tangerino, professor de direito da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

Bolsonaro disse nesta quarta que não tomou vacina contra a covid e negou ter adulterado o documento de vacinação para viajar.

“Não tomei a vacina. Nunca me foi pedido cartão de vacina [para entrar nos EUA]. Não existe adulteração da minha parte. Não tomei a vacina, ponto final. Nunca neguei isso”, disse a jornalistas.

A advogada e professora de direito penal da USP Helena Regina Lobo afirma que há dificuldade de configurar o crime de infração de medida sanitária preventiva, pois o Código Penal exige a existência de uma determinação por parte do poder público a ser contrariada.

“Nós não tivemos propriamente uma obrigação impositiva de se tomar vacina. O que houve foram limitações para práticas de atos, que passaram a exigir vacina ou exame prévio”, diz.

Outros enquadramentos considerados difíceis são os referentes à associação criminosa, que para Tangerino (Uerj) não é possível pela existência de uma fraude pontual, e corrupção de menores. Este último é previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, que menciona situação em que um adulto induz um menor de idade a praticar ato ilegal.

A advogada criminalista Flávia Rahal, sócia do escritório RCVA, afirma que a operação determinada pelo Supremo teve como objetivo localizar provas dos crimes investigados e só com o resultado dela será possível saber se há elementos para um processo criminal.

Para a advogada e professora de direito penal da FGV Direito-SP Raquel Scalcon são grandes as chances de isso acontecer por conta do acúmulo de delitos contra o ex-presidente.

“O cerco jurídico a Bolsonaro ganha força com essa nova situação. Sem dúvida o ex-presidente está cada vez mais exposto”, afirma.

Renato Stanziola Vieira, presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), afirma que o caso abre uma nova fronteira de investigação contra Bolsonaro, com a participação de pessoas que não foram mencionadas nas apurações da CPI da Covid, realizada no Senado, em 2021.

“É uma investigação que naturalmente vai partir do zero, apesar das suspeitas de antes, porque até então não havia nenhuma evidência”, diz o advogado.

A operação foi realizada no âmbito do inquérito das milícias digitais, que tramita no STF sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes. Por conta disso, há dúvida sobre se o magistrado vai encaminhar a investigação para a primeira instância, uma vez que o ex-presidente não tem mais foro por prerrogativa de função.

Caso decida manter a investigação na corte, por causa da conexão entre as provas do caso, caberá à Procuradoria-Geral da República avaliar se apresenta denúncia contra Bolsonaro à Justiça.

“É possível desmembrar essa parte e remeter à primeira instância, para que o membro do Ministério Público Federal correspondente analise”, diz Lobo (USP).

Possíveis delitos cometidos por Bolsonaro previstos no Código Penal

Infração de medida sanitária preventiva
Art. 268. Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:
Pena: detenção, de um mês a um ano, e multa.

Associação criminosa
Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes:
Pena: reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Falsidade ideológica
Art. 299. Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena: reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.

Uso de documento falso
Art. 304. Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:
Pena: a cominada à falsificação ou à alteração.

Inserção de dados falsos em sistema de informações
Art. 313-A. Inserir ou facilitar, o funcionário autorizado, a inserção de dados falsos, alterar ou excluir indevidamente dados corretos nos sistemas informatizados ou bancos de dados da Administração Pública com o fim de obter vantagem indevida para si ou para outrem ou para causar dano:
Pena: reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa. A pena prevista para falsificação de documento particular é de reclusão, de um a cinco anos, e multa.

Delito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990)
Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la:
Pena: reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.

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