Busca

Ser ou não ser traidor, corrupto e violento? A atualidade de ‘Hamlet’

Martinho Milani* - História Adversa (Portal Porque)

“Ofélia diante do rei e rainha” (1792). Reprodução da cena 5 do ato IV. Cincinatti Art Museum. Imagem: Benjamin West (1738–1820) – Wikimedia Commons

William Shakespeare nasceu provavelmente em 25/04/1564, na cidade de Strattford, distrito de Avon (Reino Unido). Sonetista, poeta e dramaturgo, o Bardo de Avon foi o maior escritor que já passou pela Terra. O apelido famoso vem da tradição celta. Bardos eram contadores de histórias que encantavam as plateias pelos campos, tribos e em volta de fogueiras nas florestas medievais.

Shakespeare não só escreveu peças eternas como “Júlio César”, “Rei Lear”, “Macbeth”, “Othelo”, “Romeu e Julieta”, “Ricardo III” e “A Tempestade”, como atuava e dirigia as mesmas. O inglês obteve sucesso comercial, permitindo a ele que construísse seu próprio grande teatro, essencial para sua visão revolucionária de encenação. As tragédias e comédias gregas, em geral, eram constituídas de dois atos encenados em um único palco. O longo espaço de terreno onde foi construído o teatro shakespeariano era fundamental para os palcos múltiplos e as muitas plateias que assistiam suas peças.

Shakespeare era genial. Nas suas 38 peças e quase 150 sonetos, além de centenas de poemas, ele utilizou mais de 20 mil palavras da língua inglesa e, quando não havia uma palavra capaz de expressar os sentimentos em cena, ele as inventava. Há cerca de três mil palavras na língua inglesa engendradas por Shakespeare. Talvez ele seja a própria língua inglesa.

Outra transformação no teatro moderno foi o entendimento de que a tragédia e a comédia se misturam. Afinal, a humanidade é capaz de atos da maior sordidez em meio a consternação e sofrimento ímpares. Enquanto muitos choram a morte de um ente querido num velório, outros disputam o espólio do falecido e falsos amigos cochicham as mais ácidas críticas e xingamentos à plateia de micróbios que se putrefazem no caixão.

Certa vez, Machado de Assis afirmou: “O Império Britânico irá cair, a República Norte-Americana desaparecerá, mas Shakespeare jamais deixará de existir. Se um dia a língua inglesa não sobreviver, ainda falaremos Shakespeare.”

Hamlet veio aos palcos pela primeira vez em 1601. É a mais longa e mais famosa peça de Shakespeare. Na maioria são diálogos em versos, mas existem diversos trechos em prosa. “Há algo de podre no reino da Dinamarca”, anuncia Hamlet ao voltar de uma viagem ao exterior e ver que seu pai, o rei Hamlet, estranhamente morrera e sua mãe Gertrudes rapidamente voltara a se casar, agora com o tio do jovem príncipe Hamlet, portanto o novo rei Cláudio.

Hamlet inicia uma jornada de revolta furiosa e torturante, mas ao mesmo tempo tomada de indecisões, incertezas e procrastinação. O amigo Horácio conta ao príncipe que alguns soldados da Dinamarca haviam avistado o fantasma do rei morto pelas redondezas do cemitério. Curioso e inconformado, Hamlet vai à última morada e lá encontra o fantasma supostamente de seu pai. O espectro do monarca confirma as suspeitas de Hamlet: Cláudio era um usurpador do trono e em conluio com Gertrudes envenenara o rei Hamlet até a morte deste.

Tomado pelo ódio e embebido no perigoso desespero da fúria, ele começa a engendrar a vingança. Hamlet é um homem do Humanismo; um príncipe no outono da idade média e primavera dos tempos modernos. Uma alma dividida entre a espada cega da morte e a virtú clássica. O herdeiro que teve o trono brutalmente arrancado pela vilania e traição.

Hamlet é como toda a humanidade: carrega o fardo amargo da falsidade, ao mesmo tempo em que tem rompantes de valores morais mais elevados. A indecisão e o comedimento de Hamlet são tratados como procrastinação nos tempos líquidos atuais. Tudo é veloz, tudo é instantâneo e efêmero, tudo é realizado atualmente para se obter resultados “lucrativos e focados” (sic).

Hamlet tem indagações filosóficas profundas, é um príncipe que busca explicar a razão metafísica do mundo. No início do ato terceiro, Hamlet se dirige a Polônio e fala: “Ser ou não ser, eis a questão! Que é mais nobre para o espírito – sofrer os dardos e setas de um ultrajante fado, ou tomar armas contra um mar de calamidades para pôr-lhes fim, resistindo? Morrer…dormir; nada mais…”. É talvez a frase mais famosa de toda a dramaturgia mundial.

Para retornar o ciclo natural das coisas, Hamlet precisa eliminar os regicidas, pois assim retomaria o trono da Dinamarca, porém, para tal intento, teria de derramar sangue de sua própria mãe, Gertrudes. Nada é simples nos tempos modernos. Nada pode ser resumido na contradição binária do bem versus o mal. Positivo e negativo, meia-noite e nascer do sol, verdade e mentira, amor e indiferença se misturam, se fundem, estão interligados eternamente. A única certeza de hora incerta é a morte.

Por várias vezes Hamlet desistiu de matar o rei Cláudio, o usurpador. Não por indecisão, mas para ter a certeza da eficiência da vendetta. A maestria de Shakespeare nos impede de saber se Hamlet é realmente um doidivanas, um louco, um desatinado frente ao seu destino. Os gestos, as ações da personagem, as ameaças do príncipe, o confuso assassinato de Polônio, escondido por detrás das cortinas. A negociação da liberdade dentro do navio de piratas e, por último, a encenação feita por uma trupe de teatro simulando a trágica morte do rei da Dinamarca, formam um caleidoscópio de sentimentos difusos. Hamlet, e seu alter-ego Shakespeare, definem os paradoxos metafísicos de que a passagem do ato primeiro, segunda parte da peça, em que Hamlet afirma: “Há mais coisas entre o céu e a terra, meu caro Horácio, do que possa imaginar nossa filosofia…”

Shakespeare cresceu no reinado de Elizabeth I (1558-1603) e alguns elementos da peça Hamlet estão relacionados ao período. Elizabeth teve de esperar a morte ou deposição de quatro monarcas num período de sete anos para assumir o reino. Colocada num exílio ou mesmo tratada como criada pela última das seis esposas de Henrique VIII, Catarina Parr, incluindo a violência sexual perpetrada por Catarina e seu novo marido Thomas Seymor contra a infanta Elizabeth. Catarina é Gertrudes; Cláudio é Seymor. A dedicação exclusiva à monarquia, impedindo Elizabeth de se casar por motivos políticos, lembra um pouco o suicídio de Ofélia. Por último, podemos citar que foi na administração de Elizabeth que os piratas ingleses receberam títulos de nobreza. E não foi Hamlet quem subornou os piratas para voltar à Dinamarca? O inferno são os outros, como disse Sartre. Hamlet filosofa mais uma vez sobre os percalços da vida moderna:

“Oh! Meus Deus! Poderia ficar confinado numa casca de noz e, mesmo assim, considerar-me-ia rei do espaço infinito, não fossem os maus sonhos que tenho…” (3ª parte da peça).

Quase não vemos a Igreja na peça, seja ela a católica de Maria ou a anglicana de Elizabeth. Shakespeare é antropocêntrico. O racionalismo do plano de Hamlet é uma das características da modernidade. Hamlet não tem provas do assassinato, mas tem convicção. Convicção baseada num diálogo com fantasma e depois na gestualidade de Cláudio, incomodado com a peça encenada dentro da peça.

Como toda tragédia, a história se encerra com uma carnificina. Todos falecem, envenenados ou cortados pela lâmina da espada. O trono agora vai para Fortinbrás da Noruega, afinal, “rei morto, rei posto”. Os incautos e ignaros creem que Shakespeare é um insano, um escritor coberto de sangue, um perigo à humanidade. O narrador desta interpretação foi suspenso do trabalho ao explicar a peça aos seus alunos. Virá o espectro de Shakespeare me visitar?

Laurence Olivier foi o maior intérprete de Shakespeare. Atuou como Hamlet num filme de 1948. Nos anos 90, tivemos duas refilmagens, uma com o canastrão Mel Gibson no papel do príncipe da Dinamarca e a outra, muito fiel à peça, coma direção e atuação de Keneth Branagh. São incontáveis as encenações teatrais. A própria Disney deu sua versão do príncipe no desenho Rei Leão. Mufaza é o irmão invejoso que mata o rei das selvas. Simba, o príncipe, terá de seguir uma jornada interior para descobrir a verdade sobre a morte do pai, o reino usurpado e a morte de Mufaza.

Hamlet está no imaginário popular, mesmo que imperceptivelmente. As Dinamarcas continuam podres, pois são os homens e sua sanha de poder, traição e vingança que as governam. Curiosamente, Shakespeare morreu em 25 de abril de 1616, aos 52 anos, na mesma data em que nasceu.

*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem

mais
sobre
artigos atualidade hamlet Martinho Milani shakespeare
LEIA
+