
Prédios históricos, que contam a história da ferrovia no Brasil e foram tombados pelo Condephaat, estão por toda parte na área anunciada pelo prefeito como local de empreendimento imobiliário. Foto: Arquivo/Secom PMS
O Complexo Ferroviário de Sorocaba, tombado em 2016 como bem cultural de interesse histórico, arquitetônico, artístico, turístico e ambiental pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo), está na mira da política habitacional do prefeito Rodrigo Manga (Republicanos), que vem patinando na promessa de entregar apartamentos populares e reduzir o déficit habitacional.
Em vídeo veiculado na quinta-feira (20), em suas redes sociais, Manga afirmou que pretende transformar aquele que é um dos mais completos conjuntos remanescentes da antiga Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) em um conjunto habitacional, de cultura e lazer. Mas não disse como. Pelo contrário: ao afirmar que existe uma parceria com o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), de quem é aliado, para o desenvolvimento de um modelo habitacional que, nas palavras de Manga, irá somar com o seu projeto Casa Nova Sorocaba – ainda no papel, apesar do marketing pesado e das ações de divulgação e sorteios de casas inexistentes –, ficou claro que ainda não há um projeto.
Seguindo o padrão Manga de alardear vontades como sendo realizações, com o anúncio dessa parceria não foi diferente. Na mesma live, coube ao secretário-executivo do governo estadual, José Police, informar, mantendo o tom entusiasmado do prefeito, que o projeto ainda será construído. “Queria convidar a população para construir o projeto conosco.”
“Temos um talismã, algo maravilhoso no Centro de Sorocaba, uma área ferroviária impressionante, com quase 200 mil metros quadrados, e que agora a gente começa, junto com o prefeito, junto com o governador Tarcísio, colocar a mão para devolver. Algo que essa sociedade sonhou muito, com habitação de qualidade, com áreas de lazer, áreas de esporte, áreas culturais, que tragam a nossa história para o nosso convívio”, falou Police.
Nem no papel
O Portal Porque entrou em contato com os órgãos competentes para saber se estavam cientes da parceria e qual a viabilidade da realização de um projeto habitacional em uma área cuja maior parte é tombada pelo Condephaat.
Apesar do alarde do anúncio, o próprio órgão que viabiliza ou não a realização de intervenções no complexo, o Condephaat, tampouco está sabendo da intenção de Manga, conforme informado em nota à redação. “Informamos que não foi localizado nenhum processo aberto até o presente momento referente ao tema intervenção no Complexo Ferroviário de Sorocaba com vistas à implantação de unidades habitacionais”, esclareceu a assessoria de imprensa da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, pasta que responde pelo Condephaat.
A empresa Rumo, concessionária que administra o complexo ferroviário, não explicou se sabia ou não das intenções de prefeito Manga e do governador Tarcísio de Freitas, mas reiterou que cabe à concessionária cumprir as normas contratuais, regulamentares e legais pertinentes e também uma eventual remodelação que possa ser proposta pelo Governo Federal, que é a quem pertence a área.
A reportagem procurou, também, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e questionou se seus dirigentes foram oficialmente informados do projeto e quais as possibilidades da sua viabilidade. Porém, até o momento, não houve retorno.
Possíveis dificuldades
Para Luciano Leite, escritor e pesquisador do complexo ferroviário, que escreveu o livro “Estrada de Ferro Sorocabana e a reinvenção do passado”, é impossível avaliar a possibilidade de criação ou mesmo o impacto da instalação do conjunto habitacional e de lazer anunciado por Manga, sem ter o projeto em mãos. “Mas acho complicado, tem todo um imbróglio jurídico”, adianta, lembrando que o terreno pertence à União e está sob concessão da empresa Rumo, que administra a malha ferroviária.
Para ele, uma das maiores dificuldades é o fato de que, com o tombamento, existe a área envoltória, ou seja, um raio em torno dos imóveis tombados que impossibilita edificações. Como a maior parte do complexo está tombada, resta apenas o local chamado de Monte Castelo, nas proximidades da Praça da Paz, em Santa Rosália, espaço dentro do complexo que não foi tombado por conta da falta de interesse histórico.
Leite adianta que a utilização desse espaço não tombado para um empreendimento dessa envergadura também não deve ser fácil, considerando que há estruturas metálicas e trens que precisam ser retirados e levados para outro lugar. “Como era uma área industrial, também há muito óleo. Será que o terreno não está contaminado e sem condições para receber edificações?”, questiona, pontuando alguns dos possíveis percalços.
O pesquisador pondera que, dependendo do projeto, de como ele for pensado e executado, pode ser sim interessante. No entanto, além de respeitar o tombamento da área, seria importante que fosse algo que desse visibilidade àquela área que poucas pessoas conhecem, e destinado à habitação popular e não à especulação imobiliária. “Mas é muito difícil opinar sem saber qual o projeto para o local.”
Eric Mantuan, vice-presidente da Associação de Preservação Ferroviária, afirma que há espaços vazios no complexo, que poderiam ser utilizados para fins diferentes da vocação do local, no caso, ferroviária. Porém, como o processo de tombamento cria o chamado raio envoltório, é preciso respeitar essas delimitações. Como exemplo, ele conta que não pode ser construído nada que obstrua a fachada do local tombado. “Toda ocupação ou construção, dentro dessa área, independentemente do agente interessado – seja governo estadual, federal ou a própria concessionária – precisa passar pelo aval do Condephaat, que é o órgão fiscalizador do processo de tombamento.”
A importância do Complexo Ferroviário de Sorocaba
De acordo com o decreto que oficializou o tombamento do Complexo Ferroviário de Sorocaba, a justificativa se dá pelo reconhecimento da importância histórica do local, maior e dos mais completos conjuntos remanescentes da EFS, uma das principais ferrovias paulistas. Reforça, ainda, que o complexo representa a expansão ferroviária pelo Estado vinculada ao cultivo do algodão, à produção pioneira da Imperial Fábrica de Ferro de São João de Ipanema e, posteriormente, ao café.
O Condephaat aponta, também, que a implantação da ferrovia em Sorocaba marcou o declínio da histórica feira de animais e contribuiu para a industrialização local e regional, potencializando, sobretudo, o setor têxtil.
Em outro ponto, destaca que o conjunto das oficinas da EFS foram consideradas, em seu tempo, as maiores edificações do tipo na América do Sul, que contribuiu para a constituição do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), entre outras justificativas.