
James Stewart e Grace Kelly em cena de “Janela indiscreta”, um clássico de Hitchcock que transforma em voyeurs todos os que o assistem. Foto: divulgação
Dashiell Hammet e Raymond Chandler elevaram o romance policial à escala dos clássicos. A estética noir é simples e repetitiva. Ninguém é santo. Todos somos corruptos e temos um lado mal (alguns talvez só tenham este lado). Desconfie sempre das pessoas boas demais, elas são desequilibradas.
Nos romances noir, a justiça é corrupta, a polícia é corrupta, os empresários são corruptos, os sindicalistas são corruptos, as mulheres são corruptas e os homens… Ah, estes nunca prestaram mesmo. Nada é gratuito e destituído de interesses.
O detetive é geralmente um homem que vive no underground, na tênue linha entre a sandice e a verdade aparente. Por ser limítrofe. o detetive é o que tudo vê. Por saber da podridão inerente a todos nós, ele é o cínico por excelência.
A engrenagem desse mundo sem moral funciona bem, até que um crime rompe a estabilidade. Busca-se o detetive para desvendar o crime. Ele caminha até as profundezas da perfídia humana e revela as motivações e o autor do crime. Toma muita porrada nesse caminho.
Revelada a trama, o mundo pode voltar ao “novo normal”. O detetive pode voltar ao seu ostracismo, com a única coisa pura que existe: o uísque. É assim em “O longo adeus”, “O falcão maltês” ou “A lua na sarjeta” e outras obras dos anos 30 a 60 na literatura policial.
Um dos escritores de maior vendagem e menos lembrado do período é Cornell Woolrich. Quase um personagem de si mesmo. Solitário, alcoólatra, homossexual enrustido, depressivo com tendências automutiladoras (perdeu uma perna gangrenada por falta de tratamento), Woolrich fez sucesso nos primeiros romances e trabalhou anos como roteirista de Hollywood.
Seu maior sucesso? “Rear window” (ou “a janela detrás”). O conto virou um dos melhores filmes de Alfred Hitchcock, o clássico de 1954, “Janela Indiscreta”. Woolrich é o rei do cinismo e isso transborda no filme. O escritor sabe que não há solução para os conflitos humanos, somente a morte. Tanto que ele próprio morreu solitário num apartamento, de cirrose hepática e deixando uma fortuna de US$ 10 milhões em 1968. Mas, ao contrário das obras noir tradicionais, Woolrich inverteu a lógica: não é o crime que põe fogo na vida, é a vida em chamas que leva ao crime.
O perfeccionismo de Hitchcock é famoso. Durante 3 meses, 50 operários da construção civil criaram o cenário do filme. Nada menos do que 31 apartamentos foram construídos em detalhes. Há uma praça central e uma estratégica saída para o mundo, que só veremos uma vez. Todo o resto da trama se passa no apartamento do 3º andar, onde vive o fotógrafo Jeffries (interpretado pelo ator preferido de Hitchcock, James Stewart).
Por ser o andar mais alto, Jeff tem visão panorâmica de todo o prédio. Além disso, será fundamental para o suspense da cena final (nada é aleatório nos filmes de Hitchcock). Nos apartamentos defronte ao de Jeff temos a senhorita Lonelyhearts (coração solitário), a dançarina que propositalmente exibe seus dotes nas janelas da sala.
Um músico solitário e alcoólatra. Um casal de jovens noivos que passa quase a história toda fazendo sexo (de janelas cerradas, é claro). Há ainda uma senhora de meia idade que tenta aparentar 20 anos. E um casal feliz e seu animado cãozinho. O último casal é o homem grisalho de meia idade e muito forte, Lars Thorwald (Raymond Burr) e sua esposa inválida Alice.
Há mais três personagens centrais e que não moram no prédio: Lisa Carol Fremont, noiva de Jeff, uma mulher estonteantemente linda, rica e da alta sociedade, as femme fattale que não podem faltar nas histórias de Hitchcock, sempre loiras como a sua esposa morena. Jeff comenta várias vezes para Lisa que é um grande erro o casamento dos dois: ele é pobre, bem mais velho e sem atrativos.
A empregada Stella (interpretada pela atriz Thelma Ritter), o alter ego de Cornell Woolrich, suas tiradas sardônicas e cheias de cinismo são um caso à parte na trama. Numa delas ela diz: “Se vocês fizessem isso no passado teriam os olhos furados em ferro quente.” Logo depois, ela solta uma análise freudiana ao dizer que em vez de bisbilhotar a vida alheia de fora, eles deveriam entrar no íntimo das pessoas para entender o que se passa. O último personagem é o tenente Thomas (Wendell Corey) que virá para reestaelecer a ordem.
A história é banal. E passamos pelo menos metade dela acreditando ser invenção da cabeça de Jeff. Explico: no último trabalho como fotógrafo, Jeff sofreu um acidente e engessou a perna toda. Terá de ficar numa cadeira de rodas ou numa cama por pelo menos nove semanas.
Sem andar, sem poder sair do prédio, recebendo apenas duas visitas em dois meses: a noiva Lisa e a empregada Stella. Nada mais parecido com o que vivemos entre abril e junho de 2020, confinados na Quarentena da Pandemia. O tempo passa lento (se não assistiu, pule o espóiler a seguir). Talvez por isso, Hitchcock tenha escolhido como sua aparição surpresa a cena em que mexe no relógio do músico solitário.
Todos nós ficamos eufóricos, depois cansados, em seguida deprimidos e por último em desespero. Jeff podia estar passando por isso e sua história de que Thorwald havia matado a esposa inválida era pura imaginação de alguém que podia passar o dia todo espionando a vida alheia. Interessante notar que em geral o voyeurismo tem um claro componente sexual. Penetrar no outro. Mas o protagonista de Hitchcock sequer liga para o contorcionismo sexy de Lonelyhearts. Jeff tem os olhos no deus Tânatos, não em Eros.
Certo ou não, Hitchcock consegue nos transformar todos em voyeurs juntos com Jeff e sua câmera fotográfica que permitia ir mais fundo na cena, como se nós pudéssemos também penetrar mais fundo na alma humana. A trilha sonora, os acontecimentos em sequência (uma janela que se cobre e nunca mais se abre no quarto de Alice, um cãozinho que revira o jardim e na cena seguinte desaparece, uma imensa mala nas mãos de Thorwald), as histórias perfeitas que se desfazem (a bailarina caindo em choro, o noivo que vivia no sexo reclamando do casamento, a decepção de Jeff com seu chefe); tudo nos leva a crer que sim, houve um assassinato naquele prédio.
Hitchcock é imbatível na narrativa em crescendo. Hitchcock é perfeito no enquadramento dos personagens para criar mais tensão no espectador. Hitchcock é mestre em demonstrar que como todos somos maus; qualquer pessoa comum pode cometer um crime (leia nosso artigo sobre “Vertigo” de Hitchcock aqui). O preço que pagamos em sermos bisbilhoteiros da vida alheia, como muito de nós fomos na pandemia, é caro.
A cena final, em que Jeff está inválido e só no apartamento, é um primor. Um passo pesado sobe os três andares lentamente. O som e a tensão crescem com a proximidade do algoz. É o ensurdecedor barulho da morte subindo as escadas, cada vez mais forte, a cada degrau fica mais aterrorizante. Jeff luta, não porque seja o mocinho da história, mas somente pelo instinto de sobrevivência. Assim como todos nós lutamos contra a covid-19 sem saber o tamanho, o poder e a hora em que o inimigo iria nos atacar.
Mas, como em todo bom filme de terror, tenha certeza de que o mal está derrotado definitivamente, caso contrário ele virá com uma nova tentativa de tirar tua vida, como a covid-19 que ressurgiu. Ressurgiu ou nunca a derrotamos? Deixo por último uma das dezenas de influências culturais de Hitchcock: a famosa capa de “Physical grafitte” do Led Zeppelin. O famoso álbum das janelinhas em que podemos espiar algumas vidas.
*Martinho Milani é professor de História, Filosofia e Geografia, doutor em História Econômica e mestre em História da África pela USP. Cofundador e articulista do site de blogueiros independentes Terceira Margem

A capa de “Physical Grafitte”, do Led Zeppelin: qualquer semelhança não é mera coincidência. Imagem: reprodução