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Produtor do Festival de Jazz, Marco de Almeida comemora fim do obscurantismo

Com gosto de volta à normalidade, evento segue até domingo (16) com dez apresentações; ao todo, mais de 70 músicos se apresentam, gratuitamente, na Usina Cultural Facens

Maíra Fernandes

Passado o período de desmonte cultural promovido pelo governo Bolsonaro, Marco de Almeida afirma que o momento agora é de retomada e de esperança. Foto: Divulgação/Arquivo Pessoal

Em fase de pré-produção de um álbum que comemora os 80 anos de um dos seus maiores ídolos – o músico Edu Lobo –, o produtor cultural sorocabano Marco de Almeida ainda procura espaço na agenda para atender ao convite especial de Chico Buarque e Mônica Salmaso e acompanhar a passagem paulista da turnê “Que tal um samba?”.

Tudo isso, envolvido em mais um projeto em que brinda a cidade com o seu conhecimento musical apurado: a segunda edição do Festival de Jazz de Sorocaba, que começa nesta quarta-feira (12), às 19h30, e segue até domingo (16), na Usina Cultural Facens. Tudo gratuito.

Quem abre o evento é Nelson Ayres Big Band, celebrando 50 anos de música do artista (leia aqui). Durante cinco dias, serão mais de 70 músicos no palco, além de exposições e homenagens. São apresentações de artistas como Nelson Ayres, Jorge Helder, Filó Machado, entre outros (clique aqui e confira a programação completa).

O festival reúne nomes históricos e a nova geração do jazz nacional, reiterando a importância de Marco de Almeida na cena musical e internacional, bem como o profissionalismo que, ao longo de anos à frente de diferentes projetos, levou Sorocaba a ser um dos principais palcos para nomes importantes e fora do circuito popular.

Se os sorocabanos puderam assistir, gratuitamente, as vozes marcantes e musicistas premiados e disputados, muito há que se agradecer a Marco de Almeida. Nascido em uma família simples, filho de uma empregada doméstica que ouvia ópera, iniciou na produção cultural achando que estava fazendo filantropia. Assim, ao longo da carreira, não abriu mão de fazer a  cidade pulsar culturalmente, mesmo que às duras penas.

“No início não fiz planos específicos para atuar em Sorocaba. Isso aconteceu como reação natural pela total falta de ação do poder público e instituições culturais de fazerem algo que eu mesmo julgasse bom. Portanto, resolvi botar a mão na massa e fazer aquilo que eu mesmo gostaria de ver e de ter na cidade. E até hoje é assim: eu produzo aquilo que gosto de ver, de ouvir e de ter como ação cultural”, conta ele que, assim como toda a classe artística, amargou o desmonte cultural promovido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

Crítico ferrenho do governo anterior, não foram poucas as vezes que o produtor usou as redes sociais para denunciar o reflexo do bolsonarismo na cultura, principalmente na posição das empresas que, por temerem remar contra a maré instaurada, deixaram de apoiar projetos culturais e artistas, dando preferência a festivais “para famílias”.

Esse tipo de ação minava a possibilidade de um evento cultural poder se tornar, de certa forma, um palco para críticas e posicionamentos contrários ao governo, como acabaram sendo alguns festivais de música ocorridos à época.

Passado este período, o momento agora é de retomada e de esperança. Por isso, o produtor segue animado e fazendo o que mais gosta: produzindo cultura. Confira a entrevista completa de Marco de Almeida ao Portal Porque:

Portal Porque – Como e quando você começou a se interessar e a vivenciar a cultura, principalmente a música?
Marco de Almeida – Desde sempre, por influência dos meus pais que, por curiosidade, vieram de famílias extremamente simples, mas criaram o costume de frequentar os teatros, especialmente a música. Eu frequentei as artes: museus, concertos, teatros, shows, exposições, etc. Recebi isso como formação e, para mim, sempre foi natural e importante. E continua sendo, obviamente. Aliás, não concebo uma vida plena sem isso. E a música foi algo espontâneo: meu pai frequentava o Theatro Municipal em São Paulo, assistia a todos os concertos e ouvia muita música clássica. Minha mãe, empregada doméstica, fazia as faxinas ouvindo ópera e conhecia tudo. Por isso, a aproximação da música sempre foi natural e, mesmo não tocando mais piano atualmente, é sempre o que mais respeito e amo nesta vida.

PP – E quando você começou a atuar como produtor? Qual era a necessidade à época?
MA – Aos 18 anos, estudante de piano e super envolvido com a música clássica, criamos uma associação cultural chamada Cemso [Centro Musical de Sorocaba]. Foi criado por mim, com a Cleide Campelo e a Paula Robbe. O objetivo era ter a possibilidades de desenvolver concertos e apresentações através de público mantenedor. Isso era já produção, mas não sabíamos. Entendíamos como filantropia, mas era bem mais do que isso. E, consequentemente, isso despertou em mim esse talento e vontade de seguir. Já na Europa, em Paris, estudei para ser agente artístico internacional e, aos poucos, fui voltando ao Brasil e desenvolvendo essa carreira.

PP – Mesmo com sua vivência internacional e contato com artistas renomados, Sorocaba sempre esteve na sua rota de projetos, por quais motivos?
MA – No início não fiz planos específicos para atuar em Sorocaba. Isso aconteceu como reação natural pela total falta de ação do poder público e instituições culturais de fazerem algo que eu mesmo julgasse bom. Portanto, resolvi botar a mão na massa e fazer aquilo que eu mesmo gostaria de ver e de ter na cidade. E atualmente é assim: eu produzo aquilo que gosto de ver, de ouvir e de ter como ação cultural. Inclusive, até hoje, em pleno 2023, temos de ver a inabilidade total do poder público de agir eficientemente e coerentemente a favor do desenvolvimento cultural. De todo jeito, eu sempre sou muito feliz com os projetos que realizo na cidade. Confesso que não tenho preferidos. E não tenho momento especial. Para mim, enquanto projetos ativos, adoro cada ação desenvolvida: seja de música brasileira ou de música clássica. Sem esquecer que já  fiz mostras de teatro, de cinema, etc. Por isso, como faço aquilo que gosto e, apenas por isso já me sinto um privilegiado, todos os meus projetos são especiais para mim. E agora temos o Festival de Jazz.

PP – Queria que falasse sobre essa sua concepção de sempre trabalhar a formação de público com programações pedagógicas e oficinas. Acredita que esse é o caminho para democratizar o acesso à cultura?
MA – Sem dúvida: não existe a possibilidade de uma verdadeira formação de público sem o entendimento daquela arte, daquele estilo, daquela concepção artística. Ou o que fica sempre é o “gosto” ou “não gosto” de modo superficial e sem conhecimento verdadeiro. Claro que isso não é fundamental para o gostar de uma ou outra coisa, mas falo como conhecimento, formação, entendimento. Isso que deveria já existir nas escolas, como existe nos países desenvolvidos e progressistas. Através do acesso ao conhecimento, às informações mais específicas, você tem a chance de melhor entendimento sobre qualquer coisa e, consequentemente, ter maior clareza sobre o gostar ou não. E isso é válido para tudo, claro, não apenas para a formação de público nas artes. Por isso, inevitavelmente, nos meus projetos, levamos muito a sério esta possibilidade de acesso, por sinal sempre gratuito, já que usamos de leis de incentivo para que todos possam se aprimorar e conhecer mais sobre o assunto proposto.

PP – Produzir cultura em Sorocaba ainda é um desafio? Há frustrações?
MA – A cidade não nos frustra em relação a produção cultural. Ela nos frustra em relação a praticamente tudo. O atraso social e cultural parece ter grande efeito em uma cidade como Sorocaba onde, ao mesmo tempo em que ela é grande, setores da cidade preferem que ela permaneça pequena. E assim mantemos o atraso como religião e o slogan “Linda de verdade”, que não cola nem para o mais alienado dos conservadores conterrâneos. Ao mesmo tempo, prefiro acreditar que existe uma onda de pessoas interessantes e dispostas a modificar a realidade, digamos atrasada, da sociedade. E é para eles que eu olho.

PP – Passado esse período de quarentena e de bolsonarismos, qual futuro você enxerga para as ações culturais e artísticas e se já há mudança sentida no mercado?
MA – Falando de Brasil as mudanças são enormes e efetivas. Ufa! O obscurantismo burro, grosseiro, perigoso em todas as instituições que importam passou e, agora, se caminha para algum momento de normalidade e civilidade. Mas Sorocaba é interessante: ao mesmo tempo que temos uma mediocridade imperante, temos uma cidade onde atuam grandes músicos nacionais ou não aqui, mas com grande ação musical e cultural e criando importantes ações para todos. Temos pensadores da música e das artes, temos bons produtores, temos excelentes artistas de diversas áreas, temos o Sesc. Portanto, temos sempre grandes possibilidades de ação na comunidade e cada um tenta fazer o seu, sem nenhum apoio público municipal ou mesmo de patrocinadores. Imagina se isso fosse bem organizado, articulado, investido e prestado a atenção devida? Sorocaba seria, sem dúvida nenhuma, uma cidade referência.

PP – Conte-nos sobre o Festival de Jazz, como foi a concepção, as parcerias e como foi pensado esse evento? O que destaca nesse projeto e quais suas expectativas?
MA – Faz tempo que o festival está na mira de realização, mas, entre uma impossibilidade e outra, ficou para agora, o que muito nos enche de alegria e boas expectativas. A intenção – como diretor artístico – era focar em alguns músicos históricos do jazz nacional e, sobretudo, nos jovens que estão ascendendo no Brasil. Então temos de Nelson Ayres, Jorge Helder, Filó Machado, Mauro Senise aos jovens Amaro Freitas, Vanessa Moreno, Amanda Maria, Thiago do Espirito Santo e tantos outros. Ao todo, estarão no palco mais de 70 músicos em cinco dias, além das atividades pedagógicas, como palestras e oficinas, que já foram realizadas. Faremos duas exposições: sobre uma breve cronologia do jazz e outra homenageando Zuza Homem de Mello, por definição, o homem do jazz no Brasil e meu amigo próximo e querido. Mas, durante o festival, teremos ainda venda de discos e livros, área gourmet, lounge para ouvir jazz e descansar. Creio que será bem interessante.

 

 

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‘Festival de Jazz de Sorocaba’ Jorge Helder Marco de Almeida Nelson Ayres Usina Cultural Facens
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