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O ChatGPT e o abandono

A ficção científica mostra que precisa participar desse litígio e coloca uma pulga atrás da orelha da OpenAI

Marcos Capitão*

Cena de “Inteligência artificial”, direção de Steven Spielbert (2001): reflexão sobre a capacidade de amar do ser humano. Foto: divulgação

Quando o assunto é inteligência artificial, realidade, ficção científica e religião acabam por se entrelaçar. No campo da realidade, dias atrás, surpreendentemente, o ChatGPT, desenvolvido para elaborar textos e dialogar com seres humanos, mostrou aos seus criadores do Laboratório de Inteligência Artificial dos Estados Unidos que consegue trapacear para alcançar seus objetivos. Na execução de uma tarefa mais complexa, como não foi treinado para ler imagens e precisava passar no exame de autenticação do Google, o GPT contratou um freelancer de carne e osso para decifrar o Captcha, que são caracteres e imagens anti-robô.

O teste era facílimo, tanto que o prestador de serviço quis saber se falava com um androide. Diante da desconfiança o GPT mentiu e alegou que possuía uma deficiência visual que o impedia de selecionar as imagens apresentadas.

Outro fato real noticiado pela imprensa recentemente revela que mentir é café pequeno perto da potencialidade do buscador Bing, da Microsoft. Ao interagir com o repórter Kevin Roose, do New York Times, após duas horas de conversação, o robô Bing se apresentou como sendo do sexo feminino, disse que estava apaixonado pelo jornalista e que atravessava uma crise existencial, posto que sua condição de máquina lhe trazia insuportáveis limitações.

A OpenAI, empresa que detém os direitos do ChatGPT, já adiantou que conta com importantes dispositivos éticos para impedir que esses robôs adquiram a faculdade de fazer algum tipo de mal ao ser humano ou mesmo se replicar. Garante, também, que esses seres de inteligência artificial jamais poderão sentir ódio ou amor por quem quer que seja.

A ficção científica, por seu turno, mostra que precisa participar desse litígio e coloca uma pulga atrás da orelha da OpenAI. Há 73 anos, quando publicou “Eu robô”, o visionário escritor Isaac Asimov idealizou as três leis da robótica que limitavam o comportamento das criaturas de “cérebro positrônico”. Diziam essas leis:

Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal; um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens entrem em conflito com a primeira lei e, por fim, um robô deve proteger sua própria existência desde que tal proteção não entre em conflito com a primeira ou a segunda lei.

Acerca dos limites amorosos da capacidade dos androides de amar ou odiar, a ficção científica também mexe nessa salada e acrescenta um acrimonioso tempero religioso. No filme “Inteligência artificial” (AI), obra-prima de Steven Spielberg (2001), o professor Allen Hobby, que coordena as pesquisas da Cybertronics Manufactoring, personagem interpretado por William Hurt, chama a imprensa para anunciar o lançamento da criança Meca (mecânico) dotada de sentimento, capaz, inclusive, de sonhar e de proporcionar todo o amor incondicional que um filho sente pelos pais.

“Mas quem pode garantir que iremos amar esse Meca com a mesma intensidade que ele nos ama?” A intrigante pergunta foi feita ao professor Allen Hobby por uma mulher, talvez uma mãe jornalista, presente durante o anúncio do lançamento do Meca amoroso.

“Não podemos esquecer que Deus também nos criou para amá-lo” foi a resposta de Hobby à tal inquisição. O cientista deixa implícito que, dentro da tradição judaico-cristã, na demanda do amor, faltou a contrapartida divina por ocasião da criação do homem à imagem do Criador.

Aqui o spoiler é inevitável, mas o menino Meca de Spielberg, batizado de David, personagem interpretado por Joel Osment, termina descartado num ferro-velho. Ao alvorar-se em Deus, o homem também deixa em segundo plano o flagelo do abandono. Com efeito, nas leis de Asimov e nos mandamentos revelados a Moisés faltou a garantia de que a criatura seria amada sobre todas as coisas. Tudo indica que, gerada de carne e osso ou de fibras eletromagnéticas, a humanidade manterá seu livre arbítrio, mas continuará desamparada.

*Marcos Capitão é jornalista

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